terça-feira, 28 de outubro de 2014


O lar onde a morte se hospeda. A vida suspensa numa longa noite de cura. Sono de entre este e o dia de amanhã. Assim encontrámos Barbara Stanwyck no debate com o seu médico em "The Other Love", talvez ainda sem saber do lume da paixão que os aquecerá no fechamento do filme. Mas tão bom comportamento e saúde dessa cansa. Aparece Richard Conte num acidente e só acidentes e proibições lhe promete sem saber que não deve. Faz saber e redescobrir à pianista famosa que quanto mais rápido e perigoso se viver, melhor. Fogem. E ela entrega-se a ele, ao vício e à musica numa consumição sem horizonte. O vórtice vai-se torcendo e ela descobre que não anda a escutar o coração mas antes o apelo do risco. E volta para os altos Suíços onde o tal protector feito por David Niven se faz uno com ela. E de muitas possibilidades, uma ou duas em que acredito: ou a amizade com a doença à maneira de "A Montanha Mágica"; uma união tamanha que acredita toda a esperança para lá do resguardo puro - por isso o piano toca sem freios. Ou já a morte e o visionarismo do cinema no campo da plenitude sem nome ou estado - Dreyer e a absoluta fonte do Borzage "Song o' My Heart", ou do "Smilin' Through" que se encontra com "The Ghost and Mrs. Muir" algures a planar.

Numa construção que expulsa qualquer fundido de montagem - o hoje cross dissolve ou vulgo "preservativo" - mas antes procura sempre uma correspondência entre os elementos - as cortinas bailantes com as sombras fugidias, os discos partidos com a dança da tentação ou o som do teclado com a aflição e o nervo - o que está em causa é algo tão velho como a consciência - o viver o agora sem pensar nos resultados, ou apelar a algo como a eternidade. Em todo o caso, o engano e a utopia, a mágoa e o zénite. Questão grave que o movimento deambulatório acentua em perdição. Ou salvação. Sem respostas. 


Dos altos, do frio e dos sanatórios para as poeiras e as fúrias incendiárias das podres sementes do ódio que tudo querem envolver em "Ramrod". André De Toth utiliza a câmara para desvendar meticulosamente a partilha do homem com o meio e logo o poder que dá voltas na tripa, demorando-se em contemplações (mesmo que frenéticas e desfocadas) que parecem querer compreender o incompreensível. Da faca e esquadro duro dos policiais de outras andanças, uma esquadria mais resvalante mas tão concreta como aguentada por um olhar que insiste, que nunca dissimula ou descansa na metáfora. Joel McCrea, demasiado terno em palco viscoso, logo vamos saber, entregou-se ao álcool e à desgraça por perder os seus, e tudo o que quer saber é se o deus da terra em que vagueia tem razões para tal. Em torno, a mulher víbora que lhe lança do veneno feiticeiro que sabemos, o amigo de infância (Bill, génio de sorrisos e lágrimas misturadas que só poderia morrer com o cobarde tiro pelas costas) que jamais consegue assentar mas que não lhe vira as costas, o xerife convicto como o granito imperturbável ou os cavalos fieis, e a mulher alva que do primeiro sorriso lançado a McCrea e logo a ela devolvido nos dá a provar do que está certo e errado. Todos esses resistentes assomarão na clareza da moral derradeira. 

Corpos não param de tombar e de implorar junção. Dança ofegante entre o dia que parece revelar demais e a noite cava que preside à grande ruptura. Ramificações turvas em perseguição do recto. Para se chegar ao ponto limite onde toda a lei tem de ser ultrapassada pelo sentimento e pela justiça a sangue conquistada. O aço, o gelo e a imobilidade ecoante nos confins do tempo explodem no plano de preparação do tiro capital e na execução. Volta e reviravolta onde fica claro, na eterna escuridão da velha questão, o perigo da mistura de deuses e homens no nada. De onde o milagre, o além e as transmutações assentam por inteiro nas vontades e nas matérias. E o regresso a casa que se contrapõe ao outro filme de 1947 que De Toth parece fechar da mesma forma sendo tudo diferente. Entre os altos e os rasteiros, todos os embates. 

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