quinta-feira, 27 de novembro de 2014



Na recente e revolucionária apresentação - uma velocidade, clareza e retaliação sem lugar para equívocos - que Abel Ferrara fez do seu último trabalho, o profético e guerrilheiro “Pasolini”, este fez saber que tinha acabado de assistir ao Messias de Rossellini, e que considerava tal realizador tão maluco como aquele sobre o qual fizera um filme. Mais ainda, segundo Ferrara, Pasolini achava o mesmo. Pode-se, para efeitos de constatação, evocar o período com Ingrid Bergman e os diversos milagres para alguns, patetices ou banalidades para outros. Entrar por aqui seria dividir o mundo entre os chamados conscienciosos e bem pensantes – logo os que fazem da boa imagem o credo capital – e os inocentes ou tontinhos que perante o terror da realidade bruta se abrem à fulminação de todas as possibilidades. Aqueles que já viram tudo e leram tudo e compreenderam tudo e os que estão permanentemente com sede e nada sabem. Aconteceu que numa guinada de última hora a Cinemateca Portuguesa trocou a “Viagem a Itália” por “Francesco, giullare di Dio”. Esse mesmo protagonizado por um grupo de benfeitores que idolatram a pureza de Francesco e o seguem até aos confins das suas descobertas e constantes ajustes, grupo que tanto está próximo do divino sublime como das macacadas circenses. Entre a terra e o céu, pela força do livre e belo fogo que urge atiçar, envoltos nos flocos de neve da inexplicável alvura, vão comunicar com os passarinhos, bailar mais leves que o próprio ar puríssimo dos ermitões, ser joguetes de gigantes infantes trogloditas e perdoar sempre; mas igualmente roubam pernas de porco para consolar estômagos profanos, beijam leprosos sem os limpar como os limparia Deus, excitam-se perante a aproximação feminina. Mas o tempo e a pregoada modernidade ainda não expurgaram tudo, mais de sessenta anos depois, muitos ainda bateram com a porta da Félix Ribeiro por tamanha beatice ou por tamanha, reforço, patetice; outros deixaram-se levar na tal maluquice que Rossellini e Pasolini por boa ventura comungaram, não presos a princípios oficiosos da religião ou da etiqueta mas sim, sem freios, na perene loucura e contradição que consiste entregar-se à infinidade de possibilidades e combinações da existência para tocar o essencial. Entre o credo e o desejo, vale a acção, protegida pelo amor, medida de todas as coisas, finalidade de toda a insurreição silente de Roberto Rossellini. A forma é pura, o conteúdo resvalante.




“I always contradict myself” chegou pela noite e é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais horas propícias a questões soturnas. “João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei” é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo, que tanto se aproxima do fantasmático “Ruínas” como dele se desvia por completo em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível, assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli, em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe, disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida, será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa, abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente, a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova.

Entre Rossellini, Pasolini e Abel, João Bénard da Costa e o Manel, muito nos salvámos, reconhecendo o bem e a beleza e toda a outra ponta, não descurando nada disso e atirando-nos ao turbilhão. Demasiado humanos, é o que importa, dizem-nos eles. Façam-se vontades dessas, se assim se entender.

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