segunda-feira, 5 de janeiro de 2015




Poderiam ser milhares de outros, mas neste momento e por visões próximas, ligo Samuel Fuller a Clint Eastwood no que a redenções profundas convém ligar. Redenção sim, mas nem sei muito bem se o que está em causa é essa profundidade a que nos habituamos quando as contas nos fogem. Não se tratando da redenção fácil da desculpa, nem do evitar ou da oferenda, antes qualquer coisa que só pode ser vista e tacteada nas experiências derradeiras e urgentíssimas, quando se passa para lá ou para cá do bom senso e do sabido, onde o inferno (o icónico e o seu oposto) começa a ganhar imagem e corpo. Em “The Baron of Arizona” Vincent Price é um pioneiro maldito que tudo falsifica, inventa e reinventa a seu bel-prazer, dos sangues alheios às honras, da paixão à ambição sua, para algures entre a sua forca prometida e a solidão merecida, ter realmente medo do que é o amor e assim só de cabeça a ele se poder entregar. Bill Munny é o nome da excrescência em andamento representada pelo cadavérico Clint em “Unforgiven”, ou melhor dito, esse “ladrão e assassino bem conhecido, de um temperamento notoriamente dissoluto e violento.” Que Bill retorne para uma última matança eternos anos depois de ter posto de lado esse ofício, eternos anos depois de ter deixado de beber e de cometer os pecados análogos, e que mesmo assim, que mesmo na sua inclassificável animalidade final, se sinta o permanecer límpido da entrega a uma mulher e a uma transcendência (quem estava a ver o filme comigo sentiu isso pelo coração muito melhor do que este escriba tão poluído…) – o que noutras paragens se define pela salvação e a remissão – só se poderá compreender, se tal for possível para além da emoção imediata, pela entrada nos reinos do indizível, esse tempo antes da nascença e depois da morte que alguns dizem mais do que entrever na vida terrena. O Barão de Price é de uma ambiguidade que faz par com o editor-chefe do primeiro filme de Fuller, onde as aparências são já chave mestra para algo mais elevado e escorregadio e a moral segue caminho ainda mais curvado. Quer dizer que com tanta tropelia e repetição dos seus efeitos pessoais de desenrasque, a velha historieta do Pedro e do Lobo…, quando sobeja o bem sem medidas e sem negócios e o touro se volve carneiro, não temos mais nada a que nos amarrar e acreditar do que os olhos desse trota-mundos indiferente, ou seja, a luz do cinema e o interior humano, as suas infinitas correspondências. Como sempre, só come quem quer e, obviamente, quem já provou de algumas coisas sui generis e caminhou por alguns lados nada aconselháveis. “Se vir um homem aí fora, mato-o! Se algum sacana disparar...mato-o a ele, à mulher e a todos os amigos e queimo-lhe a casa! (…) Enterrem o Ned como deve ser! Não anavalhem nem façam mal às putas! Senão volto cá e mato-os a todos, filhos da puta!”; como se adivinha, já estou na sentença final desse danado sem norma que agia perante o mais cravado dos segredos. Aí, nessa penumbra e dissolução com que o vento o leva, ou mesmo no contra-luz final em que só resta o espírito permitido à silhueta, nem o cinema salva. Pois essa luz condena, é o mais óbvio e a regra dramática. A complexidade de tão grandes artesões, tão resolutos e tão sem-certezas, é a de convocarem o pior dos males possíveis para num raio tão breve que só alguns poderão ver e sentir – os disponíveis para a compressão sem lei – o sensível se expor todo e a justificação muda gritar. A grande e enaltecedora História e os reflexos preciosos que cegam. Nunca, é preciso nunca confundir, se está a falar de filhos da puta – anjos ou de mercenários – samaritanos, jamais, pois estamos nas sendas do indestrinçável e do indecifrável. Assim Fuller e Clint tanta coisa fizeram, alguns trabalhos ditos falhados ou menores, em que a garra e a intuição comeram qualquer tipo de razão e conveniência rumo a algo superior experimentado onde as coisas realmente estão na perspectiva devida – a perspectiva do Homem, bicho acossado e pleno, tantas vezes a ver da lama e outras tantas das estrelas. Campos-contracampos estilhaçados, raccords despedaçados, gatafunhos errantes, sucessão de planos mais próxima da convulsão quotidiana e um bocado longe do polimento da máquina industrial, etc., e mesmo assim tudo se percebe pela força da insistência que só pode ter o subnome de verdade. A terrível, tão obscena e tão básica…

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