A quente há coisas que não se devem fazer, mas, ai de quem não queira ver, "Visita ou Memórias e Confissões", filme que Manoel de Oliveira nos quis mostrar depois da sua morte física, é a capela final e perfeita que compõe e fortifica toda a obra e toda a vida. Para abrir a todas as significações, complexidades, sentidos e sentimentos que as palavras do próprio Oliveira como as de Agustina Bessa-Luís abrem. Tal como a lua - a lua dos Lumière ou a de Méliès - no seu volume consumado e na sua posição mais estratégica só semeia ambiguidades, assimetrias, leituras, possibilidades - Toda a beleza. Desde o genérico falado até à movimentação silenciosa da câmara que nos começa por ligar o poder e ordenação da natureza com o poder e ordenação dos homens, até à revelação da casa como mundo dentro do mundo - questão dos eternos retornos em concentração máxima, de dentro, por dentro - logo irrompe todo o centro e borda - as árvores como metáfora perfeita - da demanda que foi muito para além do Cinema mas que só nele como arte total pôde ser concretizado assim: Deus. Ideia e presença de Deus não como mera religião ou conforto, antes visão do absoluto. Visão e fé, assim Deus surge desde o negro inicial até ao final, na música e pelos verdes e encarnados dos jardins, no corpo hirto e guerreiro do cineasta (e desportista, aviador, inventor, etc.: "o descanso não é uma lei urgente!") até à fragilidade sumptuosamente romântica da sua bondosa, igualmente guerreira e prática esposa Isabel. Deus em tudo, naquele anjo de mármore que recebe outros anjos até aos retratos que devolvem o espírito e a inteireza. O mecanismo, a matéria, carne, verbo, o invisível, pecado e amor, num todo que apela à pureza - Oliveira explica isto no filme de forma definitiva - caminhando fantasmagoria e supremo presente para um sempre. Naturalmente, invenção sem freios, de onde os ecrãs compósitos, imagem fixa em relação passional com a movente, filmes dentro de filmes e mundos dentro de mundos outros ainda, não são festa da técnica mas antes a técnica em vida essencial, organismo que permite todas as voltas e todos os voos, isto é, transcendências. Igualmente as confissões demasiadamente terrenas, os crimes, a Pide, torturas, burocracias, factos que não são cuspidos, nem mesmo condenados, mas deixados a julgamento superior, evidente, por isso cândido. "Torna cada movimentação de câmara uma oração" ouvi Jean-Luc Godard dizer num ensaio para um seu filme, precisamente evocando a Paixão. Em "Visita ou Memórias e Confissões", como em "O Gebo e a Sombra" ou o "Francisca" anterior a este, cada nascença da luz, apagamento, viagem, ciclo, fixidez e brilho, adquire o toque e a essência indizível. Cada coisa, cada ínfimo, esfinge, cada nada, o mundo. "Salvar o mundo, aceitar o céu, esperar o divino, conduzir os homens...". Daqui e dos altos. O Absoluto Amor. Omnia.
terça-feira, 5 de maio de 2015
A quente há coisas que não se devem fazer, mas, ai de quem não queira ver, "Visita ou Memórias e Confissões", filme que Manoel de Oliveira nos quis mostrar depois da sua morte física, é a capela final e perfeita que compõe e fortifica toda a obra e toda a vida. Para abrir a todas as significações, complexidades, sentidos e sentimentos que as palavras do próprio Oliveira como as de Agustina Bessa-Luís abrem. Tal como a lua - a lua dos Lumière ou a de Méliès - no seu volume consumado e na sua posição mais estratégica só semeia ambiguidades, assimetrias, leituras, possibilidades - Toda a beleza. Desde o genérico falado até à movimentação silenciosa da câmara que nos começa por ligar o poder e ordenação da natureza com o poder e ordenação dos homens, até à revelação da casa como mundo dentro do mundo - questão dos eternos retornos em concentração máxima, de dentro, por dentro - logo irrompe todo o centro e borda - as árvores como metáfora perfeita - da demanda que foi muito para além do Cinema mas que só nele como arte total pôde ser concretizado assim: Deus. Ideia e presença de Deus não como mera religião ou conforto, antes visão do absoluto. Visão e fé, assim Deus surge desde o negro inicial até ao final, na música e pelos verdes e encarnados dos jardins, no corpo hirto e guerreiro do cineasta (e desportista, aviador, inventor, etc.: "o descanso não é uma lei urgente!") até à fragilidade sumptuosamente romântica da sua bondosa, igualmente guerreira e prática esposa Isabel. Deus em tudo, naquele anjo de mármore que recebe outros anjos até aos retratos que devolvem o espírito e a inteireza. O mecanismo, a matéria, carne, verbo, o invisível, pecado e amor, num todo que apela à pureza - Oliveira explica isto no filme de forma definitiva - caminhando fantasmagoria e supremo presente para um sempre. Naturalmente, invenção sem freios, de onde os ecrãs compósitos, imagem fixa em relação passional com a movente, filmes dentro de filmes e mundos dentro de mundos outros ainda, não são festa da técnica mas antes a técnica em vida essencial, organismo que permite todas as voltas e todos os voos, isto é, transcendências. Igualmente as confissões demasiadamente terrenas, os crimes, a Pide, torturas, burocracias, factos que não são cuspidos, nem mesmo condenados, mas deixados a julgamento superior, evidente, por isso cândido. "Torna cada movimentação de câmara uma oração" ouvi Jean-Luc Godard dizer num ensaio para um seu filme, precisamente evocando a Paixão. Em "Visita ou Memórias e Confissões", como em "O Gebo e a Sombra" ou o "Francisca" anterior a este, cada nascença da luz, apagamento, viagem, ciclo, fixidez e brilho, adquire o toque e a essência indizível. Cada coisa, cada ínfimo, esfinge, cada nada, o mundo. "Salvar o mundo, aceitar o céu, esperar o divino, conduzir os homens...". Daqui e dos altos. O Absoluto Amor. Omnia.
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