quarta-feira, 3 de junho de 2015


O máximo de leitura com o tempo adequado, a distância e a composição exacta e assim evidente, a conservação do imperscrutável, o humano como princípio e fim na sua relação com o meio – antes partir do que coçar, em 1928, já John Ford utilizava todo o manancial a que se apelidou de clássico nos anos 40 ou 50 do século passado, de onde a sua selvajaria, o indomável, nunca este na violentação formal ou no alarde mas antes do lado da crença (antes ainda da ideologia). “Hangman's House” abre em cenário de oficiosa guerra e cheiro a pólvora mas logo parte para as paisagens idílicas da Irlanda, entrando lamentavelmente noutra guerra mais suja e covarde, a da pequena mesquinhez, mal e poder exclusivo. 

O primeiro longo plano para Victor McLaglen é mais um abraço de admiração do cineasta, onde se pode apreciar o colosso da bondade, mas tudo começa no interior a vibrar e essa presença impassível grita que tem de matar um homem. Quando assim se grita, foras e dentros estalam. A limpidez começa a esfumar-se, irrompe água e isolamento, logo depois o fogo que a apaga, e uma consumição de visão dos infernos com os mortos de cada um a pularem de alegre vingança dentre libertação de cadafalsos e humilhações. É aqui que realmente se deu um encontro com F.W. Murnau, porque essa mansão, as suas linhas, arcos e ar de terror tem a mesma constituição dos castelos vivos e monstruosos e sedentos (mesmo que imperturbáveis) dos do alemão; e McLaglen é um Nosferatu que em positivo ou mantendo o negativo - pouco interessa pois estamos no terreno plástico, instintivo e abstracto do mal – vem vingar e espalhar certas coisas que se pretendiam esquecidas. Mas Ford é Ford e a restituição e devolução é feita de outra maneira, não como fim na danação mas como justiça demencial porque obstinada, intemporal e a ferros tirada. A ferros pois toda a lógica, causa e efeito, toda a coerência narrativa supostamente alicerçada na realidade que o cinema costuma seguir, todo o reconhecimento e cópia-conforme, tudo isso é vergado e, agora sim, assombrado para que se perceba que há limites que não se devem transgredir e que compete ao verdadeiro gesto cinematográfico como ao verdadeiro ser que respira livre cometer os massacres certos para que o bem possa ainda brilhar ou espreitar dos escombros.

O par jovem prometido e devastado, a morte do colossal carrasco, o diabo na terra idílica, o encapuçado de sorriso largo e mão generosa (chamar-se Citizen Hogan é tão afirmativo e representativo como hoje anacrónico e provocador). Isto seria o que estava no papel, Ford, na sua tradição, rasgou e baralhou na certeza que o caos da premissa tenderia, ainda antes das grandes rupturas e violações civilizacionais, antes da degradação política do contemporâneo galopante e cego, para a origem. Mesmo que nesse turbilhão fosse parcial pois em sintonia com os das margens, ou por causa disso em primeiríssimo lugar. Da cena mais bela desta jornada do pó à luz: a digressão em sonho pelas névoas e águas da salvação nessa barca e nesse éden por que passaram almas de Mizoguchi ou os meninos assustados de “The Night of the Hunter” ou os amantes perfeitos de “Sunrise”; até ao incêndio final perpetrado pelas línguas de fogo do firmamento. O que limpa e o que arde, do bem ao mal e a convulsão, cantos e gritos. É essa alternância que é via da existência. E o acreditar. Toda a criação.

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