segunda-feira, 31 de agosto de 2015
O Céu é dos Violentos. O bicho sozinho pela terra que na mais grave das provações à inelutável verdade deixa cair os braços. "Journey Into Light", ténue e tremente Stuart Heisler do meio do caminho, de título e todo purificador, alumia-se pela mesma luz do Borzage de "Green Light" ou do Henry King celestial; por todo o espaço e encapsulando todas as horas, à semelhança de "Chain Lightning", transcende a religião ou o amparo, para atingir um estado muito raro e completamente indizível - e tão natural como incompreensível - situado para além das sendas da fé, numa auscultação interior e universal em que o amor surge como fonte de todas as redenções e de todos os regressos ao berço e ao sangue, raiz fundamental. Sterling Hayden, o pastor, morre com a esposa e com o carneiro desenraizado que não conseguiu salvar; largado ao vento, cai-lhe em cima o anjo de Thomas Mitchell, puro e diletante, saca-o da lama, lança-o jornada fora até conhecer um pastor seu igual que na humilhação não desiste dele; Ser genuíno e fielmente livre que o deixa olhar a filha cega que tudo vai ensinar a ver, a ver na resolução dos muito novos ou dos muito velhos, criatura delicada e revolucionária levantada da pedra dos altares por uma Viveca Lindfors que exige a cada um a sua justiça, reinventado e inventado a Palavra para a oferecer sempre nova e invencível. Indigentes, sábios, vulcânicos ou mansos como águas baptismais vão-se unir quando essa luz alva, macia e resoluta começa a rasgar sobre e sob rostos e olhos que não deixam de buscar e rebuscar por toda a carne e por toda a alma. Na sublime sequência da feira popular morre-se e renasce-se numa amplitude que comporta todos os escritos e não escritos; da plenitude à tragédia e transfiguração, movimenta-se a vertigem da luta entre a finitude e a infinitude, sem qualquer tipo de insuflação que não o desígnio comum. Heisler, como Hayden e a sua amada, tal como o esfarrapado que dorme no banco do jardim sem se apagar, iluminaram e iluminaram-se uns com os outros nessa distância relativa entre o ser e nada ser, percebendo a impossibilidade da imitação de Deus e entregando-se inteiros como na mais bela assunção. Para além da fé humana e cinematográfica, com ela de coração, essa aceitação como gesto sem olhos, mente, escola; destino cósmico e singelo de cada bicho caído na treva. Dos muito, muito grandes.
"O sagrado é o que toca a criação. Quer seja um filme, quer seja um filho. São os meus limites, a fasquia que não devo ultrapassar. Ultrapassar isso é matar, ou, se quiser, matar-me matando.", disse João César Monteiro, o polémico e o bicho-do-mato. Esquecendo as superfícies e o espectáculo mediático que vai matando o mundo actual, obras-primas por antecipação e espezinhamento ou genocídios democráticos e encapuçados, fica a certeza que a paciente e tremenda sentinela do tempo tudo limpará. Ficando o fundo, massa abismal onde ainda nada perscrutamos. Sem pressas. Num até já.
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Já da fase final da luta de Stuart Heisler, antes de se ter envolvido em séries para televisão - ou seja, no mesmo tipo de lutas - "I Died a Thousand Times" é de uma só vez um dos seus filmes mais conhecidos, certamente um dos pontos altos, obra perfeitamente representativa dos anos cinquenta americanos e absolutamente insólita pois de temperamento único. Do Raoul Walsh de "High Sierra" e "Colorado Territory" partilha um crescendo silencioso e fino como um diamante a ser lapidado cerne adentro em sofreguidão; sangue a escorrer lentamente de um coração julgado distante ou irremediavelmente posto de parte; ou seja, tudo menos um remake técnico, antes nas mesmas correntes ou cantos pacíficos e revoltos como a superfície e o fundo de um rio em oposição. Jack Palance, em poderoso bloco moldado pelos tempos e lugares díspares experimentados, possui as certezas e as contradições dos que importam, e é aqui tão grande como tão distante de Humphrey Bogart ou Joel McCrea. Bruto e inenarrável, capaz de agredir selvaticamente quem suspeita não ser de confiança, pronto para dar o mimo ao fiel animal selvagem ou de estimação; de gatilho tão fácil como o seu sorriso gratuito ao ser despido. Violência e ternura em idêntico balanço e possibilidade, tendo a favor disso, se algo para além do genuíno fosse preciso, parecer estar sempre certo. Em instinto, natureza ou calejamento, numa lucidez que na caminhada presenciada passa por excepção.
A luta de um homem no escorregadio e na fatalidade, o que é só da vida e o que o cinema pode. Neste caso, alguém que depois de ser convidado a sair da prisão onde correu o risco de lá ter ficado para sempre, confundiu a aparência com o fundamental, a ilustração com a transcendência, o entusiasmo e a circunstância com o amor e eternidade. Quando esse homem se deixou encantar e chamar pelo fácil sorriso da inocência trabalhada, viu exposta a sua crosta monstruosa não correspondente ao interior. Quando reparou bem na mulher que clamava ao seu lado por nada além do todo dele, conheceu o verdadeiro significado e desenrolar do que se costuma apelidar de transfiguração. Que tudo se passe em volta de montanhas insuperáveis e a perder de vista, primeiramente tentadas nos enquadramentos das janelas confortáveis da Casa e só sonhados pelas palavras e sensações próximas; depois, realmente trepadas, ousadas, num calvário que corresponde ao forçamento e violação da norma e das prisões rasteiras, o que mete medo é o que mais atrai, o que queima e repele é a morada última.
Shelley Winters, a paixão fundamental - mesmo que não se deva culpar o anjinho deformado para além do físico que age para onde o vento sopra - é imagem e fala com esses altos que apelam a altos ainda outros, rarefeitos e só sentidos em espírito, no acreditar supremo; Mulher e Montanha, cimos, detêm a beleza escondida e revelada na mesma face e corpo, composição; assim, se os planos respiram tanto e possuem tanto ar no interior, é para caber neles tamanha fúria de desejo e de fuga. Quando se dobram e torcem, nesses desequilíbrios desesperantes que escandalizam o scope, só a reviravolta pode advir; quando tudo se refaz em plenitude, se ousa o paraíso já limpo ou ainda limpo, a tragédia engole. A libertação total com a beleza total só conduz à morte ousada; revolucionária pelo golpe aplicado às fundações falsas. Tragédia velha e perene contemporaneidade, sinfonia que só conheceu maestros destes em Griffith, Cimino ou Herzog, poucos mais; e que hoje em dia se banaliza no anedotário sociológico e infantil, simbolismos inúteis condenados ao degredo. A saudade e a dor.
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
sábado, 15 de agosto de 2015
"It makes no difference what men think of war, said the judge. War endures. As well ask men what they think of stone. War was always here. Before man was, war waited for him. The ultimate trade awaiting its ultimate practitioner. That is the way it was and will be. That way and not some other way."
Cormac McCarthy, "Blood Meridian"
Antes de McCarthy o ter dito já Abraão o tinha provado. E, antes dele, Noé. Antes de Noé, muitos outros. Daqui para a frente, tantos mais. Essa caminhada para uma terra da verdade, ou só para uma qualquer terra, prometida ou sacada, onde a paz consiga momentaneamente embalar a guerra. Um terrífico filme realizado por André De Toth na quentura de 1944 Depois de Cristo, crucificado "None Shall Escape", mostra, de frente e nas voltas que a câmara não deixa escapar, como o mal pode preceder qualquer formação ou contexto, escondido nos escombros do animal para se soltar no momento propício. Nem a paixão pela mulher, a criança desarmada ou a beleza natural tiveram qualquer chance de se imporem ao homem que descobriu no nazismo a sua forma de desenvolvimento e expressão, o modo de ser fiel e de praticar o seu bem. No princípio como no fim, a mesma convicção, pulsão, acossamento, unindo-se as pontas. De Toth, forçando o impossível e a reescrita, ainda ousou meter a lente colada ao chão e às flores, com juventude limpa e apaixonada em volta; ainda recuperou o menino manipulado pela besta e captou grandes-planos de sorrisos indestrutíveis, mas, infelizmente, o lirismo casou com o horror, nada procedeu e a sentença final do condenado ficou mais uma vez a saber que a nossa justiça nada pode contra a ontologia ou os fundos dos fundos da matéria e do resto de que somos feitos. Uma menina morta levada em procissão e o respectivo altar ficou como a imagem mais inesquecível, tristemente.
Michael Cimino, no abraço que recentemente o festival de Locarno lhe deu, falou na doença imemorial da guerra, como todas são iguais, sem tempo nem lugar diferenciador, sem medida de valor, importância ou sofisticação. A guerra sempre esteve connosco, antes de nós, esperta, à espera, nos descampados ou nos escritórios. Cimino, raivoso, magoado, humilhado, mas em pé, vivo e esclarecido como só poucos o conseguiram, deixou escorrer lágrimas pois já não aguenta essa doença aplicada aos jovens pelos velhos. Generoso, de coração nas mãos, clamou pelos ombros das Mães e pelos gestos da paixão, a criança e a inocência. Desassombrado, não encontrou esperanças a não ser mostrar à chacina uma chacina superior, a luta de cada um com ela, sendo mais duro do que ela - foi o conselho que deu à jovem que pulou a cerca e que lhe perguntou como lutar contra tanta agressividade, tanto ego, competição, sangue derramado. Muito duro e muito frágil, sem certezas e cheio de garra, sem querer ser padre, professor ou evangelista, apenas conversar um pouco, mandou-nos ir à guerra da felicidade. Sem choradinho, com o impacto do pior instrumento bélico. Foi o melhor filme que vi este ano, com todos os sonhos guardados.
"Thunder Bay", Anthony Mann, em 1953. Mas a guerra de que regressam James Stewart e Dan Duryea é a mesma do filme de De Toth. Um pouco selvagens e vagabundos, misturando honestidade e propensão para a charlatanice, não têm no seu historial momentos que os façam recomendáveis. Chegam a uma pequena terra com ela já fisgada, em busca do danado ouro negro, e a perene invenção e desenterro que os homens possuem para o conflito vem logo ao de cima. Ainda no outro dia um amigo me disse que no cinema clássico Americano as coisas só começam a correr realmente bem quando já não podem correr pior. Então, os dois forasteiros, arranjam um poderoso aliado que se lembra de quando foi um zé-ninguém que acreditou em qualquer coisa, e em coisas ditas impossíveis. De um lado, os prospectores que querem o avanço das coisas, do outro a população local que prefere contentar-se com a pesca. Toda a tragédia em génese e evolução. Só que Mann, sabe-se, sempre furou e cavou até lugares e razões dúbias, negras, caladas, e então não construiu um libelo progressista nem o seu contrário, mas antes uma complexa arena de questões onde ninguém está abrigado ou confortável. O sonho de Stewart é ultrapassar-se, ultrapassar a lógica, fazer vir ao de cima algo que se formou de coisas mortas, sepultadas, jorrando orgásticamente para safar o presente e auxiliar o futuro - e assim unir os tempos, diz o Stewart que não dorme e se apaixonou por uma mulher marcadíssima. O sonho dos pescadores é manterem-se unidos, não levantarem ondas, terem o seu para o dia-a-dia, afastar o mal que veio de fora. Nada a fazer, e depois de alguns mortos e feridos, estala mais uma guerra. Os pobres, mar fora, para destruírem os capitalistas - a composição das embarcações no palco é igual a Cristóvão Colombo ou aos conquistadores do Novo Mundo, à visão de Pocahontas, aos piratas e ao desembarque na Normandia. Só que o petróleo que tudo desencadeou tudo vai salvar, jorra mesmo e na festa e união aparente não há milagre algum. O milagre dá-se na boleia com que Mann nos dá o The End. A perpetuação perpetua-se. A imensa força víscera desta empreitada - a um tempo orgânica, animal e mineral - espalha-se das veias e da morfologia daqueles seres em tensão até aos enquadramentos, à profundidade, movimento e sucessão de planos. Cada plano é obviamente um filme, o conjunto é a nossa história. E fica-se mais uma vez a saber da indomabilidade e imprevisibilidade do todo. Para lá ou cá das culpas, penitências e julgamentos fáceis.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
We go!
"The World in His Arms", Raoul Walsh em aventuras e desventuras com a vida (a velha viola...) pelos anos cinquenta, prova que a fórmula Hawksiana de meter algumas cenas fortes como pilares e alisar bem (não só encher) o que está entre eles, se bem entendida e executada, valerá sempre ouro. Bailados esvoaçantes e suados, pancadaria de idêntica qualidade, umas perseguições sejam elas como forem (desde que Hawks recomendou a William Friedkin meter uma de carros num dos seus primeiros filmes ele levou o conselho à letra para os seguintes e tornou-se Cineasta) - e a que acontece aqui entre águas inéditas só pode ser comparada a "Hatari", Don Siegel ou "Miami Vice" - azuis e encarnados celestes contra fundos e correntes de ar ao negro e ao prateado largados, um brutamontes Português afamado; e, não era preciso dizer, o amor de um homem por uma mulher e a batalha até aos confins do mundo, reduzindo as noções de "amour fou" como encontradas nas enciclopédias a esboços bem comportados. O verdadeiro e o maravilhoso. Como se sabe, quem tem olhos na cara e quem aceitou mergulhar algumas vezes onde o sangue pulsa mesmo e não se ficou só pelas salas e salões prestigiantes, Walsh acatou o conselho do patrão D.W.Griffith e para aprender a arte do cinema meteu-se nas ruas e nos bordéis, nos mares e na família, com calejados, condenados e príncipes; assim, nenhuma panorâmica, sentimento ou sentido lhe escapou, e cada vez que alguém aparece à frente da câmara não é só para fazer o seu número e receber o cheque mas sim para se perceber melhor e assim registar da massa de que somos feitos. Seja um beijo, seja um murro, a pressão e a distância surgem perfeitamente exactos, a crosta e a pele da cor e temperatura conforme, o interior inscrito no exterior, nos beiços e na curvatura do corpo.
Portanto, é a história de um capitão pirata que acha o seu tudo, o perde e o volta a achar, num curto arco que é o do infinito; pelo meio, as zangas e bebedeiras do costume, a frontalidade que permite a amizade e a violência de dizer e fazer o que deve ser feito ignorando os não-ditos fornecedores da deplorável bílis; o inquestionável e o imperdoável - na porrada, bebe-se, debate-se, ri-se e chora-se. Com o maravilhamento que permite que o infante perceba tudo sem legendas, credos ou políticas. A questão do território ou do genocídio animal (como o humano preservado na dureza) perde o efeito de denúncia do momento para ser simplesmente questão do bem e do mal entendida em cada lugar e tempo por todos. E Walsh borrifa-se para o realismo escolar e prefere o visceral, o fabuloso, o vibrante. É tudo supostamente irrealista e até mal-amanhado de perspectiva ou proporção, acossado de grão ou de pixels, mas está certo pela emoção, pela acção, pela viagem partilhada na infindável aventura do genuíno cinematógrafo sempre propenso a devolver o risco e a generosidade de quem por ele olhou e se disponibilizou - primeira vez; arquitectura sublime da transfiguração; derradeira vez. Meu Deus... como terá sido criticado o bravo Walsh ou como hoje seria atirado à lama e às tainhas de esgoto pelos bons estudantes e bons moralistas que caçam cada erro e passada em, dizem eles, falso... Walsh, como Eastwood, Gray ou Manoel de Oliveira soube que se deve utilizar as sombras ou o CGI, o tudo ou o nada, noites austeras e pôr-do-sol artificial, Aristóteles e os trabalhos da contemplação e Peckinpah com a lentidão e a dor do estripamento, basta que se compreenda a paz do anjos ou o fogo dos infernos. The World in His Arms, no final, Adão e Eva, a noite azul, o excesso e o absolutamente certo.
sábado, 8 de agosto de 2015
Leio, na velha biografia que lhe dedicou a grande professora de Cambridge que foi M.C. Bradbrook, que Malcolm Lowry ofereceu nem meia dúzia de exemplares do seu "Under The Volcano". Mas um deles, autografado, com dedicatória, mandou-o para o seu antigo colega de Cambridge, o actor Michael Redgrave. Pois, isto ainda me enternece a lembrança daquele mundo em que os escritores viviam para além do "seu meio", em que toureiros e boxeurs liam poesias, Hemingway (ou foi Picasso?) apadrinhava os filhos de Lucia Bosé, Camus apaixonava-se pela Casarès, actrizes namoravam psicanalistas franceses, Picasso ia aos touros, e Roger Vailland escrevia sobre a Volta a França. Isto ultimamente tem ficado tão pequenino, é tudo tão familiar-corporativo, que cada arte parece é um "mercado do taxi".
Jorge Silva Melo, claro, no contentor do costume.
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
"Pylon"
é uma das grandes obras de William Faulkner, tecida numa aparente linearidade
que é a cada instante estilhaçada precisamente pelo presente atropelado, pelo
"agora" que consome cada um daqueles seres sem passado nem horizonte.
Tal como uma tecedeira que sutura tecido injuntável e sabe a causa
impronunciável de tal, quem o trajou e o que nele fez, como rasgou e o que
secou. Passados e horizontes em corpo presente e exposto, sendo a memória uma
memória do presente, transformando-se os longínquos mosaicos e o compósito
Faulknariano em parede ou ecrã reflector concentracionário, cegante. A epifania
do jornalista que se espanta ao descobrir mentes e carnes sobre as quais não é
possível resumir como manda a regra da profissão só pode ser aguentada no
álcool, esse purgatório dos muito honestos. Mentes e carnes frias, mecânicas,
conservadas e a trabalhar nos óleos e pelos combustíveis que nos permitiram
ganhar asas, entrever o derradeiro abismo e a imortalidade. Veias de aço, ossos
como inquebráveis tubos, sentimentos objectivos, electricidade e instinto.
Órbitas avessas que olham para dentro do próprio crânio. A fome e o sexo e a
dor em circuito programado. Sem união para lá da união desconhecida permitida à
tecnologia. Vida e morte fundidas e carentes de importância como no sono
profundo e sem despertador. É disto que o jornalista cadavérico que se parece
com um espantalho dá de cabeça quando pensava que de tudo já tinha visto e
rasurado. A corrida dele com os limites e a justiça, a poesia e o ininteligível,
vai arder e enlaçar no fogo dos pilotos, dos para-quedistas, das esposas petrificadas e desses mecânicos
que só parecem realmente existir nos breves segundos onde no céu procuram a
meta como quem por Deus grita. Não é curiosidade mórbida ou antropologia
oportunista o que faz mover o homem das letras em direcção aos super-homens suicidas,
antes algo da ordem, visceralmente, do puramente humano, isto é, tocar uma
sensibilidade que de tão aflorada e antiga corre o risco de ser percebida e cristalizada em altares patológicos. Todos eles, e o jornalista alcançando-os,
são especiais pois não se prenderam ao suposto e no seu tudo ou nada clamam o
absoluto, nada menos, bilhete para os nossos sanatórios terrenos. A prosa de
Faulkner alinha-se para rebentar numa violência de realismo inacreditável que
assim é pela nossa imemorial tendência de amarrar o fácil e o óbvio, e pinta-se
num gótico que é tão lancinante e complexo e inaugural como escravaturas e
bíblias. A peça final para o jornal ou para nada que nos é dada a cheirar, a
descarnada e a polida, vinda do céu e do lixo e do whiskey, manda o cosmos
putrefacto da perpetuação do dia-a-dia manipulado para o inferno engomado. “A
integridade de uma pessoa encontrar-se-á sempre naquilo que não consegue fazer?
Penso que, em geral, sim, porque o livre-arbítrio não significa um só arbítrio,
mas vários, que se confrontam no mesmo indivíduo. A liberdade não pode ser
concebida simples. É um mistério, um mistério que a um romance, mesmo um
romance cómico, apenas pode ser pedido que aprofunde” , isto é o que Flannery
O'Connor pergunta e responde no prefácio da segunda edição do seu “Wise Blood”,
e que se torna verdade simples e geométrica da tragédia de “Pylon”.
"The Tarnished Angels", visão e sangue fervente de Douglas Sirk, tem dentro uma das mais belas personagens de todo o cinema e de toda a vida, Burke Devlin, o jornalista, aqui nada cadavérico e tão lúcido como o de Faulkner, comoventíssimo e estóico Rock Hudson familiar de todos os dissidentes com causa, cheio do som e da fúria e da raiva e coração dos que já não admitem a lenta e porca burocracia do adormecimento imposto, alguém que não hipoteca a casa para agarrar sucessos mas que simplesmente a oferece a quem precisa, desligado da posse e da carreira. Perdido que se acha nessa perdição fatal, inscrita na sua têmpera, patrão ou alma de todos os seres abandonados e sem lugar, numa reza cósmica e rumorejante, sem lei nem aprovação política. Talvez a pele e os órgãos desgalgados e estripados de Faulkner se tinjam aqui de romantismo secreto, velado em amor puro para lá dos altos, vindo num vento que urge amarrar antes que se esfume para todo o sempre. Como é que um herói de guerra intempestivo, uma mulher estonteante como os anjos da terra, um miúdo atormentado e um mecânico fiel demais à desregra se contentam com circos, feiras e humilhações? Parece ser tudo isto e o segredo deles o que começa por interessar Burke. Assim, suspende a bebedeira crónica para tentar, sempre tentar e talvez nunca alcançar, ver o brilho inaudito que só na mácula reflecte e se esconde revelado. O grande carnaval que no livro se aproxima do deboche, em Sirk, e apesar da horrenda troca sugerida para o piloto conseguir a nova máquina, gira e rói em terrenos e sussurros da solidão, unindo bem e mal e tudo na liberdade e no desejo sem margem para dúvidas do estômago queimante. Burke tem com a pára-quedista aparecida Dorothy Malone igualmente a mais bela das paixões, concretizando-se nos olhares e nos dentros da alma, até ao fundo - irmandade e Mulher, ídolo e carnação. O rodopio e a entrega de Burke, o genial discurso sobre a fascinação do homem pela superação e pelos sonhos superiores, máquina de precisões e comoções, as mãos vazias, a música da infância - pela câmara de Sirk, o espaço agiganta-se para o mínimo e o íntimo sobressaírem, infindável scope para invisíveis fluidos e calores, onde no mundo pós-apocalipse são necessárias novas e letais emoções, mundo assim que concorre para todos os tempos em que a veracidade é lei, utopia suprema a agarrar como o tal vento. R. W. Fassbinder amou o filme e falou a propósito do medo que todos têm, esse desamparo, fragilidade, mesmo sacrifício. Medo que não nasce das dúvidas do modo de vida mas de certeza da possibilidade (sempre a maquinar) de se inserirem na intolerável máquina outra e de travões bem menos afiados e rasteiros, a máquina da realidadezinha fabricada, cobarde e mascarada que marca e engaveta por cartão de identidade e demais papelada como se marca o pobre gado. “Tomorrow? I'll probably be drunk” é o que o tão belo de olhos raiados das lágrimas da verdade esfaqueia a quem lhe manda fazer amanhã o que ele pode fazer hoje. Se só existisse o ontem não havia aflições, disse Faulkner certo dia. E é aqui a medida de todas as coisas. Como a ferida a respirar.
"The Tarnished Angels", visão e sangue fervente de Douglas Sirk, tem dentro uma das mais belas personagens de todo o cinema e de toda a vida, Burke Devlin, o jornalista, aqui nada cadavérico e tão lúcido como o de Faulkner, comoventíssimo e estóico Rock Hudson familiar de todos os dissidentes com causa, cheio do som e da fúria e da raiva e coração dos que já não admitem a lenta e porca burocracia do adormecimento imposto, alguém que não hipoteca a casa para agarrar sucessos mas que simplesmente a oferece a quem precisa, desligado da posse e da carreira. Perdido que se acha nessa perdição fatal, inscrita na sua têmpera, patrão ou alma de todos os seres abandonados e sem lugar, numa reza cósmica e rumorejante, sem lei nem aprovação política. Talvez a pele e os órgãos desgalgados e estripados de Faulkner se tinjam aqui de romantismo secreto, velado em amor puro para lá dos altos, vindo num vento que urge amarrar antes que se esfume para todo o sempre. Como é que um herói de guerra intempestivo, uma mulher estonteante como os anjos da terra, um miúdo atormentado e um mecânico fiel demais à desregra se contentam com circos, feiras e humilhações? Parece ser tudo isto e o segredo deles o que começa por interessar Burke. Assim, suspende a bebedeira crónica para tentar, sempre tentar e talvez nunca alcançar, ver o brilho inaudito que só na mácula reflecte e se esconde revelado. O grande carnaval que no livro se aproxima do deboche, em Sirk, e apesar da horrenda troca sugerida para o piloto conseguir a nova máquina, gira e rói em terrenos e sussurros da solidão, unindo bem e mal e tudo na liberdade e no desejo sem margem para dúvidas do estômago queimante. Burke tem com a pára-quedista aparecida Dorothy Malone igualmente a mais bela das paixões, concretizando-se nos olhares e nos dentros da alma, até ao fundo - irmandade e Mulher, ídolo e carnação. O rodopio e a entrega de Burke, o genial discurso sobre a fascinação do homem pela superação e pelos sonhos superiores, máquina de precisões e comoções, as mãos vazias, a música da infância - pela câmara de Sirk, o espaço agiganta-se para o mínimo e o íntimo sobressaírem, infindável scope para invisíveis fluidos e calores, onde no mundo pós-apocalipse são necessárias novas e letais emoções, mundo assim que concorre para todos os tempos em que a veracidade é lei, utopia suprema a agarrar como o tal vento. R. W. Fassbinder amou o filme e falou a propósito do medo que todos têm, esse desamparo, fragilidade, mesmo sacrifício. Medo que não nasce das dúvidas do modo de vida mas de certeza da possibilidade (sempre a maquinar) de se inserirem na intolerável máquina outra e de travões bem menos afiados e rasteiros, a máquina da realidadezinha fabricada, cobarde e mascarada que marca e engaveta por cartão de identidade e demais papelada como se marca o pobre gado. “Tomorrow? I'll probably be drunk” é o que o tão belo de olhos raiados das lágrimas da verdade esfaqueia a quem lhe manda fazer amanhã o que ele pode fazer hoje. Se só existisse o ontem não havia aflições, disse Faulkner certo dia. E é aqui a medida de todas as coisas. Como a ferida a respirar.
“ - Porque devem eles matar? Porque é necessário
matar? Cyrus estava profundamente comovido e falou como nunca tinha falado. -
Não sei. Estudei as coisas e talvez saiba o que elas são, mas estou muito longe
de saber porque são. E não deves esperar encontrar pessoas que te compreendam o
que fazem. Tantos actos são instintivos: a abelha fabrica o mel e a raposa
caminha no riacho para enganar os cães. A raposa não sabe porque age desse
modo, e qual a abelha que se lembra do inverno e prevê que ele há de voltar?”
“A Leste do Paraíso”, John
Steinbeck
Uma
das mais complexas, soturnas, sinfónicas e progressivamente luminosas criações
que vi e ouvi nos últimos anos chama-se "True Detective" - que
importa se é a chamada série para televisão, uma curta-metragem de dois minutos
ou um vídeo arrancado em telemóvel por alguém que não pôde deixar de o fazer
sob consequência de paralisar, alguém que descobriu uma refracção inédita, uma
poética, duração, narrativa, desconhecido... quem diz o contrário é o mais
rasca, inútil e medricas dos moralistas, e, como diz a personagem de Rust Cohle
nessa criação - Matthew McConaughey, o mais bestial (de besta mesmo, e portanto
com as ténues dádivas conservadas) dos actores - quem dá conselhos fala para si
próprio - onde o passado e as acorcovadas questões da criação e da existência e
da evolução se unem para assombrar cada passo, cada relação, certeza, credo ou
filosofia. Nada ganha resposta - o espaço, o tempo, os eternos retornos,
ciclos, Deus, o nada. Cúmulo de uma construção em que o meio orgânico e
indomável que nos acolhe - do demónio à florestação - embate com o racional e o
humano para um envolvimento de impossível separação; a técnica e ontologia
cinematográfica (como diria televisiva ou amadora) nasce e corre por dentro, de
onde tudo está certo, por isso belo e terrível, sem uma nota em falso que não a
privilegiada a tudo o que existe. Se o citado Faulkner ou Nathaniel Hawthorne
presenciassem tal, de certeza quereriam filmar, juntar a imagem e o eco, o que
se vê e o que se escuta com o que se pensa ver e se pensa escutar, mais o que
transcende a ideia feita e a imaginação; esquecer e convergir na elipse, condensar
universos na presença e na respiração antes ou depois das palavras – espelhar e
materializar a abstracção e a monstruosidade fantasmática nelas latente. Rust
Cohle, Burke Devine, tão opostos, tão semelhantes, ali onde os extremos não só
se tocam mas antes de tudo se encontram. Rust, que não quer acreditar nem amar,
apenas ser testemunha do embuste e da destruição, sacrifica-se pela terra toda,
em alcance também ele imulatório. Ou seja, mais um anjo, maculado e imaculado
pelo mais belo acto de continuar, erguendo e destruindo, para a frente. “Por
isso não desfalecemos; e ainda que o nosso homem exterior se vá consumindo, o
interior, contudo, renova-se dia-a-dia.” lê-se nos Coríntios. Tal é levado não
a radicalismos cósmicos mas a necessidades dessas, o combustível da resistência
e do avanço, via-crúcis dos honestos e amantes calados. Um dos mais belos, e
tão sofrente ou não, personagens que nos falaram. Quando a noite avança, o seu
colega possuído por Woody Harrelson, tão em pé como na alvorada, passadas as
intempestivas provações, une-se a Rust, já sem evasivas. E a dimensão de
ventura que perpassou todo o curso é desmitificada, a metafísica extingue-se, a
substância revela-se - no final só há de haver um tempo e um espaço, aglutinados
pelo amor. Ficam e ficamos para lá das estrelas, na mais eterna das batalhas, a
luz furando na escuridão, a escuridão a precisar da luz, sem barreiras.
terça-feira, 4 de agosto de 2015
James Jones! Gosto destes escritores rápidos que inundaram com a sua experiência da guerra não só as livrarias do mundo (eram mesmo bestsellers...) como os cinemas. São dele os romances que deram origem ao "Até à Eternidade" e "The Thin Red Line", belos filmes (eu gosto de Ziinemann, adoro os "Sundowners"). E sobretudo quem escreveu "Some came running", livro atacado por todos os lados (menos por um - e esse istmo chamou-se Vincente Minelli, claro) por ser mal escrito, precipitado, incompleto, desfeito. Não acredito, vou ter de ler, o filme é do mais lindo que há e a literatura não é só o sublime "Nus e os Mortos" de Norman Mailer - é que eu adoro "escritores menores".
Jorge Silva Melo, no único facebook que importa.
Jorge Silva Melo, no único facebook que importa.