Gosto muito de Mathieu Amalric. Como realizador, actor, nas entrevistas, postura, e aposto que é um tipo porreiro. Gosto muito dele nos altos e posso continuar a gostar mesmo nos falhanços. Arrisca, procura fazer e ver coisas num ângulo não tão óbvio, noutras ocasiões é absolutamente simples e claro, tão terno e amigo como fugidio, prestes a sumir-se num piscar de olhos ou o suporte que sabemos encontrar no sitio do costume e na hora do costume. Dá para falar densamente dos filmes que fez com Jean-Claude Biette ou André Téchiné, mas o que dele prefiro por agora e para muito tempo é "Tournée", uma dessas suas espaçadas realizações onde também é o protagonista. Clássico e claro, para seguir esse homem cheio de defeitos e virtudes, contradições e certezas, ofegante e vivo, inspirado nas míticas figuras de Humbert Balsan e de Paulo Branco, em comovente périplo para não abandonar à sorte as suas meninas de espectáculos inclassificáveis e belos por assim ousarem. Ou seja, simples, clássico, claro, e raro, muito raro, pois como todas as obras que se enchem de humildade para seguir assim um corpo e uma alma em consumição nobre são nada menos do que únicas. E sobre elas podem-se escrever milhares de páginas ou somente oferecer as lágrimas ao escuro e à solidão. Mas por agora a cena mais sublime deste projéctil silencioso, sublime não da forma divina a essa experiência sempre associada, sim o sublime largado ou nascente do aparentemente corriqueiro: a cena em que o corredor abastece numa estação de serviço e tem uma relação com a menina da caixa. Relação fugaz, absoluta, dois ou três minutos a valerem por uma vida inteira lado a lado. Não dizem um ao outro nada de jeito... ele diz que vai ver os filhos... matar alguém... fuma e guarda o telefone em infracção, esbugalha os grandes olhos aparvalhados; ela diz-lhe a que horas vai largar o trabalho... diz-lhe ainda que o namorado a vem buscar... o que vão fazer juntos... e da pena de não o poder conhecer melhor. Mas nesses sorrisos, corares, patetices e muitas verdades como quem não quer a coisa, estão núpcias, luas-de-mel, discussões, momentos perfeitos, filhos e viagens aos confins do planeta. Muito amor, platonismo, vias de facto, e etc., com ela e ele a transpiraram e tudo, com ela a compor o cabelo e novos cigarros preparados para o fogo. O vidro que os separou ou o "boa-noite" seco e engasgado só os aproximou adentro. Passou-se tudo o que interessa, inclusive um grande-plano que dura e dura e dura, dela, alguém que não mais irá aparecer na história, para aparecer com certeza muitas vezes na cabeça e sonhos dele. O sublime à primeira vista invisível porque presente no singelo, no dia-a-dia, entre a padaria e o jardim de família, a revelar-se nas frequências muito baixas ou nos tempos mortos. E Amalric junto a um Manuel Mozos, um Jorge Silva Melo ou um Robert Mulligun, um Xavier ou The Pursuit of Happiness, os namorados a correrem e a câmara com eles sintonizada. Um passo, outro passo, um olhar, um suspiro, cada qual podendo ser o centro e a diegese da empreitada. Muito de mansinho, sublime.
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Gosto muito de Mathieu Amalric. Como realizador, actor, nas entrevistas, postura, e aposto que é um tipo porreiro. Gosto muito dele nos altos e posso continuar a gostar mesmo nos falhanços. Arrisca, procura fazer e ver coisas num ângulo não tão óbvio, noutras ocasiões é absolutamente simples e claro, tão terno e amigo como fugidio, prestes a sumir-se num piscar de olhos ou o suporte que sabemos encontrar no sitio do costume e na hora do costume. Dá para falar densamente dos filmes que fez com Jean-Claude Biette ou André Téchiné, mas o que dele prefiro por agora e para muito tempo é "Tournée", uma dessas suas espaçadas realizações onde também é o protagonista. Clássico e claro, para seguir esse homem cheio de defeitos e virtudes, contradições e certezas, ofegante e vivo, inspirado nas míticas figuras de Humbert Balsan e de Paulo Branco, em comovente périplo para não abandonar à sorte as suas meninas de espectáculos inclassificáveis e belos por assim ousarem. Ou seja, simples, clássico, claro, e raro, muito raro, pois como todas as obras que se enchem de humildade para seguir assim um corpo e uma alma em consumição nobre são nada menos do que únicas. E sobre elas podem-se escrever milhares de páginas ou somente oferecer as lágrimas ao escuro e à solidão. Mas por agora a cena mais sublime deste projéctil silencioso, sublime não da forma divina a essa experiência sempre associada, sim o sublime largado ou nascente do aparentemente corriqueiro: a cena em que o corredor abastece numa estação de serviço e tem uma relação com a menina da caixa. Relação fugaz, absoluta, dois ou três minutos a valerem por uma vida inteira lado a lado. Não dizem um ao outro nada de jeito... ele diz que vai ver os filhos... matar alguém... fuma e guarda o telefone em infracção, esbugalha os grandes olhos aparvalhados; ela diz-lhe a que horas vai largar o trabalho... diz-lhe ainda que o namorado a vem buscar... o que vão fazer juntos... e da pena de não o poder conhecer melhor. Mas nesses sorrisos, corares, patetices e muitas verdades como quem não quer a coisa, estão núpcias, luas-de-mel, discussões, momentos perfeitos, filhos e viagens aos confins do planeta. Muito amor, platonismo, vias de facto, e etc., com ela e ele a transpiraram e tudo, com ela a compor o cabelo e novos cigarros preparados para o fogo. O vidro que os separou ou o "boa-noite" seco e engasgado só os aproximou adentro. Passou-se tudo o que interessa, inclusive um grande-plano que dura e dura e dura, dela, alguém que não mais irá aparecer na história, para aparecer com certeza muitas vezes na cabeça e sonhos dele. O sublime à primeira vista invisível porque presente no singelo, no dia-a-dia, entre a padaria e o jardim de família, a revelar-se nas frequências muito baixas ou nos tempos mortos. E Amalric junto a um Manuel Mozos, um Jorge Silva Melo ou um Robert Mulligun, um Xavier ou The Pursuit of Happiness, os namorados a correrem e a câmara com eles sintonizada. Um passo, outro passo, um olhar, um suspiro, cada qual podendo ser o centro e a diegese da empreitada. Muito de mansinho, sublime.
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