quinta-feira, 26 de novembro de 2015


Nem o mais medalhado script doctor, o mais pró-activo dos estagiários da coluna de humor do último grito em suplementos culturais ou a vedeta da agência de escrita criativa que faz o horário nobre conseguiria conceber algo tão ridículo e inverosímil como o genial Philip Yordan conseguiu em papel para "The Chase" (* mais de dez anos antes de "Thunder Road", Robert Mitchum, indómitos, liberdade, Coreia), em 1946, a partir de Cornell Woolrich, o tal de Janelas Indiscretas. Um veterano de guerra que depois saberemos atormentado, sem cheta para um hambúrguer, encontra uma carteira cheia de dinheiro, gasta só o pequeno-almoço, devolve-a aos donos que são saídos de um conto de Edgar Allen Poe, esse mundo e essa luz começa-se a parecer também com Poe, e ainda por cima ganha a razão e a mulher da sua vida, e ou é tudo isto ou mesmo nada disto? Como se não bastasse semelhante tratamento ou descaramento, no centro do filme temos um flashback que pode ser o mais rápido e nefasto dos flash-forwards como premonição divina ou infernal, em sintonia com o deus na terra que é a anátema do veterano - flash que é o mais verosímil e, tem mesmo de ser, realista. Neste chafurdanço todo, a confiança que Yoarden teria de ter nas atmosferas escorregadias do destino e dos estúdios e na fibra dos rostos como na movimentação dos corpos (com o caparro de Robert Cummings estava metade ganho), em Arthur D. Ripley e nos restantes artesões para apagarem e vergarem as luzes quase todas do planeta câmara e ficar só o susto e o choque da descoberta do segundo seguinte ainda a brilhar tremeluzente (a janela do barco como espelho quebra mais do que 7000 anos de má sorte), bem como nos bichos desta terra e desta selva que não vivem pela matemática nem pela lógicazinha mas antes nos raios imprevisíveis e imprevistos da emoção, foi total, e assim não temos nada de especial nem de inteligente, somente a continuação e a sequela do corte umbilical. Quer dizer, antes de estarmos moldados, formatados, crescidos. Entre a primeira palavra do bebé e o carimbo bélico. Possibilidades e aventuras infinitas do cinema. Aceitação olímpica da vida.





* O Robert Mitchum de "Thunder Road" é o Mitchum de sempre, impassível no centro do dilúvio. Guia a mil à hora pelas estradas ensarilhadas com o bucho do seu carro pejado de álcool. Fá-lo pois os seus antepassados vieram para aquelas terras sem nada e com quase nada conquistaram o essencial. É o tramado do whiskey que despoleta a tragédia como poderia ser qualquer outra coisa. E fá-lo porque obviamente também gosta. Do perigo, isto é, fixar-se nos limites; só assim se justificará ainda a ideia da empreitada ter sido dele, lançando-se depois à música e não tendo pruídos em cantarolar, nas calmas. A sua sombra, a sua massa omnívora e omnipresente tudo abarca, tudo abafa, cega. Morre tão de pé como as suas palavras e actos, e entrega o seu irmão limpo à menina dos sonhos. Os funerais que se espreitam ao longe, tão arrastados e penosos, tão dolentes, são o reverso e o lamento dessa medalha. Ficamos a saber, em menos de meia dúzia de apontamentos, que Mitchum veio da guerra, mas nota-se, em cada acção e reacção e nada, que por ter visto nesses cenários o que nenhum homem necessita ver, o desassombro e a convicção estão tão inerentes nele como o respirar. Portanto, nem a Mãe, nem a amada, o irmão ou o Pai poderão chegar-lhe ao coração ou ao exemplo da forma conhecida - eles estão com ele e estarão para lá da conformidade e da lei. Um homem que viu demais e não aguenta a promiscuidade terrena. A ligação final, a marcha funerária e as mãos para sempre, são uma e a mesma coisa, já medalha una, numa certeza que eleva o amor, realmente e sublime, à selvajaria. Bruto e sem tempo nem espaço. Crepuscular e novo. A morte e a nascença a flutuar no cosmos misturado - "Birth was the death of him", segundo Samuel Beckett. Só umas luzes cinzeladas no grande mistério. Como o vento no deserto para a flor solitária.

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