sábado, 6 de fevereiro de 2016


Recuperado recentemente como deve ser, “Fear and Desire”, primeiro filme longo de Kubrick em 1953, é um impressionante topo que se liga e religa com os finais da sua lenta caminhada. Topo imensurável e de espaço ecoante no abismo cósmico e no presente que nos vela, como as mentes e os antes e durantes e depois da lembrança. Em acordo com tal, já é a soldadura do “Apocalipse Now” de Coppola com o Terence Malick essencial, dos contrários e das pontas, compactando-se a loucura e a busca, a serenidade e a nostalgia, na pena de Twain ou na película de Philip Jones Griffiths. Milhões e biliões ou um segundo entre a primeira montanha e a última que é a mesma. Dos coros celestes e do muito terreno. Mas por agora, um passo em frente.

“Killer's Kiss “ é um filme surpreendente, e também muito por parecer umbilicalmente ligado aos cinzentos, negros e brancos gastos dos empreiteiros da série-b e dos noirs; um H. Lewis ou um Tuttle em romantismos terminais que só almejam a nitidez da realidade, o lavar da face depois do sono; mas mais do que isso porque reduz ideias feitas que só servem para aplacar o ser-humano à condição relativa do sopro que nos segura eternamente no fio da navalha. Na vida, o mais leve dos ventos como o discurso mais veemente pode mudar o curso de todas as coisas.

Segunda longa-metragem de Stanley Kubrick logo na entrada nos afasta do epíteto do mestre frio e gelado para nos colocar num palco ultra-sensível que faz lembrar o Chaplin de “Limelight” e a história grave do palhaço velho e da bailarina suicida. Jamie Smith é um boxeur com a data de validade pronta a esgotar, dessas velhas promessas constantemente adiadas, que levou a sua carreira sempre a baixo das potencialidades, sem se saber se por falta de jeito, por preguiça crónica ou azares da vidinha. Irene Kane é Irene Kane, corpo frágil e alma ainda mais frágil, melindrada da nascença pela morte de quem a trouxe ao mundo. Sozinha nestes palcos agarrou-se à bailarina desfalecida que foi a irmã e ainda não ajustou as contas com o progenitor. Mora mesmo ao lado do lutador e mediante tais circunstâncias o encontro estava marcado.

A figura do looser que vamos encontrar, a lamentar-se dos sucedidos e a convencer-se de que não serve para nada, junta-se à boneca de porcelana que escolheu viver entre espectros e no espectro mais sombrio. E o fascinante desta construção fílmica tão triste como radiante está no paralelo entre a dança e a violência dos combates com o angélico esvoaçar desses alguns anjos caídos que em branco se entregam aos mais inocentes e voluptuosos movimentos. Um encontro assim, mesmo com a bênção de alguma providência sagrada ou não, teria de passar pela mais medonha provação. E passa mesmo, acontecendo nessa espécie de dia alongado ao pesadelo, pedido ou estropiado à noite, as agruras e rugas das etapas de uma vivência – dos ciumes à inveja, do incompreensível ao milagre.

Assim, entre alvoradas cheias de pássaros divagantes, recordações ao retardador e luzes da ribalta desabadas como as da cidade que anoitece em longo fade, o espectáculo da confrontação entre iguais dá-se em torno de homens e mulheres artificiais, modelos impassíveis que assistem nas tintas às nossas disputas; metidos no meio e a ajudar decisivamente à festa. Quando a penúltima cena se esfuma e cede passagem à merecida oportunidade, fica uma máscara que se ri de alguma coisa séria ou ridícula, mas sem dizer do quê. E então o realizador glacial sentiu das entranhas e do coração de Chaplin, estilhaçando a mitologia do perdedor e da beleza da perdição, dando um last shot ainda à maneira de Sylvester Stallone, em bailado transcendente, abraço ou cruz reservada no centro da multidão. É coisa muitíssima, em rotações estonteantes, dos sapatos de veludo ou de cetim às luvas do boxe, que nos permite girar mais algum tempo. Embalados por um tema musical que agradece a Eternally, o Terry's Theme de Charlie Chaplin. Triste e belo. Como choro seco.

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