sexta-feira, 25 de agosto de 2017
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
"Wild Is the Wind", George Cukor, 1957
George Cukor, o cineasta das mulheres,
o sofisticado homem do teatro, filmou em “Wild Is the Wind” o que
o título indica, uma história de vento, ou do vento. Partindo de um
claro interesse documental, o registo dos ofícios e da manufactura
daquelas regiões agrestes americanas pós western, com os
cães que domam as ovelhas como no país basco, o parimento delas e a
selvajaria mais bonita quanto perfeitamente incontrolável,
encontra-se nessa vida animal, bestial, orgânica e natural toda a
simbologia ou consanguinidade óbvias para com as poderosas pulsões
desejantes, tanto sexuais e básicas como afectivas e fundamentais da
parte da ficção. O amor, a violência e o vento. Cukor capta,
apanha no turbilhão, a massa possível de uma visceral história de
vento, vento que acaricia, ameaça, salva, acompanha.
No começo, um par, Anthony Quinn,
italiano na América que sabemos que perdeu a mulher, e saberemos
depois que com muitas culpas no cartório, decide ir ao seu país de
origem buscar a irmã da falecida. Quer casar-se novamente com a
morta mas escolhe uma viva, não sabendo da impossibilidade de tais
milagres, trocas ou compras. E trata de tratar Anna Magnani, a
escolhida, como os seus animais, querendo doma-la como domou o cavalo
que lhe oferece, beijando-a defronte do espelho que contém e
reflecte a morta, utilizando-a assim para o sexo e para a sua imagem
de fama, não vendo nela uma outra.
Só que não percebe que um animal
fervente como Magnani, um vulcão em constante irrupção, jamais
poderá ser domado sob o risco de morrer interiormente e logo
exteriormente. Nem alma nem carne. Essa mulher que caiu no centro do
turbilhão e da cacofonia da família já constituída e acabada, só
se vai entender com os animais, suficientemente verdadeiros como se
deve ser para com os da sua raça. O tempo avança a mata-cavalos,
literalmente, e forma-se o trio. Magnani encontra outro inocente e
necessitado que é mais um filho de Quinn e que parece ser um Dancin'
Kid de Nicholas Ray, e ambos se reconhecem no alívio premente e
literalmente se devoram. Espécie de Dancin' Kid que nasceu prometido
à filha de Quinn. Filha que gosta muito de Magnani e que não se
importa de a ver como Mãe. Explode ou implode um quarteto
inaceitável.
E todos bailando no meio do vento e
cercados pelas míticas montanhas mágicas da América mais do que
mitificada – Charles Lang no auge da beleza crua e perfeita a um
tempo, sem bilhete-postal - mesmo o Quinn que tudo julga dominar e
controlar como Deus a seu belo prazer, se vão perder, enganar,
suspender em abismos irresolúveis, praticamente matar e ressuscitar
a ferros, para começarem a ver e a sentirem alguma coisa mais para
lá da compostura das aparências e do esperado. O que Quinn quer é
o que todos os “donos do mundo” de ontem e de hoje querem, mesmo
que não seja culpado e se mova cego na engrenagem que o cegou,
dominar cada peão no desmedido tabuleiro que criou e não admitindo
falhas no seu esquema perfeito e maior do que tudo e do que ele
mesmo. Atingidas certas proporções e posses, toda a vida, todo o
tempo e mesmo todo o físico e saúde de touro de um Quinn, só para
esses fins argentários e falsos serão aplicados.
Cukor, um dos cineastas mais
narrativamente possantes dessa época – os seus filmes são densos,
maleáveis e complexos como um corpo humano o pode ser na estrutura
infindável de músculos, gorduras, veias, ossos, etc., etc., ou como
um romance cósmico e total que vai a tudo e a todas as ficções e
documentos e féeries de um Thomas Mann – captou Magnani
documentalmente como o vulcão italiano perdido no imperialismo e
extrapolou de Quinn a força castradora que tudo pode devorar, o
humanismo em primeira instância. Mas de hecatombe em hecatombe, de
incompreensível e de segredo em segredo, a panela de pressão
arrebenta e advém novamente o vento. Para os protagonistas limparem
a vista, as razões e o coração. “Wild Is the Wind” é a
passagem afagante, lenta e dolorosa do “eu quero” para o “eu
espero”. Da violência da imposição sem escolha para a
generosidade com todas as possibilidades de selvajaria da liberdade e
assim de uma fidelidade superior. Por isso mesmo o final não é
feliz à força nem batota dos estúdios fascistas mas a visão
límpida e dolorosa de um depois da tempestade. E George Cukor como
cineasta do físico e da alma, ou do caminho tortuoso para esse
entendimento e encontro. Imensa carícia.
terça-feira, 22 de agosto de 2017
"Run for Cover", Nicholas Ray, 1955
“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.
“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.
Depois,
o momento grave, e agudo, fino até às ossadas, em que Cagney
esventra Derek todo, pois se é tão necessitado como ele apesar de
tudo já viu mais, ousou mais, teve a sorte de terem dado por ele o
passo que se espera que o homem dê, e falando para o jovem fala
ainda para ele mesmo antes que se torne velho demais; fala-lhe dos
infinitos “normais” que na vida aguentam as pancadas constantes
da existência sem choradinhos mas juntando as peças que se vão
quebrando e caminhando de dentes cerrados; e fala-lhe dos outros, os
que fogem com o rabinho entre as pernas de cada vez que a vida lhes
troca as voltas, não aceitando que tudo não seja um mar de rosas, a
free ride,
referindo-se obviamente aos dois, um outro e o seu semelhante,
iniciação, pais e filhos, run for cover;
Cagney foi o homem que quis adoptar a toda a força a criança de
Derek para ter uma segunda oportunidade de pai e de Homem mas não
percebeu que clamava tanto como ele; e Ray a falar com o Rocky Balboa
que em 2006 diria a mesma coisa ao seu filho num beco cheio de lixo e
de fumos não maquiados pelo sabão do cinema - «You, me,
or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't about how hard
you hit. It's about how hard you can get hit and keep moving forward.
How much you can take and keep moving forward. That's how winning is
done!»
Dádiva
sublime antes de mais traições inaceitáveis e de redenções no
último suspiro. E assim não haverá possibilidade de redenção tão
na hora da morte como a que vemos neste conto que é tão infantil –
Cagney e Derek podem ser consideradas crianças inocentes e cruéis
que ousaram assim permanecer para lá das horas – como crepuscular
– foi preciso esperar o desenrolar do fio todo da vida para
finalmente se tomar uma decisão, levar as coisas para a frente,
agarrar a responsabilidade, e crescer. Nick, acreditas realmente que
até no último esgar merecemos uma oportunidade reservada a cada
qual e o resto é moral invertida, areia para os olhos e mecanismos
arrasadores da sociedade? A resposta não está em nenhuma legenda
final ou happy ending,
nem mesmo nos efeitos cromáticos ou psicológicos de género, mas na
luz constante de todo o filme. Seja no romantismo mais ténue ou na
tinta mais carregada, na nascença do amor ao entardecer como nesse
terrível movimento de câmara que revela o corte físico e corte
sexual de Derek, a luz é como que azulada, clara, translúcida... da
mesma gama, da mesma mistura e espectro dos diáfanos céus
renascentistas ou do azul de Sistina, das auroras de Borzage ou dos
querubins virginais. Da cor indefinível das estrelas que não se
deixam fixar, para lá delas, por essa câmara que olhando as
questões mais negras conserva a pureza que não julga nem condena
porque assim manda a lei. Ray a ver que até no paraíso se deixou de
tudo e nele haverá luz e treva como na sujidade de um “In a Lonely
Place”.
Em
cada tempo de guerra onde o que vale é a imposição e o tamanho, o
primeiro lugar e o branco e preto bem definidos, toda a complexidade
num só tom infinito. Ou seja, toda a aflição e generosidade.
sábado, 19 de agosto de 2017
"The Fearmakers", Jacques Tourneur, 1958
Agora em vez de se informar as pessoas,
inventam-se factos. Fabrica-se de tal forma o medo que se pode vender
a paz a qualquer preço. Isto são sínteses do veterano de guerra
Dana Andrews na segunda lavagem ao cérebro agora no seu país natal.
Logo depois de regressar e de o médico lhe dizer que não percebe as
causas do seu mal-estar alguém lhe atira com o sono que encerra a
emaranhada porta da inquietude por Shakespeare. O seu homem é o
homem solitário de que não vemos réstia de passado, de lar ou de
recordação e que assim vê melhor o contracampo do infame campo de
batalha do outro lado do mundo. Alguém que não percebe a sua
condição de solitário nem a aceita nem perdoa tal. A civilização
e o mundo tecnológico que tudo escrutina e antecipa a que regressou
como quem redescobre o que desconfiou é o resultado e o móbil da
aberração visceral das bombas e dos corpos estraçalhados.
Este Dana Andrews que passa o filme a desmaiar, a ser furado por pesadelos e por uma nova espécie de horror abstracto que é o rosto e motor de todos os genocídios e totalitarismos do último século, é o morto-vivo mais temerário da obra de Jacques Tourneur. Morto para a felicidade e para a vida corrente pela grande máquina, vivo porque não perdoa o espelho que essa morte lhe devolve. Evidentemente que “The Fearmakers” é presente para sempre puro e tem como personagens centrais e mabuseanas Donald Trump, os ataques terroristas diários ou os incêndios portugueses; o grande medo que nos fazem suportar para comprarmos a pequena paz ao preço que nos fizerem. Assim a cena final em que os monstros dão meia-volta em face de Abraham Lincoln e onde se constata que a lavagem não vai parar e que inclusive se tem de enganar alguns que não mereciam para vencer, é a união da elevação moral torturada passada a gesta épica e clássica com a inocência dessa pura menina que foi ter com ele simplesmente com o olhar.
Tourneur, que nunca fez as coisas parecerem piores do que são pela manipulação cinematográfica, apenas precisou em “The Fearmakers” da realidade para isso, do estado das coisas e do nexo enviesado, da chamada evolução necessária como necessário é o medo renovado; os choques entre luz e sombra e as possuídas aparições, panteras e leopardos da sua “imagem de marca”, soltaram-se integralmente quando se fixou num lugar específico e num tempo concreto. Ultrapassados ou unidos os abismos da fantasia e do realismo, do verismo e da loucura, vem ao de cima tão clara como o negro que representa essa noite na alma que é a causa de Tourneur. Aquilo em que somos capazes de nos transformar para apagar essa noite toda. A luz e o medo.
terça-feira, 15 de agosto de 2017
"Wichita", Jacques Tourneur, 1955
Esta história contada por Jacques
Tourneur em 1955 remetendo para o velho oeste americano na aurora da
industrialização e do lucro cego, este tablóide ordinário, esta
lengalenga cansada, vem na capa do jornal de hoje, onde quem manda
numa aldeia, numa vila, numa cidade ou no mundo não se importa de
ver incontáveis homens e mulheres seus próximos morrerem desde que
seja vendida a carga necessária. Mas Tourneur mostrou-a no máximo
da depuração possível em cinema, aproveitando as formas e linhas
planas e harmónicas dos vales e dos montes, a sua semelhança com os
íntimos corpos humanos e com os grandes órgãos vitais da natureza
cósmica, para ver também assim na degradante cidade, atingindo a
arte das imagens e dos sons relacionados a plenitude vingativa pela
incomensurável lupa – quem é bom é bom, quem é mau não tem
escape, de onde as palavras dos argumentistas cingem-se ao evidente e
à poesia do quotidiano, ao nível das paisagens belas e uteis.
O momento mais bonito do filme, tão
bonito e justo como o cair-do-sol da despedida onde o casal ruma em
direcção à justiça última em consonância com o amor e encaixe
destinados, é um vulgar travelling de acompanhamento entre o comum
Wyatt Earp do certo Joel McCrea e o ajudante do editor do jornal -
editor que é mais um genial Mark Twain no cinema americano: tudo
sabe pelos sentimentos primários e não-ditos, percebe logo a
vocação de cada um e de cada coisa, a dádiva de cada qual –
travelling funcional onde o jovem aprendiz Bat Masterson vacila um
pouco depois de ter feito o que é correcto, depois de ter “crescido”
para o arrivista de serviço, deixando o grande medo picar por
instantes; mas quem tem o mito aliviado de Earp ao lado ou o melhor
amigo tem tudo e este afirma-lhe que não podia ter procedido de
outra maneira... pois não? E ri-se, e o jovem ri-se com ele.
“Wichita” é sobre esses grandes
temas do telejornal das vinte horas mas é sobretudo um filme sobre o
nada essencial. O nada das planícies luzentes... do vento nas ervas
rentes...do sol a desaparecer por detrás dos altos... do inescapável
dom que já vem com o cordão umbilical e que não se corta nem se
vende. O dom que Twain não para de apregoar e que tem obviamente
escrito morte. Vida e morte. Toda a entrega ao rumor interior e ao
gesto absoluto é o sagrado, a assunção e o calvário. Tourneur
ligou as questões mais antigas aos termos mais simples e à equação
mais complexa.
Não fazendo sentido egocentrismos
profissionais, pressão de autor, brilhos mediáticos do ouro banal
ou molde festivaleiro. Tourneur foi o cineasta simples e fascinado
que baseou toda a sua obra nas historinhas que a mãe lhe contava
mesmo antes de adormecer e entrar noutro mundo. Da luz e do segredo.
A brilhar na caixa de música da infância. Sem ninguém em volta ou
com o melhor amigo.
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
“The Appaloosa”, Sidney J. Furie, 1966
Sidney J. Furie, depois realizador da
série “Iron Eagle” ou de uma continuação do “Superman”da
era Christopher Reeve, ainda em actividade e já uma carta fora do baralho faz muito tempo, fora de
qualquer conversa “séria” e jamais proposto para retrospectiva mesmo que parcial.
Mas se não formos a mais lado algum existe o ano de 1966, e existe
“The Appaloosa”, feito cinco anos depois do Rimbauniano “One-Eyed
Jacks” e sete anos antes dos calvários e das fidelidades de “Pat
Garrett & Billy the Kid”. Furie abre a caminhada de mais um
homem que regressou de longe demais e que tem todos os passados e
massacres e tempos cravados no rosto, no corpo e no fogo interior, de
forma serena, chã, espalhando o vento a sua ternura pela paisagem
que tanto irá ser magnificada pelo recorte horizontal. E o
andamento, a candura, essa doçura ao mesmo tempo crepuscular e
iniciática poderia durar para sempre. E Furie já estaria ao lado
dos grandes. Tal como o sublime de molde único realizado por Brando
iremos ter momentos e momentos esfregados a lua, estrelas e pós
diáfanos.
Mas o homem como que aterra novamente
na civilização e começam os ângulos subjectivos, barrocos,
demenciais e desconfiados, desenquadrados como aleatórios; e vai ser
sempre esta a guerra formal do filme, entre a serenidade um dia vista
e almejada, e o olhar e a pele arrepiada de quem como o homem de
Brando já matou muitos outros homens semelhantes e de muitas
mulheres abusou. Entre este ano de 1966 que é também o apogeu de
Sergio Leone e as Sete Mulheres de John Ford vai-se escancarar um
abismo, uma bocarra medonha de negro, que é a viagem de perneio
desta obra forçosamente não concisa. Por isso a perseguição do
cão seguida da entrada desequilibrada na igreja, o confronto mudo
com o simbolismo apátrida e ferido de Emilio Fernández e o desejo
ligado com a traição e o pecado e a libertação no encontro com a
mais misteriosa das mulheres é a representação narrativa e
espacial dessa batalha que também é entre a postura clássica e
vertical com a cobardice e o niilismo degradante.
Appaloosa é o nome do cavalo que
despoleta o conflito, mas logo depois da breve estadia em casa com os
seus – tão breve como em “The Searchers” e mil vezes
humilhante – no ponteiro agudo em que se abre e reprime diante da
mulher pura e proibida que terá sempre o expoente do seu amor,
Brando confessa-lhe que vai voltar à guerra não pela vingança ou
pela respeitabilidade mas porque certo dia um estranho pegou nele,
levou-o para uma casa, amou-o e purificou-o e acreditou sempre nesse
menino mesmo nas misérias mais baixas e nos golpes mais profundos.
Brando troca o idílico e a paz de fim de tarde pela memória e por
tudo o que não vemos, e é o acreditar e a frontalidade a imporem
alguma ordem no caos da falta de valores e na falta de tudo.
E a viagem vai piando fino, como no
primeiro encontro com um Moisés retirado que o afaga e o limpa mais
um bocadinho da lama da cantina anterior. E da fina e cortante música
da solidão passamos à tristeza mais lancinante onde todos, muito
velhos e muitos jovens, não se importam de morrer por morrer. O
chefe da quadrilha de sangue envenenado como os duros e nocturnos
escorpiões que lhe basta a pança cheia de tequilha e só a carne da
mulher e não o espírito para puder morrer de qualquer jeito; a
mulher deste que vai traindo Brando e se entregando
incondicionalmente em movimentos e soluções estonteantes de vida ou
de morte; e o Moisés que julgávamos imperturbável, afirmando sem
receios que um dia se cansará e que lhe bastará descer uns passos
para o seu túmulo pronto. Moisés que entre brumas longínquas e
antiquíssimas oferece o túmulo ao par com os pés para a cova,
fazendo-o renascer nesse fundo, sem nada querer em troca - Go down
Moses, e a salvação. E a luz.
Então só poderia ser no sacro enterro
do velho que a mão do destino começa a sua rotação sem travagem, com a
testemunha dos céus grávidos e da terra seca. Daí tudo vira, o
fundamental e os fundamentos começam a entrar em concordância e em
eixos sólidos; para o duelo final ser tão à distância e a perder
de vista como as incomensuráveis paisagens que regressarão
abraçadas com os sonhos interiores. A imagem final, estática,
frontal, eterna, para os altos, é o forçar da comunidade, catedral
da salvação, e mesmo que dure só até ao The End, comporta o peso
do tudo. E das raças todas, sem fronteiras, sem credos.
domingo, 13 de agosto de 2017
"Sayonara", Joshua Logan, 1957
“Sayonara”, que quer dizer Adeus,
foi transformado num princípio em 1957 por Marlon Brando, Miiko Taka
e Joshua Logan; e mais ainda pelo casal que enlaça no final branco e
primordial de “Os Amantes Crucificados” de Kenji Mizoguchi,
amantes vividos por Red Buttons e Miyoshi Umeki terrenamente até à
cena virginal e doce em que Brando os encontra já para lá da sempre
redutora beleza terrestre; alguns ou muitos de nós não chegarão a
conhecer tal passagem, pois que com ou sem metafísica nunca se deram
assim; nunca passaram certa fronteira... e “fronteira” é a
palavra e cerne deste filme que é uma empreitada por amor à
humanidade e ao básico.
“Sayonara” deveria ser projectado
num ecrã tão grande e simples e evidente que abarcasse todos os
continentes para uma união óbvia.
Tudo neste filme é belo pois derruba
com a beleza mais simples as correntes das leis mais avançadas; é
Brando a começar a bater com a sua cabeça e com o seu corpo em tudo
o que é décor e forma (e espírito) Japonês; é a sua única amada
a cair na poça da cultura e da herança (e da bruteza); e,
devagarinho, lentamente, como as águas onde se lavam os panos sem
fim ou como o vento que bate nas flores de cerejeira etéreas, ele
começa a dominar o espaço e a perceber o tempo alheio, a saber que
os meios e o caminho podem ser tão ou mais importante do que os
fins; e ela, surgindo tão impassível e zen como a imagem mais
acabada do sol nascente, torna-se lacónica, cuspe verdades, quase ou
até selvática sem conta, rompe e explode.
Brando admira e chora pelas rochas
amantes e torna-se Japonês. Miiko Taka percebe desde os primeiros
olhares envergonhados de namoradinhos de escola que até yankees
podem ter toda a plenitude solar, e torna-se Americana. Mas chegar só
a esta conclusão é alinhar no que “Sayonara” derruba, que é
aquilo que eles confessam tão simplesmente, tão basicamente, tão
preto no branco e sem margem para dúvidas, envergonhando a Sociedade
com S maiúsculo imposto a sangue: cada um é um mesmo de onde
Família e Tradição e Esperado e País terá de se renovar
constantemente pela verdade, pelo amor, pela justeza, pelo olhar
inocente de namoradinhos do pátio proibido da infância.
E no final formam um com a
individualidade intacta, a revolução e o regresso à fonte
inaugural. “Sayonara” está num acreditar e num limbo para lá ou
para cá de todas as convenções; do actors studio feito para
cada qual e sem marca até ao ritualismo sem império; simplismo -
fatalismo (o belo simplismo, a bela irresponsabilidade), como Ford ou Kazan a dialogar abertamente com Mizoguchi ou Ozu. No
ocaso, sayonara, adeus, tudo de novo.