"One-Eyed Jacks", Marlon Brando, 1961
Recentemente restaurado por Martin
Scorsese e Steven Spielberg “One-Eyed Jacks” confirma-se tão
sublime como a visão anterior em cópias escuras e atrofiadas, sem
alta resolução e de formato modificado. Um cristal de brilhos
poderosíssimos que cega mesmo estando envolto em redomas e cascas de
poeiras, carvões, matérias bastante enegrecidas e bexigosas. Sublime gama de
todos os claros e de todos os escuros em efervescência e a
reclamarem de atração. Lembro-me de o Mário Fernandes me mandar
uma mensagem sobre a realização única e incopiável de Marlon
Brando que dizia: «a última fronteira do western ou de
Rimbaud será sempre o mar». “One-Eyed Jacks” é ainda um
western quando eles estavam a agonizar, mas também é
qualquer coisa que arrebenta o género e que passa para um tipo de
energia e de poesia romântica e decadente que está de mão dada com
a virgindade e a primeira luz do primeiro dia do mundo apegado à
imediata culpa. Nesta história de vingança primordial em que o Rio
de Brando não pode esquecer a traição do Dad Longworth de Karl
Malden – relação, traição e consequente tragédia ainda mais
complexa do que em “Pat Garrett & Billy the Kid” pois abrange
o arco todo da criação e da família - o bem, a amizade e o perdão
vão sendo amarrados pelo turbilhão emocional cravado nas origens
fundadoras de cada ser, sem apelo e sempre em agravamento, tal como
as catástrofes naturais sem aviso ou a loucura da conquista do mundo
e da utopia imperial. Jamais existirão os lados bons ou os lados
maus sem margem para dúvidas; de Rio a Longworth passando pela
mulher deste, e não perdendo de vista os cometas secundários que
nunca o são a gravitar demasiado próximos, os erros ou as falhas
cometidos num certo tempo em que para eles não eram erros ou falhas
e muito menos culpas não servirão para justificar nada, dos
falhanços pessoais ao alinhamento comunitário. A lei clara, como a
insubordinação e o animalesco, podem ser cruéis e abjectos à sua
maneira, e jamais qualquer um dos citados proclamarão inocência.
«Elle est retrouvée! / Quoi? L'
éternité. / C est la mar mêlée / Au soleil». Brando, que
antes de pegar nesta narrativa mítica quis pegar na mais mítica de
todas e adaptar o Livro de Job, montou o palco junto às ondas do mar
por que tanto esperou – atrasando a rodagem do filme meses a fio –
e onde nas escarpas e na dureza sem tempo das rochas e dos penedos,
com a brisa imemorial a bater-lhe na cara e o infinito a desafiá-lo,
se refugiava de si e com a enteada do homem que o manteve vivo por
vingança; e numa dessas noites ou desses amanheceres de fronteira e
com a eternidade por testemunha foi sincera com ela, para uns meses
mais tarde chegar outro filho da culpa. O conto de Billy the Kid
embrenhado e levado até às profundezas da ambivalência moral,
nessa imagem perfeita da abertura onde Brando pesa a casca
escorregadia das bananas e do crime já em rotina numa problemática
balança de justiça a deslizar de William Shakespeare para Henry
David Thoreau. Romantismo, fogo indomável, desacordo entre o
espírito transcendente (Deuses e monstros) e a lei terrena (os
tribunais e as bíblias interpretados ao sabor da corrente), Brando
nos terrenos que vão do andarilho dos andarilhos até aos suicídios de
Philippe Garrel sem escapar à eterna velocidade americana que ignora o túmulo.
Numa recente introdução de Scorsese a
um «western como nenhum outro», palavras suas, este referiu
a energia bruta, algo de selvagem que não tinha a certeza que a
câmara pudesse controlar. Pulsar sempre a arrebentar e a transcender
as bordas do enquadramento e do próprio meio natural que a todos nos enquadra antes do cinema existir, e lembrou-se de Elia Kazan e de “Death
of a Salesman”, correntes sanguíneas emotivas, primárias, ao
fundo da verdade do momento, da pressão e da temperatura do
presente. Já Fiódor Dostoiévski nos Karamazov tecia sobre a
incurável família, alguns ternos guerreiros, de recurso intrincado
ou impossível, assim: «Meus irmãos perdem-se, meu pai
igualmente. Consigo arrastam outros. É a força da terra,
própria dos Karamazovs, segundo o padre Paisius. Uma força bruta,
violenta... Ignoro até se o espírito de Deus domina essa força».
Se esse escavador dos fundos da alma humana e de crimes e castigos
irresolúveis ignorava se Deus tem a capacidade de dominar certos seres, tais
vulcanismos prontos para a actividade mesmo se adormecidos por
séculos, assim certos temperamentos como os de Kazan, Brando,
Nicholas Ray ou Scorsese travaram violentas lutas entre as
queimaduras da culpa, da redenção e da liberdade com a frieza e o
controle da câmara de filmar. Jogo ambíguo que coloca
frente-a-frente o domínio dramático e expressivo das chamadas
formas contra o poder confessional e a verdade intrínseca da alma.
As luzes, sombras e composições manipuladas e o “segundo
decisivo” onde tudo aparece nu.
Mas para se fazer isso é preciso
perceber muito de cinema, de drama, de pintura de sentimentos, de
exposição individual e de pudor universal, de ângulos e de lentes.
Na cena em que Karl Malden pondera e decide sem motivo aparente trair
Brando temos um longo plano do seu rosto apoiado no cavalo da
salvação, muito suor, impassibilidade, a carga da perdição, a
duração e a frontalidade a fornecerem todas as razões. Quando o
também fabuloso Ben Johnson se torna o que certo dia Malden foi para
Brando, cinco anos depois do acontecimento que até ali calcou toda a
vida, a notícia sobre o paradeiro do fugitivo é recebida e
orquestrada pelo campo/contracampo em tensão interior avassaladora,
toda a raiva do mundo no rosto e na carne a dinamitarem dentro das
quatro paredes do enquadramento que heroicamente não tremem,
explosão cósmica ao para dentro, ignorando olimpicamente os
raccords impossíveis da profissão. Na chegada de Brando a
casa de Malden, tão bem posto na vida e com certeza respeitável
como o Pat Garret de James Coburn do filme de Peckimpah, temos três
secções próprias que revelam a distância, os motivos e a
complexidade da resolução moral e simplista: o lento aproximar de
cavalo à casa do antigo parceiro de crime que agora está do outro
lado, urdido em árduo trabalho de suspense que não deixa sombra
para dúvidas de que ambos esperaram diariamente esse dia; a conversa
e o acertar dos relógios no alpendre, onde ambos mentem percebendo a
tramada questão da pressão e da necessidade de resposta, de onde as
lágrimas nos olhos e a franqueza das entranhas do rosto evidenciam
um calor e uma proximidade de melhores amigos que mesmo as
chicotadas, torturas e tiros posteriores apenas elevam a relação a
consequências superiores e por isso mesmo só entendida na
irracionalidade demencial do amor; Brando a entrar na casa de Malden
e logo a antítese do momento anterior que franqueia mais uma vez a
tragédia, nesses contracampos vazios de fidelidade e carregados da
farsa da ambição, ausentes de som e cheios de imagens mentais; a
montagem e a encenação de “One-Eyed Jacks” é esta constante
dialéctica entre cenas e dentro da cena, assim, ver a conversa
derradeira de Brando com Malden onde se ameaça tudo e se redime tudo
num mesmo instante. Pois não é casualmente que travando e
silenciando o som das esporas entra como aparição ainda terrena a
figura e a silhueta de Pina Pellicer, em encarnado de querubim e a
ousadia corada dos muito tímidos. Pina Pellicer, aqui chamada
Louisa, luz de todas as purezas e vacilações, biografia frágil que
não passou dos trinta anos mas que sorri para o corpanzil e a
bruteza de Brando descobrindo-lhe a inocência primeira e assim
revelando-lhe a bondade e a generosidade incondicional. Enfim, todos
os momentos com Pellicer junto à espuma branca das ondas que
explodem para as elipses do amor e da posse, das uniões e da
limpeza; cavalos brancos misturados com a areia, véus do crime e da
santidade, jóias preciosas e corruptas, o suposto western de
Brando espelha sem definição os testamentos sacros e a libertação
poética mais escandalosa.
«The writer only responsability is
to his art. (...) Everything goes by the board: honor, pride,
decency, security, happiness, all, to get the book written.»
disparou William Faulkner ao interlocutor atónito de bom senso.
Marlon Brando, para mim sempre muito mais generoso e subtil do que
egocêntrico e espectacular – na referida cena de reencontro com
Malden é este último que fica no centro e que traz todo o passado
para o centro – deixou-se levar com os seus colaboradores nessa
vertigem do irracional matando-se para a agarrar pela mão-de-obra do
cinema o mais conservada possível. A crueza descarnada daqueles
corpos tão tensos, ora explosivos ora ainda mais apaziguadamente
explosivos, ainda a escutarem as lições de John Ford, a quererem
escutar, mas a saberem e a sentirem que certas fronteiras e certa
limpidez já foi ultrapassada e que a ordem dos sentimentos, da moral
e da encenação já é outra. Actors Studio e John Wayne. A
rocha e a água. Sêmen e espuma. O credo e a bala. As ondas, sempre as mesmas e
sempre diferentes, perfeitamente indomáveis.
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