segunda-feira, 27 de novembro de 2017

"Bloodbrothers", Robert Mulligan, 1978


A montagem paralela que vai fluindo irresponsável na abertura de um dos Robert Mulligans da safra de 1978, o implacável e cheio de dúvidas “Bloodbrothers”, só parece celebrar a vida, dizer às pessoas presas no tédio e no cagufe do quotidiano que a aproveitem sem consequências ou julgamentos. Ou seja, essa correria dos pais ainda mais malucos do que os filhos, os eternos engates sem idade nem condição, as zaragatas mútuas ou os conselhos sem exemplo, fazem parte do utópico fogo da liberdade que a noite pode oferecer a alguns. Só que pela manhã, nesse lar agridoce, as brincadeiras furiosas e os excessos são ainda a tentativa de promulgação do ontem, muito sentimento que soa excessivo, muito barulho que parece querer iludir uma dor; da casa para o mundo, um passeio de domingo prometido e o chefe de família anuncia que comprou o terreno para o eterno descanso, fazendo disso a coisa mais normal do dia, descansando-se já sobre o piso, todos menos as mulheres aflitas que suportam os desequilíbrios e pressentem a tal agudeza calada, tudo ainda a fremir do espírito da noite que aqueles homens prolongam para o dia que se quer composto.

Curioso que Mulligan comece e acabe o filme com planos aéreos, ampliando vários caminhos, encruzilhadas, possibilidades, mistérios, mas também o dia e a noite, respectivamente. O que se passa durante toda a metragem cá nos baixos já foi mil vezes visto, revisto e contado, por isso mesmo só pela intensidade dos fabulosos e doridos actores se pode acreditar mais uma vez, ver o futuro, perceber e pegar nas pontas soltas e nos nós intrincados, focar mais nitidamente o déjà vu, aproximar o mapa, fazer alguma coisa com a oferenda - “Bloodbrothers” é um emplacar de enquadramentos estremecentes. E recordar o início para se admitir que tudo poderia coexistir de outra forma, a noite com o dia, o excesso com a seriedade, que não se era menos honesto.

A narrativa de Richard Gere, o filho na hora da decisão grave do modo de vida oficial e do semblante a manter, encontra-se emparedada entre a inocência do seu amor pelas crianças, os bares manhosos aonde ainda não perdeu essa inocência (vive em terreno ordinário e no brilho magnífico das estrelas, hora onde a noite encontra o dia lá pela madrugada, a sua relação com a lindíssima ruiva) e a questão – que alguns poderão chamar honra – de seguir o emprego dos pais e continuar o legado - «um homem que não gosta do que faz não é nada nem tem respeito por si próprio» diz-lhe o progenitor que parece o amigo mais louco. E aqui já estamos perto de John Fante e da ferida do american dream (remake de “The Brotherhood of the Grape” e talvez de “1933 Was a Bad Year”), pois temos toda esta cisão e o bifurcar a mata-cavalos, mas o realizador, como o escritor, não tomam partido – a cena em que Gere conta aos miúdos o conto dos irmãos de sangue é tão bela e tão terna como a chegada à construção civil e a experiência da vida de trolha prometida ao pai. E essa é a poética e a moral com que tudo se reveste, as coisas boas ou as coisas más não têm rótulo nem são estanques, dependem sempre do momento, da pressão do tempo ou do sangue – assim a realização, silenciosa ou de orquestração esfuziante, de olhar impassível ou puramente funcional, conforme a incontestabilidade do presente.

Richard Gere vê nos mais velhos o futuro e no seu irmão tão novo as promessas, assim como os adultos praguejam, cometem e recordam os mesmos erros que os novos mas ainda estendem a mão no momento em que gritam, como no final em que o pai insulta e protege, bate e incentiva. Ínvios são todos os caminhos e tudo é questão de intensidade e de entrega à vida – mais uma vez e sempre o paraíso apócrifo inicial e iniciático – e o final é tão incerto como generoso, não menos seria de esperar do coração de Mulligan. Filme corrido entre bares e lavandarias, quartos e hospitais, nada de extraordinário aconteceu, todos já passamos por coisas iguais ou idênticas ou já escutamos parecido; alguma coisa realmente aconteceu e vai mudar pois o filho viu coisas com os olhos bem abertos e o espírito totalmente disponível, rasgado, do mesmo modo que qualquer espectador teve oportunidade para fazer do mesmo. E mais uma vez uma obra tão simples e que muitos podem considerar tão naif e básica se pode tornar revolucionária. Questão de entrega, nada menos do que perder os medos imemoriais, nada menos do que a definição pura de humanismo.

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