ENCONTRO COM PIERRE-MARIE GOULET POR JOSÉ OLIVEIRA
(5 perguntas básicas)
José Oliveira: Em primeiro de tudo, para quem
encontre estes teus filmes sem aviso, como conheceste ou te
interessaste pelo Michel Giacometti ?
Pierre-Marie Goulet.: Foi através do Antoine
Bonfanti, um engenheiro de som francês e amigo de longa data. Nós
estávamos a trabalhar juntos numa longa metragem de Serge Roullet em
que uma parte foi rodada em Portugal. De origem Corsa, Antoine
falava-me muitas vezes de Michel Giacometti, de quem ele se tinha
tornado amigo, e também do seu trabalho. Antoine tinha feito o som
de alguns dos meus filmes que tinham por tema músicas tradicionais
ou populares e tinha o grande desejo de fazer com que eu e o Michel
nos encontrássemos. Organizou esse encontro quando estávamos a
filmar no Mosteiro de Flor da Rosa, perto de Portalegre. Deste
encontro nasceu o projecto de fazermos juntos um filme em que um dos
sonhos de Michel poderia vir a concretizar-se: o de fazer encontrar
as suas raízes corsas, que ele acabara de reencontrar, e as raízes
portuguesas que ele tinha construído, pelo cruzamento do canto
polifónico corso e, nomeadamente, o canto do Alentejo.
Tínhamos combinado então aprofundar o projecto logo
que a rodagem em que eu e o Antoine trabalhávamos tivesse acabado, o
que estava previsto acontecer pelo Outono desse mesmo ano.
J.O.: Pensaste logo que querias construir um filme em
volta do seu trabalho, ou o teu primeiro interesse foi pelo seu
legado musical?
P.M.G.: Inicialmente tratava-se portanto de um filme que
deveríamos construir em conjunto, mas quando essa longa rodagem em
que eu trabalhava como assistente de realização terminou, e eu pude
finalmente voltar a Portugal no início do mês de Dezembro de 1990,
Michel Giacometti acabara de falecer. Sem a presença do Michel todo
este projecto parecia então irrealizável. No entanto, ao longo dos
nossos frequentes encontros, Antoine e eu próprio não parávamos de
falar sobre ele, de evocar o desejo do Michel de fazer encontrarem-se
as duas culturas. Foi assim que a pouco e pouco nasceu o projecto de
“Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti”, um
projecto diferente do que teria realizado se Michel Giacometti
estivesse connosco, sem dúvida, mas que retraçando o seu percurso
em Portugal não abandonou o seu desejo de levar a encontrarem-se as
suas raízes corsas e as portuguesas.
J.O. : Filmas o Alentejo de um modo sumptuoso, o
que é inseparável de Michel Giacometti, mas também tens lá estado
noutras ficções ou documentários. O que te atraiu?
P. M.G.: Há países, paisagens, pessoas,
que “reconhecemos” à primeira vista, mesmo se nunca lá
estivemos, mesmo se nunca as encontrámos antes. Este sentimento de
“re-conhecer” o que nunca tínhamos conhecido foi imediato logo
na primeira vez que estive no Alentejo.
J.O. : A Poetisa Virgínia Dias no Alentejo, o
António Reis do Porto, o Paulo Rocha como homem do mundo... as
imensas e distantes geografias que tens percorrido por sons ou
imagens, filmagens tuas ou arquivo, como trabalhas e relacionas toda
esta cosmogonia?
P. M.G.:
A minha forma de preparar um filme implica um
longo percurso de absorção de tudo, de acumulação de informações,
de muitos elementos factuais, é certo, mas também emocionais. É um
trabalho quase obsessivo: recolher todos os elementos possíveis que
tocam, de perto ou de longe, o “tema”: ir “assombrar” em
vários momentos os lugares onde iremos filmar. No entanto, no
momento de filmar, ou de montar, tudo isso é “intelectualmente”
esquecido.
Mas
estou convencido de que tudo o que foi assim acumulado está muito
presente, mesmo que não seja acessível de forma racional, e que vai
ressurgir por outros caminhos, muito mais secretos e misteriosos, dos
quais não possuo a chave, nem os domino.
Em
“Encontros”
procurei entrelaçar as diferentes “épocas”, sobrepô-las,
fazê-las entrar em diálogo e responderem-se, a fim de abolir um
tempo cronológico factual que não me parece corresponder à
realidade de um tempo vivido, tempo que é feito também ele de um
entrelaçar do presente, da memória, da esperança, ou do sonho. Mas
não se trata de forma nenhuma de um processo racional.
É
na montagem que se trata de se impregnar, de forma obsessiva, do
universo que irá dar corpo ao filme. As imagens filmadas acabam por
ser esquecidas antes de reaparecerem por caminhos que nem eu próprio
conheço. É revendo a matéria do filme, incansavelmente,
que rimas inesperadas começam a ressoar, não de forma intelectual,
mas sensível.
J.O.:
Por último, como trabalhas profundamente o real e a poesia a ele
associada, nunca te vi perguntarem os teus gostos cinematográficos,
que imagino latos. Por onde começar?
P. M.G.:
Adolescente, nos dois últimos anos de estudos secundários, eu
faltava quase constantemente às aulas para ir às projecções da
Cinemateca de Langlois em Paris. Não escolhia um filme preciso do
programa, entrava na primeira sessão e só ia embora depois da
última. Eram portanto 4 filmes que eu via de seguida, quase
diariamente. E acrescento, como aliás é conhecido, que muitos dos
filmes não eram legendados, já que a Cinemateca Francesa não tinha
nessa altura os meios suficientes para o fazer.
Por
um lado, os visionamentos intensivos e quase em contínuo de filmes
extremamente diferentes acabaram por provocar estranhas impressões
cinematográficas em que as cenas ou planos de um filme se misturavam
e se ligavam com as de outros filmes. Por outro lado, a ausência de
legendas, e portanto a impossibilidade de seguir a narrativa pela
história ou pelos diálogos, levava a uma outra abordagem aos
filmes, mais sensível, menos intelectual, onde a história que eu
construía - certamente errada por vezes -, nascia das imagens, dos
enquadramentos, da luz ou do ritmo. Estes dois aspectos conjugados
estiveram sem dúvida na origem do que foram ou do que são os meus
“gostos” cinematográficos.
Nessa
óptica, alguns filmes, ou cenas de filmes, foram particularmente
marcantes, confirmando-me que uma construção “não linear”
poderia abrir para territórios infinitamente mais ricos e
“poéticos”. Tomaria como exemplo a cena de abertura da ponte em
“Outubro” de Eisenstein onde a montagem retoma parte da
mesma acção, em vários planos sucessivos, esquecendo o
raccord cronológico entre os dois planos, para
privilegiar a dinâmica e a musicalidade. Nesse sentido também
“Méditerranée” de Jean-Daniel Pollet foi uma descoberta
essencial, no que toca à repetição dos mesmos planos que nunca são
“nem completamente os mesmos nem completamente outros”.
Muitos
outros filmes foram igualmente marcantes, de alguns não me recordo
neste momento, no entanto eles estão nalgum canto escondido da minha
memória. Hoje eu poderia citar estes, amanhã poderiam ser outros :
“Lola” de Jacques Demy, “Muriel”, de Alain
Resnais, “La Cicatrice Intérieure” de Philippe Garrel,
“Way Down East”, de Griffith, “Le Tempestaire”
de Jean Epstein, “Pickpocket” de Robert Bresson, “Le
Salon de Musique” de Satyajit Ray, “A Sombra do Caçador”
de Charles Laughton e muitos outros. Mais tarde, outros filmes
marcaram algumas etapas fundamentais como “L'Homme au Crâne
Rasé” de André Delvaux, “As Estações” de
Pelechian, “O Espírito da Colmeia” de Victor Erice, “À
Beira do Mar Azul” de Boris Barnet, as curtas-metragens
documentais de Vittorio de Seta, etc.. Quando cheguei a Portugal, o
choque de descobrir “Ana” de António Reis, e
também “O Sangue” de Pedro Costa ou ainda “Mudar de
Vida” de Paulo Rocha.
Tudo
isto está evidentemente longe de ser exaustivo, sem esquecer que, de
uma maneira muito clássica, fui também fortemente marcado pelos
filmes de Mizoguchi, Kiarostami, Ozu, Godard, Tourneur, Dreyer,
Grémillon...
Como
todos esses filmes fizeram o seu percurso na minha memória (ou
imaginário) e me alimentaram, mantém-se para mim muito misterioso.
E quanto à poesia que possa eventualmente existir em muitos destes
filmes, o certo é que ela não foi procurada como tal, ela nasce de
“um não sei quê que se encontra de aventura”, e não se deixa
apanhar nem enfiar numa gaiola.
*
POLIFONIAS - PACI È SALUTA, MICHEL GIACOMETTI
“Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti”
é o primeiro dos tomos que Pierre-Marie Goulet dedicou ao
musicólogo, andarilho e poeta Michel Giacometti, ao Alentejo que
este tanto amou, aos seus encontros que mudariam a música e a
cultura portuguesa para sempre, mas sobretudo, e foi o que moveu
Giacometti e os seus parentes, à importância da memória, da
conservação da identidade e do fogo criativo das gentes, da genuína
tradição, para que novos amanhãs possam cantar vivamente.
A história é simples, como nos começa por contar a
voz off de Sérgio Godinho. Alguém que veio de longe, com
sede de conhecimento, de liberdade e de emoção, armado com a sua
sabedoria e a técnica necessária, bateu à porta delicadamente,
pediu para entrar e, se fosse possível, lhe cantarem o de
antigamente. O moderno poderia ser depois, primeiro o antigamente.
Veio de longe, sozinho, como o forasteiro dos Westerns clássicos
americanos. E a diferença foi que não lhes pediu nada de
extravagante em troca do seu tempo e do seu trabalho e assim recebeu
o mais precioso dos tesouros, a herança orgulhosa e impagável de um
povo. Não se armou no intelectual etnográfico que parece estar na
moda pelas academias de hoje e assim recebeu uma constelação
inteira de sublimes dádivas. Os bons e os verdadeiros reconhecem-se,
e a tarefa de Goulet parece ser provar esse facto, daí a câmara
tanto andar em volta das pessoas, tanto as rodear, sempre terna e
companheira, em observação e protecção, a tentar perceber e
captar o especial delas.
O filme começa por ser um gesto lindíssimo porque logo
se percebe que o realizador aprendeu da humildade de quem pretende
homenagear e fixar, um legado que jamais irá correr o risco de ser
profanado, pois a lenta aproximação e cruzamento de coisas
aparentemente muito diferentes mas de igual sentido e temperatura –
a música, a poesia da palavra, a poesia da terra, o suor, o
trabalho, os países longínquos e a comunidade - permite extrair daí
uma luz muito brilhante, uma luz universal e sagrada que tem a sua
origem nas fundações puramente humanas, na grandeza incomensurável
do homem e do que ele pode fazer. Estamos perante uma construção
também ela poética e lírica – à imagem das deambulações e dos
ditos da fascinante poetisa Virgínia Dias – e lucidamente
analítica – não se aceitam devaneios mais ou menos especulativos
mas sim a veracidade dos sucedidos que permitem engrandecer os feitos
e aceder ao romanesco; portanto convoca-se Salazar e o fascismo em
surdina para se perceber que a tudo isso aqueles homens e mulheres
com o seu esforço e arte ultrapassaram.
O termo polifonia, que deriva do Grego primordial,
refere-se à simultaneidade de sons diferentes que formam uma
harmonia. Sendo cada som independente, o ouvinte percebe-os como um
todo. Ou no todo. Ou ainda a individualidade ao serviço da comunhão.
Tudo é evidentemente mais complexo, mas Goulet vai extravasar do
termo musical para as geografias distantes, opostas e sentimentais,
vindo ao de cima a razão dos acontecimentos sem que se force nada. O
Alentejo e a Córsega, a terra natal de Giacometti e a terra de
acolhimento aonde ele quis ser enterrado. As planícies em
contradição e em diálogo com as altas montanhas. O som que se
espraia rente e ao comprido e aquele que tem de trepar aos altos. A
Córsega no Alentejo e uma espécie de Moisés bíblico e universal
ao largo das montanhas, pastor de todas as fronteiras. E a
necessidade da contextualização e da testemunha – José Mário
Branco e a revelação e o milagre da redescoberta do seu povo, muito
ao jeito daquilo que será o cineasta António Reis no filme seguinte
de Goulet, chamado, precisamente, “Encontros”.
Existem várias polifonias ao longo da história do
cinema, desde logo a Griffithiana de “Intolerance”
– muda mas com todo o som e a fúria dos gritos interiores e
justiceiros impossíveis de calar; toda a americana do
“Nashville” de Robert Altman; enfim, o coração a
transplantar e a transcender o maquinismo dos puzzles com que
Paul Thomas Anderson marcou a nossa época. E depois, neste
“Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti”, nos
“Encontros” e no prometido fecho final para uma trilogia
que Goulet vem trabalhando há muito, aqui entre nós e por um
cineasta nascido em França, uma modelação da massa humana e uma
modelação da massa poética sua inseparável que do presente vai
retrocedendo até ao primeiro dia do mundo, já dia da criação. Daí
a constante presença da película de filmagem e da máquina de
montagem, não só para mostrar que o realizador comunga de
Giacometti, mas primordialmente para se atingir uma inteireza e uma
claridade que permita vislumbrar todo o arco do tempo. Como a poesia
essencial e complexa de Virgínia Dias que encerra o universo.
José Oliveira
*
ENCONTROS
«1957: um grupo de camponeses de Peroguarda, no
Alentejo, vai cantar ao Porto. O poeta António Reis, futuro
realizador de "Trás-os-Montes", ouve esses cantos.
Conquistado, toma o caminho de Peroguarda, com um gravador. 1959:
Michel Giacometti, musicólogo de origem corsa, começa uma pesquisa
de 30 anos. Não tarda a descobrir Peroguarda. 1965: no Porto, o
jovem poeta Manuel António Pina, e outros jovens aspirantes a
poetas, escolhem António Reis como referência. 1966: o cineasta
Paulo Rocha roda a sua segunda longa-metragem ("Mudar de Vida")
no Furadouro, situando a história no meio dos pescadores que na
infância o haviam fascinado. Estas e outras pessoas fazem parte de
uma tribo informal cujos membros se reconhecem quando se encontram.»
Um longo travelling para a frente abre o filme de
Pierre-Marie Goulet, um travelling ainda mais longo já para
trás fecha o mesmo filme. Como numa visita onde se diz "até
já". Apetece-me tentar descrever esses movimentos para deles me
lembrar por muito tempo, da sua suavidade, da sua doçura, do seu ar
tão respirável, da terra e do céu que abarcam, esse caminho de
linhas rectas e curvas, subidas e descidas. Movimentos tão
imponentes e tão frágeis. Quero-me lembrar dos magníficos
esverdeados, das ervas nas bordas do traçado, das árvores como que
encantadas, esses horizontes que se abrem e se rasgam sem limites... a
luz lancinante e vivamente colhida...o movimento sinfónico e
harmonioso de tudo isso que é então ainda mais elevado pelo subtil
e tão vital som do que lá está, ainda pelo off que impregna
os planos em sublimes poemas. Os primeiros sublimes poemas de tantos
e tão raros que cobrirão a ouro e a arrepio na espinha o que vai
estar entre os tais dois travellings e dentro deles.
Paisagens fumegantes, nevoeiro que esconde e revela. “As
forças da natureza que nunca ninguém as venceu”... e tão
consolador e tão apaziguador é esse pensamento... próximo plano.
“Encontros” é erigido sobre esta medida e
sobre esta moral: as coisas grandes e justas só podem ser
construídas de forma e de desejo tão grande e justo como ao máximo
da beleza e ao máximo de sentimentos só se pode responder com a
retribuição de todos os saberes e com a exploração e conservação
a um mesmo tempo de todos os segredos. Numa só palavra:
generosidade.
A Dona Virgínia que sabe os poemas de cor, a Dona
Virgínia que se emociona nas lembranças de António Reis, de Michel
Giacometti, de muitos outros, que também se emociona com os cantares
e com os escritos de quem a rodeia e que também canta. Altiva e
delicada, imensamente terna e de uma elegância que não se define.
Uma mãe Ana como a olhada por António Reis. Imensa. Todo o coração.
Paulo Rocha filmado contra o mar que certo dia o
obcecou. Paulo Rocha já do outro lado a olhar para o ecrã num
vórtice fantasmático de voltas e reviravoltas incontáveis como
atordoantes. Paulo Rocha passado e presente num mesmo rolo, arco
impossível. Paulo Rocha com remorsos de não ter sido sempre um
arquivista do homem e do mundo à maneira do “Mudar de Vida”,
essa tamanha entrega e coragem.
Manuel António Pina, jogo de espelhos, memórias das
memórias. Só o presente, esse passado.
Ervas arrepiadas ao sol.
Filme – resistente. Inconscientemente resistente pois
jamais poderia ser de outro modo. Daí a serena paz das construções
sem margem para dúvidas, nas portas do céu. Nem a distância longínqua e intocável
dos objectos prontos a entrar para o museu, nem afectação da
instalação ou da performance. Nada de artistas com sublinhado, egos
expostos. Nada da distanciação pela distanciação caucionada pelo
"moderno" ou por Brecht mal comido e mal digerido. Da mesma
maneira que está interdito liminarmente o atrofio e o "em cima"
da reportagem e do audiovisual, maldita televisão, o diabólico look
vídeo ou o zoom. E o gesto nunca é o da antropologia nem o
do curioso inconsciente, muito menos o do malandro, aquele que
procura o exótico ou o suposto "diferente", o espécimen
raro. O gesto é então o do reconhecimento, algo uterino, famílias
ou companheiros – «Estas e outras pessoas fazem parte de uma
tribo informal cujos membros se reconhecem quando se encontram.»
Que olhar? O olhar que perscruta a poesia e o homem, a poesia do homem e logo do cosmos seu envolvente.
A construção e a ourivesaria de Pierre-Marie Goulet é
tão límpida como enigmática. Tão aparente e ao lado do que filma
como libertadora, arriscando cruzar todos os caminhos e tempos. De
Peroguarda resplandecente para as ruinhas e becos da cidade do
Porto, das águas insondáveis e muito belas de Goulet para as
furiosas águas duas vezes celulóide de Rocha, da Córsega à
desmesurada explosão colorida de um campo alentejano potenciada ao
poema de um desconhecido e simples herói... todas as
correspondências, todos os encontros. Do presente para os anos 50
das gravações de António Reis. Intersecções, sobreposições,
permeabilidades, raccords sonhados, encontros para além do
impossível que pelo cinema e pela arte da montagem se tornam
possíveis e que só reflectem a força tempestuosa do interior e da
verdade – é a Dona Virgínia em diálogo e em campo/contracampo
com Giacometti que já não está entre nós, a ser surpreendida pelo
regresso de Reis em voz registada e conservada. Todos os tempos num
só tempo, esse tempo do cinema que elide o inexorável. Esse tempo
uno, esse tempo de vida e da morte e vice-versa, milagre. A paixão a
trabalhar nos interstícios. A paixão no centro absoluto.
Poesia da poesia da poesia e assim
sucessivamente... fatal lirismo, mundo. ” Encontros” é um
objecto de amor e só por ele tudo é passível de ser ligado e
refeito, talvez novamente vivido. Amor que no referido travelling
de crepúsculo junta tudo e todos os que para trás ficaram, junta
tudo o que resta e o que restará e coloca tudo isso exposto a nu e
igualmente opaco e místico. Amor pleno em que todos esses poemas,
sons, diálogos, vida e morte, carne e película, corpos e
pronúncias, musicalidade e entropia das emoções, declarações e
dentros inacessíveis mergulham no abismo de uma comunhão pelo
cinema e pela dádiva concebidos e fazem amor uns com os outros.
Viver é encontrar, sozinhos nada valemos. Sabia disso.
José Oliveira
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