Visages villages, Agnès Varda e JR, 2017
E com a sessão de hoje vamos perfazer várias rimas, sendo a mais bela de todas o facto de Agnès Varda ter sido companheira e obviamente colaboradora muito próxima do inigualável Jacques Demy, do qual vimos faz agora um mês o sumptuoso e renovador Les demoiselles de Rochefort, que surgiu no ecrã gigante do nosso Cineclube como um novo amanhecer desta arte ainda totalmente jovem. O que Varda contribuiu para os filmes de Demy, e o que Demy ensinou por sua vez a Varda, será sempre objecto de fascinante especulação e fantasia, que vamos deixar ao critério de cada um. De resto, desde que Demy morreu precocemente, ela não mais parou de o homenagear, tanto subtilmente e em segredo nos seus filmes, como noutros que dele falaram literalmente ou como num sonho, em Jacquot de Nantes ou L'univers de Jacques Demy.
Tendo começado a realizar em 1955 com La Pointe-Courte Varda nasce sob o signo da nouvelle vague, do lado da Rive Gauche, cúmplice de Marker, Resnais, Kast, Doniol-Valcroze, e obviamente do fascinante Gene Kelly francês seu amado, e possui como quase todos eles uma carreira riquíssima e diversa que recomendamos cada um perseguir. Por hoje vamos destacar o obrigatório Cléo de 5 à 7 de 1962, corajoso e cru retrato de uma mulher sem posições "feministas" e já numa invenção formal perfeitamente singular, sem rede nem amarras; o duro e generoso Sans toit ni loi, de 1985, que reinventou Sandrine Bonaire e nos deixou vislumbrar ainda outros lados da mulher Cléo. Depois, eternamente jovem, cheia de sede pelas novas tecnologias e pelas suas possibilidades de diário filmado e da autonomia absolutas – perto dos quartos e do íntimo gigantesco de Marcel Proust que ela tanto ama – sacou, arrancou à frieza dos zeros e uns o revolucionário Les glaneurs et la glaneuse, humilhando o bug do mundo virtual à entrada dos anos 2000.
Hoje, Visages villages, forjado meio sem querer e sem expectativas a meias com o fotógrafo e artista visual JR, sem argumento escolar nem pressão de produtoras, com a buchinha no bolso e o pátio de recreio na memória, completamente imerso na bela irresponsabilidade e na curiosidade primordial, numa viagem iniciática como nos velhos contos infantis nos quais o velho e o novo, diferentes, de outras eras, se encontram e se descobrem na mais descabelada das aventuras. Nem sequer estamos diante de uma passagem de testemunho, jamais alguém dá conselhos definitivos ou certezas acabadas. Muito distante dos filmes finais de certos mestres que se embrenharam em metafísicas impenetráveis, Varda atira-se de cabeça ao risco do passo seguinte no desconhecido, obtendo sangue novo numa claridade jubilatória. Os dois vão ao encontro de anónimos pelos lugares mais remotos de França, ela com a máquina de filmar e ele com as fotografias e os grandes formatos de impressão prontos para imortalizar essas pessoas simples e grandes nas superfícies mais inesperadas em estampas magníficas como em planos cinematográficos justos.
Então, pela arte deles e por um coração aberto ao conhecimento e ao outro, ganham amizades e emoções impagáveis, diferentes do que é possível no cinema da ficção, e sobretudo muito muito diferentes da ficçãozinha dos dias de hoje. Divertido e terno, cheio de revelações e surpresas ao novo – por exemplo, ela a mostrar-lhe a campa de Henri Cartier-Bresson e a presentear-nos com histórias deliciosas e privadas ou a meter-lhe medo com a possibilidade de conhecer Jean-Luc Godard – como de insuflação do compromisso e da entrega pelo novo que ela agarra como elixir da longa vida, o mais bonito do filme são mesmo essas aproximações e entendimentos entre naturezas aparentemente longínquas. Um road-movie humanista sem mapa, nem lei, nem roque, muito menos beira.
Uma boa viagem. Eternamente jovens!
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
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