quarta-feira, 25 de julho de 2018

Rui Chafes sobre Cavalo Dinheiro




Para lá das nuvens, auscultando o etéreo, e com todo o peso e fatalidade terrestre. Uma gravidade insólita.

domingo, 22 de julho de 2018

Cavalo Dinheiro em Bracara Augusta




A arte brutal de Rui Chafes ressuma do choque entre matérias brutas. A mão e as sinapses do artesão em luta contra a substância resistente. Prumo e esquadria defronte do fogo-fátuo e do gelo. A paciência. O tempo como único aliado. O olhar indesviável. Moléculas. Bicharocos. Deformações cósmicas. Ferragem orgânica. O diálogo com a morte. Chafes busca a redução como a única via para a transcendência. Clangor final do universo pacificado. Pedro Costa, o realizador, trabalha com a bruteza da memória e da sensibilidade de gente real comungando da mesma brutalidade. Gente real que para a raça dominante é somente pó.
 
Ambos carregam um mundo consigo – a catedral do metal e a parte lendária do povo. Sobre isto António Reis, o poeta, escreveu:

Aquele homem que ali vai e que tu vês,

é um atlante.

Um atlante, sim! Suporta um mundo enorme!

(tão grande, como não podes imaginar...).
 
Cavalo Dinheiro é pura electricidade, confronto com o fluxo original das sombras; escorre de cada partícula da carne ou da palavra alta tensão; electricidade sanguínea, alta voltagem geral, decibéis, nervos, relâmpagos. Olhos a escorrerem água e faíscas. Membros programados para embater no império do medo. Nobuhiro Suwa, trabalhador próximo, comparou-o ao afinar delicado de uma guitarra. O melindre do toque, do ajuste ínfimo e essencial entre a matéria do humano e a matéria da luz, tudo o que sabemos.
 
Dos espelhos de Juventude em Marcha e da luta longínqua da figura contra o seu fundo vamos ser queimados por superfícies aterradoras de compostos visuais puramente físicos e puramente maquínicos, combinações de carne e de sangue com pixels vergados, o acabado peso do silêncio e a revolução expressionista reinventada num passado de mortos inaceitáveis. Os olhos, a pedra, as curas, os anjos, o sussurrar, a magia, as lápides, energia e epiderme no comprimento de onda do "Star Spangled Banner" de Jimi Hendrix ou dos rios cegantes de Conrad. Não paradoxalmente, Costa busca nessas ondas contíguas a redução como a única via para a transcendência. Cavalo Dinheiro é uma hecatombe comprimida.

Ainda absolutamente Fordiano. Mantém o homem no centro e toda a descarga voltaica é questão de justiça. Vamos ver melhor, vamos ver o fogo desta gente mítica e real. Do interior para fora. Os seres, o Ventura, a parte que vai continuar a ser espezinhada é a parte original. Os olhos choram e fuzilam. Os membros e a verve prometem guerra. E unidos vencidos vencerão. Ventura continua tão enorme despido contra um tanque de guerra ou na máquina do tempo terrorífica do elevador tal como todo este inaudito big-bang apenas purifica a essência. Que continua a ser o que podem os homens. Depois de todas as mentiras terem sido contadas, passadas as chacinas e as revoluções falhadas, ainda um grito de resistência.

Cavalo Dinheiro passa na próxima terça-feira em Braga pela segunda vez; urgem os choques eléctricos das reposições e do amor escondido na noite.

Com apresentação de Chafes, o magistério do tempo e a visita do divino.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Marlowe... Burke Devlin... Joe Gillis... Ben Bradlee...




Nunca “choraremos” demais (uns happy fews...) as fabulosas personagens de detectives ou de jornalistas incorruptíveis e fumadores como se não houvesse amanhã que o professor Carlos Melo Ferreira foi recusando aos seus alunos em filmes de género que nunca saíram do papel ou que ficarão para sempre envergonhados nas poeirentas gavetas ao abrigo de qualquer investigador...

Mas dos filmes de Pedro Costa ele sempre aceitou falar em conferências ou nos cafés e escrever muito, mesmo que nas aulas fosse ultra misterioso e fascinante a respeito deles, como se para conservar todos os segredos, elipses, não-ditos dos monumentos – não usurpando o significado daquela preciosa palavra americana milestones que só brilha se não cair na rotina.

«Vejam, e formem a vossa opinião. Depois conversamos.» Dizia classicamente, para que ninguém andasse a falar do que não sabia ou a papaguear opiniões alheias. Mas ele escutava sempre mais do que falava, pelo menos sobre Juventude em Marcha.

Porém desta vez permitiu-me filmá-lo e para mim foi como se tivesse concretizado um pouquinho de todos os noirs ou policiais conjuntos com que sempre fui sonhando.

Thanks, sir!

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Juventude em Marcha em Bracara Augusta



O meu encontro com Juventude em Marcha aconteceu no Outono de 2006 na semana da estreia em Portugal. Em plena cinefilia destrutiva e farto de escutar dos professores que o cinema é uma coisa cara e para os “escolhidos” alguém me mostrava que com uma câmara digital perfeitamente banal aliada a uma pesquisa sobre essa nova tecnologia (codecs, color correction, masks, CCD vs CMOS, etc., a confusão aproximava-se mais de uma patologia recentemente descoberta e sem cura à vista) num vórtice sempre a confundir-se com o amor mais acabado se conseguia alcançar a desmesura e a dignidade de John Ford.

Entrar no filme foi um soco seco no estômago oco. Primeiro apareceu o som no negro, um rumorejar humano algures e um vazio atordoante, logo coisas a caírem, depois veio a imagem, umas ruínas e um céu tão negro que devorava tudo, imediatamente objectos monstruosos a serem largados por uma janelinha, o seu cair a ensurdecer o mais surdo, a pequena luz bruxuleante que pelo filme todo tentaria alumiar a escuridão de um bairro condenado, uma luzinha a tentar salvar o que podia, a tentar deixar ver, fazer justiça – este era o primeiro plano e o cinema na minha cabeça a redefinir-se, pareceu-me o primeiro plano que alguma vez vi.

Pasmo que não se quebrou até ao último plano, em que Ventura, o heróico Ventura filmado por Costa com a mesma dimensão e aura com que o maior dos cineastas filmou Woody Strode, o Sargento Negro, em Sergeant Rutledge, se encontra no centro de uma cama que parece uma Via Láctea numa postura ao mesmo tempo livre e tão hierática como uma estátua de Michelangelo, e uma criança absolutamente estupefacta por tal visão, no cantinho inferior direito do derradeiro dos enquadramentos sem margem para dúvidas, tentando aceder ou escalar uma montanha; depois outra vez o negro e um vento que só pode ser o inaudito das revoluções e das fidelidades.

Pelos meios dos 155 minutos fui percebendo que um rosto comum ou a maçaneta de uma porta de contraplacado sem qualidade, um quadro Bíblico de Rubens ou a Vanda Duarte mais inchada a falar de fraldas têm de ser respeitados e trabalhados da mesma forma, com o mesmo empenho e fé – qualquer dos quadros me apresentava o peso de séculos, a espessura do eterno, o tempo sem tempo, o fatal presente. E uma inocência que despertava no espantoso e imprevisto movimento de câmara nesse anfiteatro novo e mesozoico da Gulbenkian que ia das árvores para os bancos a misturar todos os elementos e prosseguia até ao sumptuoso rasgar de uma barca entre nevoeiros e aparições, a aurora de Murnau oferecida aos deserdados.

E as cartas a uma mulher escritas e reescritas mais uma e outra vez até às estrelas que nunca vamos ver mas que brilham até ao fim... o sofá vermelho à porta de casa com o fato negro e a postura certa traçadas pela força expressionista do Fritz Lang de aço... o compasso lento e supersónico de uma tensão vital entre as trevas brancas e os esconderijos luminosos... o choque entre o asseptismo abjecto das habitações modernas e a escuridão das velhas barracas a cederem a possibilidade da comunhão e da partilha... a desmultiplicação dos filhos, do pão e das dádivas.

E assim a maior das dádivas foi conhecer toda uma outra parte do mundo e de uma humanidade e ficar a saber que com o nada se pode fazer tudo. Depois fui descobrindo em sucessivas revisões que Juventude em Marcha contém a épica de Hollywood e a intimidade dos grandes amadores. Quem me indicou o filme foi o professor e “Hawksiano” Carlos Melo Ferreira, que secretamente quase implorou a trinta jovens com sede de acção e muitos deles “Godardianos” a irem ao cinema ver uma obra com tal título e figura enigmáticos.

Por muito disto e pelo muito que não percebo nada, é um dos filmes da minha vida.

Juventude em Marcha passa amanhã (terça-feira) no LUCKY STAR - Cineclube de Braga com apresentação em vídeo de CMF.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

No Quarto da Vanda em Bracara Augusta



Parafraseando Truffaut acerca de Abel Gance, hoje em dia Pedro Costa liga a câmara na sua terra e em frente aos seus e já só sai poesia; poesia sem género arrancada aos dias e noites de rodagens consecutivos em meses e anos inaceitáveis para o “cinema normal”, arrancada à noite, ao sono, cavada na noite, no suor, no sangue, na luz, na pedra, estripada à tecnologia e aos filtros profissionais em transplante milagroso, aos reflectores de supermercado; tempestades de uma intensidade precisa e inegociável.

Mas houve um tempo em que tudo era desconhecido, terra queimada, susto, um homem e uma mulher na solidão do derradeiro jardim, a guerra, e nisso a possibilidade de recomeçar de novo, tudo, o cinema, uma moral, uma humanidade.

Na terra queimada escutou-se um passo para o abismo, com os ditos drogados, indigentes, a escumalha para queimar que não interessa a ninguém, agarrou-se na tocha pioneira de Griffith, na talocha de um pedreiro do Gênesis e na fúria silenciosa de Faulkner (cada vez mais e visto à distância é o fogo primordial desta obra gigantesca) para obter formas, cores, as escalas de um Rembrandt.

Nos lámbios desta nova e banalizada raça digital, há alguém que dedica todo o tempo do mundo ao outro e não grita isso; antes ou depois das festas promocionais, fora de moda.

No Quarto da Vanda, a obra do século XXI, passa hoje em Braga.