domingo, 22 de julho de 2018

Cavalo Dinheiro em Bracara Augusta




A arte brutal de Rui Chafes ressuma do choque entre matérias brutas. A mão e as sinapses do artesão em luta contra a substância resistente. Prumo e esquadria defronte do fogo-fátuo e do gelo. A paciência. O tempo como único aliado. O olhar indesviável. Moléculas. Bicharocos. Deformações cósmicas. Ferragem orgânica. O diálogo com a morte. Chafes busca a redução como a única via para a transcendência. Clangor final do universo pacificado. Pedro Costa, o realizador, trabalha com a bruteza da memória e da sensibilidade de gente real comungando da mesma brutalidade. Gente real que para a raça dominante é somente pó.
 
Ambos carregam um mundo consigo – a catedral do metal e a parte lendária do povo. Sobre isto António Reis, o poeta, escreveu:

Aquele homem que ali vai e que tu vês,

é um atlante.

Um atlante, sim! Suporta um mundo enorme!

(tão grande, como não podes imaginar...).
 
Cavalo Dinheiro é pura electricidade, confronto com o fluxo original das sombras; escorre de cada partícula da carne ou da palavra alta tensão; electricidade sanguínea, alta voltagem geral, decibéis, nervos, relâmpagos. Olhos a escorrerem água e faíscas. Membros programados para embater no império do medo. Nobuhiro Suwa, trabalhador próximo, comparou-o ao afinar delicado de uma guitarra. O melindre do toque, do ajuste ínfimo e essencial entre a matéria do humano e a matéria da luz, tudo o que sabemos.
 
Dos espelhos de Juventude em Marcha e da luta longínqua da figura contra o seu fundo vamos ser queimados por superfícies aterradoras de compostos visuais puramente físicos e puramente maquínicos, combinações de carne e de sangue com pixels vergados, o acabado peso do silêncio e a revolução expressionista reinventada num passado de mortos inaceitáveis. Os olhos, a pedra, as curas, os anjos, o sussurrar, a magia, as lápides, energia e epiderme no comprimento de onda do "Star Spangled Banner" de Jimi Hendrix ou dos rios cegantes de Conrad. Não paradoxalmente, Costa busca nessas ondas contíguas a redução como a única via para a transcendência. Cavalo Dinheiro é uma hecatombe comprimida.

Ainda absolutamente Fordiano. Mantém o homem no centro e toda a descarga voltaica é questão de justiça. Vamos ver melhor, vamos ver o fogo desta gente mítica e real. Do interior para fora. Os seres, o Ventura, a parte que vai continuar a ser espezinhada é a parte original. Os olhos choram e fuzilam. Os membros e a verve prometem guerra. E unidos vencidos vencerão. Ventura continua tão enorme despido contra um tanque de guerra ou na máquina do tempo terrorífica do elevador tal como todo este inaudito big-bang apenas purifica a essência. Que continua a ser o que podem os homens. Depois de todas as mentiras terem sido contadas, passadas as chacinas e as revoluções falhadas, ainda um grito de resistência.

Cavalo Dinheiro passa na próxima terça-feira em Braga pela segunda vez; urgem os choques eléctricos das reposições e do amor escondido na noite.

Com apresentação de Chafes, o magistério do tempo e a visita do divino.

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