quinta-feira, 16 de agosto de 2018

you got game!


 
 
He Got Game” é o grande filme de Spike Lee nos anos noventa, e o filme americano que melhor representa esse tempo. Em Portugal foi largado como uma foleirada para nerds directamente para as prateleiras dos videoclubes no saudoso porque vivo, orgânico, palpável, de autoimolação, formato VHS. Ainda hoje permanece um segredo a desvendar na sua plenitude universal que condensa feliz Michael Jordan e William Shakespeare, os Public Enemy, a Bíblia Sagrada e um movimento operático de rua que possibilita a aceitação de todas as formas cinematográficas revestidas pelo movimento da emoção – infinitas velocidades e ritmos e somente a velocidade e o ritmo únicos da emoção. Congrega, devorante, o esventramento de Jackson Pollock e um ressuscitar agora da arte contemplativa, contrastada e clínica de Andrew Wyeth; a alucinante realidade em primeiro grau de Auguste e Louis Lumière e o speed MTV redimido.

A narrativa começa básica e antiga como a sede de poder. Um pai que é libertado provisoriamente da prisão para tentar convencer o seu filho a assinar um contracto de atleta com a universidade que pertence ao governador que lhe pode reduzir a pena caso siga os seus intentos. Para deste modo a história se tornar trágica e complexa na aproximação do pai, do filho, e das várias santíssimas trindades que chegam do passado e escancaram o futuro. A nostalgia, os cacos do presente, a edificação e a luz – tudo em alta rotação. Num dos grandes momentos do filme o Pai revela ao Filho que o seu nome é Jesus não por causa de Jesus da Galileia mas antes porque muito depois desse existiu um Jesus das quadras de basquetebol que era a verdade, um Jesus da Filadélfia do Norte, um Jesus dos parques de diversão, dos recantos mais inóspitos do planeta. Um Jesus preto, mas um Jesus sem sombras para dúvidas. Um Jesus que também tiveram de abafar, mas isso já são outros quinhentos... o que Spike nos diz, bruto e carinhoso como o ser que educa, e já nos tinha feito ver isso no genérico fresco e bonito como uma primavera inaugural, é que o brilho precioso, o tesouro de qualquer progenitor, de qualquer pai de qualquer raça ou credo ou classe, a redenção de uma humanidade, pode acontecer nos berços de ouro de Nova Iorque ou de Lisboa ou num meio fétido plantado no cú do mundo que mesmo assim possa permitir a uma criança desenvolver o talento e a paixão. Trabalhando todas as horas como Jordan... sofrendo as chagas seculares... as humilhações... justificado.

He Got Game” está ao lado de “The Pride of the Yankees”, de “Bull Durham” ou de “Forget Paris” numa lista dos melhores filmes alguma vez feitos sobre desporto, mas acima de tudo dos que transcendem essa categoria para serem primeiramente sobre o respeito próprio (o self respect acatado e transmitido por Stallone na saga “Rocky”, outro dos melhores filmes de sempre). O Jesus Shuttlesworth de HGG, o recordista das divisões secundárias que não o conta a ninguém encarnado por Kevin Costner em BD ou o árbitro a morrer de amores de Billy Cristal vão com certeza cair nas mais diversas tentações para se manterem firmes na noção também mitológica de que se seguires o teu coração não trabalharás um único dia na vida. Obviamente a única via para o sagrado que não permitirá que se queira tomar banho mais cedo para ir dar uma queca ou snifar uma linha, largar o escritório antes das cinco da tarde, conseguir um atestado de baixa médica pelo amigo da amiga, contar os dias para as férias, querer ter férias... Em “He Got Game”, o filme que escolho para homenagear Francisco Rocha e o seu projecto de mãos vazias agora chamado My Two Thousand Movies, ninguém que aparece ali por inteiro tem um trabalho mas antes uma vida plena à Jack Kerouac ou à Huckleberry Finn, e quem levou a premissa original para lá dos limites acabou por matar a sua paixão e passar a penar nos infernos dos que demais amaram nesta terra das regras.
 
Parabéns, Francisco do Sobral de Monte Agraço, you got game!

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