sábado, 12 de janeiro de 2019



The Hired Hand, Peter Fonda, 1971


No começo dos anos mil novecentos e setenta Peter Fonda era o tipo mais cool do universo, mas também um fervoroso activista, vivendo por inteiro a contra-cultura nas suas mais variadas explosões e solidões, de Thomas Pynchon a Dennis Hopper. Filho do lendário Henry Fonda, cresceu na sombra da cepa da árvore do classicismo, talvez olhando estupefacto ou agradecido as experiências finais do pai, em filmes de Sergio Leone ou de John Leone. Os valores firmes e severos de John Ford e a humilhação política e humanista contra a guerra do Vietname, o mundo electrónico e a deriva sob o ritmo estupefaciente, em forças de acção / reacção primordiais, moldaram harmonicamente – ou nessa impossibilidade - a sua primeira e fabulosa experiência na realização com “The Hired Hand”.

No prelúdio – à Mozart intoxicado - temos três vagabundos, forasteiros mesmo nas terras onde nasceram ou se fizeram homens, fugindo sem saberem do quê e com sonhos de encontrarem o grande oceano da libertação última, mas vai ser a tristeza a sobrepor-se a um deles e a precipitar a tragédia. “The Hired Hand” é um filme sobre a tristeza de um tempo sem lar nem pátria, e Peter Fonda fez um Western ao invés de um “Apocalipse Now” ou de um “Five Easy Pieces”, expondo os movimentos e a tectónica das placas das fundações e do desenrolar da história americana, nesse vaguear sem causa nem justificação, sem meta nem ameaça definida, sempre na forja de uma nova odisseia para se continuar um espectáculo qualquer, assim mesmo capaz de provocar as mais terríveis altercações. E, sem justificação credível, o jovem morre, à imagem de milhares de jovens na guerra nova da nova altura, e ficam os dois mais velhos. Um deles teve um dia família e vai procurar a mulher e a filha. O outro, sem nada para fazer, acompanha-o.

Nam June Paik ou Stan Brakhage e Rembrandt, eis a ousadia e o triunfo de Peter Fonda. Passado o tempo do mito e dos grandes pistoleiros, sem sombra de um Gerônimo nem mesmo de um romântico Billy the Kid, em terrenos cravados de guerrilheiros incompetentes, de matéria solar esquisita, as sobreposições numéricas e os sinais eléctricos - como na maravilhosa composição doente e lírica de Fonda e Warren Oates a debaterem-se num céu esventrado a fogo crepuscular que os cospe das pinturas históricas – são os glóbulos que nos transportam o oxigénio, os gases, oferecendo-nos imunidades e os mais incompreensíveis anticorpos, uma química extasiante que paradoxalmente lembra e fala com os elementos naturais. Toda esta demência e desregra pictórica tenta encontrar um rumo e uma beleza possível em qualquer meio do nada, gravuras rupestres revistas pelo presente, aspiração a um êxtase místico no alucinógeno e venenoso caos circundante.

Tentado o resgate da lenda e do mito, no centro do pó, aguarda-os, nos confins do mundo, uma mulher e uma menina de braços abertos, num incognoscível reduto de pureza que somente os interiores, as velas, e a tinta (neste caso a película do deus Vilmos Zsigmond) transformada em luz diáfana de um Rembrandt ou de um Rubens, podem fazer aceder. Como nos velhos escritos, uma mulher abandonada pelo marido ainda é uma mulher impura, e toda a sua exposição e clamação ao amado só vai funcionar em instantes perfeitos que durarão breves momentos em roubos clandestinos à eternidade – o passado, a propensão e fatalidade erráticas e a guerra suja vão deitar a sua garra e apenas deixar vivo o mais estranho e imune de todos, Oates.

Nessa clandestinidade, nessas composições equilibradíssimas abarcadas pela luz de Deus, só se dizem verdades confirmadas pelos rostos, do desejo sexual por si só até às diferenças das perguntas feitas por um homem ou por uma mulher, pelo melhor amigo ou pela esposa, com as diferentes dores dissecadas, o diverso amor, uma ordem harmónica que se vai esculpindo na inscrição da tragédia. Em “The Hired Hand” podemos perceber o peso bruto da roda de uma carroça primitiva através da simples angulação correcta da câmara de filmar, verificar uma queimada em fogo real em contraposição à física desvanecida da moderníssima era Sex and drugs and rock and roll. Peter Fonda, ainda a refazer-se da experiência de “Easy Rider” e apadrinhado pelo Roger Corman de “The Trip”, no mesmo ano da calamidade derradeira que ainda é “The Last Movie”, puxou mais os limites e a pacificação deles, numa orquestração musical realmente de acompanhamento, momento a momento, de forma sensível e sem fórmula. No fim, no réquiem langoroso e estranhamente calmo, uma entrada em casa que não é somente a possível mas a superior, a escrita no destino ou nas estrelas. Ainda, depois de tudo, a herança. Ai de nós, sem guia.

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