terça-feira, 12 de fevereiro de 2019
The Mule, Clint Eastwood, 2018
A verdade nunca é pura, e raramente é simples, alguém disse. Clint Eastwood é a pele cauterizada do cinema Americano, mas também os ossos, as entranhas e o bombear do sangue e do coração gastos, cansados e pacificados. A idade é para se entregar às maiores loucuras, mas sem fazer caso. É também já tempo para perceber a comédia de tudo, e rir onde a maioria faz uma tragédia.
“The Mule” é a última obra de um realizador que há muito não toca no álcool, não come carne vermelha, nem outra, é educadíssimo, e já filma quase tudo por instinto. No entanto, as personagens interpretadas por ele, são regra geral insolentes, fumam e bebem como se não houvesse amanhã, esquecem a família, ignoram os filtros e a falsa gentileza, chamam os bois pelos nomes. Na cena da troca do pneu à beira da estrada fica-se a perceber claramente que os racistas podem ser qualquer um deles, ou nós, espectadores confortáveis, ou ninguém.
No caso em causa, Earl Stone, um velho, na quarta idade, que decide meter-se até às orelhas na mais recente guerra e transportar droga pela América afora para os nefastos cartéis, torna-se amigo dos Mexicanos e das comunidades mais diversas, chega a salvar-lhes a pela e a meter a grande policia Republicana na ordem, vai às festas deles, e até conquista a confiança e a compaixão desses monstros que à mínima desconfiança puxam da arma e saltam o muro.
Feitas as contas, e sem margem para dúvidas na abstração de cada um, Stone é um anti-Donald Trump, um anti-patriota primata, ao contrário das crenças que a persona do realizador possa ter, e que nada influem na obra de arte desempoeirada que é “The Mule”. Pode ainda ser considerado um reaccionário por gozar com a internet, com os telemóveis, com a tecnologia galopante e já indispensável em qualquer lar e dia-a-dia, ou então apenas prefira manter-se fiel a si mesmo, coisa não pouca.
Na hora mais negra, a redenção, cantarolando com os seus compadres as mais descabeladas versões musicais e culturais da sua vida em versões ainda mais descabeladas. Que chega pelos noventa anos, quando tudo é olhado de frente, sejam as bombásticas mulheres que ele convida e aceita, seja a morte da eterna amada. Ao mesmo tempo que a carga da sua mula alastra a perdição, a sua neta ou os velhos camaradas que andaram na guerra podem concretizar os sonhos. E isso são apenas os mecanismos do mundo em que Clint Eastwood, e Earl Stone, se viram inseridos.
Podem ainda chamar-lhe machista, mas já viram os sorrisos que esse maduro dedica a tão lindas mulheres? É tão visceralmente honesto, e talvez um pouco cáustico, como o conselho dado por nada ao jovem patrãozinho de Ignacio Serricchio, novato ao deus-dará que tem uma familia como muitas outras; ou ao entendimento perfeito com o agente de Bradley Cooper que o quer caçar a todo o custo, inclusive em beneficio familiar; a esses, tanto ao inimigo que segue a lei, como ao inimigo da paz, fala tão abertamente e irracionalmente como fala com as suas flores.
A Clint Eastwood calharam os mesmos impropérios a que no seu tempo John Ford e John Wayne tiveram direito, aplicados por quem vê tudo com as lentes viciadas. Deveríamos descrever cenas como o reatamento depois de uma briga de escola do namoro entre Earl e Mary, o par de miúdos a corar; ou a filha a convidá-lo para regressar a casa, justificado; a relação como dois velhos amigos ou hermanos com o tubarão de Andy Garcia, todos os segredos partilhados pelo olhar e pela bagagem acumulada; ou o final na prisão como se relaxasse no quintal privado e junto da lareira. Essa poesia dos ímpetos, dos simples.
Deveríamos poder partilhar ou simplesmente ficar espantados pela realização cinematográfica em acordo com cada vibração, tensão ou movimento do humano em relação com o meio e com o próximo, ainda antes ou depois da retórica da linguagem e da arte. A poesia e a política de quem aceita o tempo, no presente fatal ou na eternidade algures.
Podemos ficar com essas cenas cravadas no coração, advindas de punhais salvíficos, contar aos mais novos, tentar iluminar através da negridão, mas a maioria prefere entrar nas agendas e cadernos de encargos da actualidade e ser-se actual. «…o que só mostra que se pode achar seja o que for e que se arranja sempre alguém para estar de acordo», escreveu, não algum filósofo humanista, mas sim o detective de muitas almas, Dashiell Hammet, em "The Thin Man".
A verdade nunca é pura, e raramente é simples. O final pode ser um cristo na crucificação ou somente mais um episódio não-crepuscular na vida de todas as coisas. Na bruteza de Eastwood, na bruteza de Earl Stone, a verdade pode ser tocada, nem que seja num pestanejar, por instinto, entre dois quaisquer praguejares.
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