sexta-feira, 26 de julho de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto III



Night Moves, de Arthur Penn, 1975

Antes de chegar a "Night Moves" Arthur Penn realizou os seus dois filmes mais inclassificáveis. E achar isto é não esquecer "The Miracle Worker" e os outros casos dessa época que realmente só parecem ter paralelo com um Ingmar Bergman desta vida. "Alice's Restaurant" parece agora um imenso adeus ou uma derrota não tomada como tal; "Little Big Man" um olhar para os secundários da grande História que tem mais de desilusão do que de revisionismo. Pelo meio voltou à televisão e a outras formas, com certeza com o mesmo empenho. Não sei dizer mais nada sobre este período. Mas desilusão, lentidão, olhar para dentro e pressentimento, olhar sempre à procura de alguma coisa que não vem é a história desse grandíssimo (e pequeníssimo, ao lado de) filme de 1975 que não se toma por tal. Gene Hackman é Harry Moseby, detective privado que plana por uma Los Angeles tão triste como os seus olhos e tão abatida como a pele do rosto. A mão do tempo já avançou muito e a Moseby já não é permitido ter o estilo ou a dureza de um Sam Spade ou de um Philip Marlowe. Sabe que a sua natureza inserida na paisagem contemplada é a sua tragédia, a sua ferida, o seu buraco, e vai acabar tão sem rumo no final como quando o encontramos. Meteu-se no negócio errado, mas, se atentarmos bem nas suas acções, reflexões, respostas e disponibilidades, divagações dilaceradas, perceberemos que qualquer modo de vida seria prejudicial a tal melindre. Não é dizer que ele sabe o quanto é bom, antes que está em contracorrente e deu por isso. A imagem ou o mecanismo do futebol é perfeita: - "Quem está a ganhar?" - "Ninguém. Um dos lados só está a perder mais devagar do que o outro." Uma consciência de que vogando limpo ou simplesmente acessível no centro de um cancro (corrupção ou falta de amor) a demanda está perdida à partida. E mesmo que se possa chegar à vitória superior de poder andar de cabeça levantada e olhar olhos nos olhos, o lamento pelo que poderia ter sido não passa e mata de maneira mais dolorosa do que o fulminante tiro a frio.

Nesse universo onde tudo se pode comprar como tudo se pode comer, Moseby é obrigado a dizer a uma adolescente estilhaçada, essa Melanie Griffith que possivelmente traça o seu último caso, que ter dezasseis anos ou quarenta é igual ao litro. Não se fica melhor. Sobre a procura da obrigatória identidade para sempre. E diz-lhe isto sem gemer ou gritar, mas com uma gravidade fina e calada que tece a construção e progressão deste filme de consciência ferida. Ferido mas nunca fascinado por qualquer iconografia do looser, niilismo ou celebração, numa frontalidade que tem a ver com compreensão e amparo familiar. Pode-se ter visto e experimentado mais, ter partido a cabeça a alma e o coração, mas as certezas, ali ou aqui no século XXI dos eventos que substituíram a verdade e o comprometimento, é sempre mais chão escorregadio. Os movimentos nocturnos do título devem ter a ver com esses raros que só podem respirar bem pela calada, quando o grande embuste e a grande piada fica suspensa, pela noite dos cantos dos bichos e das músicas das crianças; junto dos que se afogam em bares ou nas sarjetas da falta de ambição que pode ser a mais justa ambição; essas casualidades que já não esperam grandes coisas, não acreditam em milagres ou no romanesco aconchegante, e então pode acontecer um vislumbre ou um encaixe como esse que Moseby teve junto a essa aparição feiticeira surgida das águas; momento, vamos sabê-lo posteriormente, também encenado, mas é preciso já estar completamente vazio para não se perceber da excepção ou da maravilhosa ilha que tão serenamente emergiu e explodiu aí, no momento mais belo e apaziguado.

"Night Moves" é assim e por tudo aonde não se pode aceder, o mais sossegado e o mais exposto momento de Penn. Uma acalmia urdida num mal-estar e numa doença que é muito mais evoluída do que a dos eléctricos e furiosos filmes passados. O sexo, a nudez, o oferecimento ou a procura, tudo isso aparece sem o fulgor do desejo. Tudo tem valor de mera troca, de vingança, de mal mesquinho. Embaciamento e entropia onde se avança a custo, sempre de pé atrás, cada um por si. Como no desporto americano, corre quem estiver com a bola. Já não há trabalho de equipa, entreajuda, solidariedade. Sem se dar por isso, estamos perante um dos mais vertiginosos climas, temperamentos, ventos dos anos setenta. Essa Nova Hollywood que proporcionou visões tão cansadas, terminais, funéreas como esta. Para se perceber agora que as tiradas sobre os filmes de Eric Rohmer não eram maldosas, não se podiam era aplicar no contexto. Pois como Rohmer, Penn também sabia que é sempre questão de envolvência e não de acessório; questão ontológica primordial, nunca efeitos que se evaporam sem o apelo da matéria. Se Moseby acaba a navegar, ainda a navegar, com tanto cadáver em torno, é porque ainda restará algo. Nem que seja só navegar. Mas navegar ainda. Pertence a um tipo não muito gregário que inclui o George C. Scott de "The New Centurions ", os espantalhos de "Scarecrow", porventura o corredor louco de "Vanishing Point". Tipo que ignora o sábio conselho "se não os podes vencer, junta-te a eles". E paga por isso. "You bastard! Bastard! Bastard!" é o que esse detective vocifera para si mesmo e para quem já não o pode escutar. Depois a câmara sobe, sobe, e ele continua a navegar. Algo se esfuma. E não temos nova situação. Assim, seco.


* Já que falamos de detectives, da América e da Califórnia da era da paranóia, drogas, rock and roll e afins, gostei que Paul Thomas Anderson tenha feito "apenas" um filme com "Inherent Vice". "Apenas" uma "normalidade" que almeja as três estrelas da solidão. Isto é, não vestiu o fato de gala de génio ou de novo Orson Welles que se vai atirar de forma espampanante ao mais recluso dos escritores da sua terra, não quer vencer Tarantino no propalado show-off (fica lá com a bicicleta Quentin...), parece ainda desprezar a classificação do neo-noir que os fãs colam. Pelo contrário, praticou uma quase indiferenciação que só amplia esse nevoeiro que tudo enleia no auge e que evidentemente não tem só a ver com os charros. Meteu ainda na linha algo que tinha sido ridicularizado em delírios vácuos como "Requiem for a Dream", para lembrar a dureza do Preminger de "The Man with the Golden Arm" transportada para a paleta em causa. Do riso ao desalento e à melancolia, PTA percebeu que o espectáculo não era brincadeira nenhuma pois uma mulher continuava a querer voltar para um homem e vice-versa. Como na origem. Sportello fumou de tudo e os colhões do mudo, Moseby acho que nem toca em cigarrada, mas é idêntica nuvem que pesa sobre os seus semblantes, perpassando-os algures. "Que o nevoeiro desaparecesse e que, desta vez, de alguma forma, ali estivesse qualquer outra coisa". Pynchon não concluiu assim, antes ainda alinha, mesmo que no meio de tanta trampa, tanto néon, do que só pode durar um ou dois segundos e depois se corta, com anseios de eternidade. Um nevoeiro que nos transformasse a todos em iguais.


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