quinta-feira, 26 de março de 2020
A Sad Flower In The Sand... John Fante
A Sad Flower In The Sand… essa tristeza magoada dos que chegam à terra prometida cheios de sonhos, clamando pela mínima dádiva, por qualquer ternura, um raio de sol do deserto que seja para acalmar a desilusão, obrigados antes e durante muito tempo a comer o seu peck of dirt, muito antes de entreverem qualquer Peck of Gold, citando Robert Frost, o poeta.
John Fante… que das primeiras pegadas no pó de Los Angeles até à sua finest hour, em que combalido numa cama, cego mas cheio de ganas ditou à sua mulher as últimas palavras de uma preciosa obra sofrida, de uma preciosa obra porque sofrida, viveu aí entre o deserto e as águas as mil e uma aventuras que qualquer artista, qualquer espírito fremente e generoso, tem de viver, nas ruas ou na mente, para se justificar.
Denver, Colorado… L.A… Bunker Hill… Holywood… de muitas coisas diversas, doces, amargas e envenenadas parece ter provado Fante, que na meca do cinema, segundo a sua esposa Joyce Fante, se deu muito bem com o terrível produtor Harry Cohn. Segundo Joyce, compreendiam-se mutuamente, o fogo de ambos era parecido. E ao contrário de Faulkner, de Goodis e de muitos outros, não teve de fugir dos estúdios com um cheque gorducho mas de alma queimada, percebendo que era um emprego e que se tratava, apesar de nem sempre poder ser livre, de escrever. Apesar das raivas, das desilusões e das frustrações, culpava mais as editoras que não facilitavam a vida aos verdadeiros escritores do que à suposta «prostituição hollywoodesca».
Escreveu para William A. Wellman, para Alfred E. Green, trabalhou com Orson Welles em “It's All True”, com Mark robson em “Youth Runs Wild” (titulo dele?) e elaborou sobre a actriz do mudo Jeanne Eagels para George Sidney, e mais tarde ainda para Edward Dmytryk. Mas talvez uma das experiências mais significativas dessa estada tenha sido adaptar o seu livro “Full of Life” para um belíssimo cineasta hoje esquecido, o Richard Quine da obra-prima “Strangers When We Meet”. Fante disse que só escreveu esse livro por dinheiro, e detestava-o. Mas no filme homónimo estão conservados muitos dos temas, das dinâmicas e das tensões das suas «aventuras da vida adulta» literárias, das linhas de força que regem a vida de casal, da pressão entre esse íntimo e o mundo dos negócios exterior que o sustenta, da questão primitiva da ascendência, dos legados e da prevalência dos progenitores; enfim, a guerra entre dinheiro e liberdade.
Quine foi inteligente e surpreendente no seu aproximar extremamente físico, pessoal e próximo aos acontecimentos ínfimos e pouco espectaculares que lançam e traçam a narrativa. A pulsão do pulso de Fante parece pedir a todo o instante que uma câmara de cinema se mova sem limites, se aproxime do chão e do tecto, berre com os protagonistas. Então Quine fez precisamente o oposto, segurando-a, mexendo-a conforme os ditames dos protagonistas, aguentando-a, criando uma energia entre os meios do cinema e os motivos de acção no qual o ponto de basculação surge constantemente dependente. E no mesmo sentido a luz, a montagem, o movimento geral, que não são por si só expressionistas nem independentes, antes respondem e estão incutidos na narrativa.
Narrativa que de supostamente tão universal, linear e secular – um casal à espera de um filho, a mulher disposta a viver a vida de Mulher de casa e de armas, o marido escritor e pronto para sustentar os seus e aguentar a casa, pronto para as turbulências artísticas – se fractura num evento surreal, embora possa ter um lado crítico de como na época os construtores (de casas ou de cinema ou até de livros) trabalhavam: um buraco que surge no centro da cozinha e que poderia ter posto em risco uma gravidez pacífica. A partir daí a vida de escritor não serve para pagar um chão novo, os responsáveis de tão pobre estrutura fogem com o rabo à seringa, e urge chamar o pai dele, que já tinha sido convenientemente arrumado a favor da independência de quem descurou o modo de vida destinado pelos criadores e ousou, neste caso, as letras – um pouco à medida do “Bloodbrothers” de Robert Mulligam, para mim a melhor obra assente em Fante (no seu espírito) alguma vez erigida.
E o Pai é obviamente um artista de corpo inteiro, diplomada da escola da vida e da alvenaria, com uma visão das estruturas que compõe o mundo e logo do mundo em si sem papas na língua. E é o pai, e a mãe nos breves mas significativos momentos em que enche o ecrã como Alma Mater, que traz as lições, as parábolas e a gravidade fina mitigada ao humor indescritível, sereno, companheiro e incomparável de Fante. Nesta mistura o filme é absolutamente John Fante e ele só tem que se orgulhar dele. Sem obra-prima, sem óscares da academia, com toda a sinceridade.
A partir daí o filme é imensa coisa, na sua aparente simplicidade: além da crispação entre a herança e o sonho que vai do irresolúvel à conciliação entre os elementos masculinos, temos um relato e uma reposição da vida, dos modos e costumes dos Ítalo-americanos na terra prometida, a evidência de que este tipo de artistas que aprenderam a meter a mão na massa com os seus antepassados dão uma goleada aos profissionais (vide a maravilhosa cena da reconstrução da lareira, ou a maneira como ele descobre a casa torta, tudo prometendo também o que seria mais tarde a obra-prima “The Brotherhood of the Grape”), ou nessa chegada à cidade do homem do campo onde lhe falta imediatamente e irremediavelmente o cheiro a flores e a terra, elementos primordiais que a vida citadina tende a esquecer até nova hecatombe. Ou mesmo a diferença entre andar de avião e de comboio, entre a elipse de ir ter com os pais a voar e a caminhada fruída do regresso, ente a capital e uma Sacramento claramente distante e assim subjugada, como ainda hoje em muitos países, a capital e o resto. Mas, momento capital da comoção e da complementaridade do sangue acima de todos os cânones e ciências modernas, o conto que o pai pedreiro inventa para o futuro neto e dita ao filho para este o compor com a sua pena da profissão escolhida. Entre partir pedra ou chapar argamassa e trabalhar um texto tem de existir a mesma precisão, a mesma paixão e criatividade, a mesma visão e noção de que tudo está ligado com tudo.
Retrato de uma fatia importante da América por quem sabe do que está a falar, estando destinada a caricatura a quem não sai do seu mundinho, e a fidelidade, aceitação e graça a quem está aberto a todos os semelhantes. Tal como os bêbados de John Ford ou o seu Wyatt Earp no “Cheyenne Autumn”, tal como os amadores de Luis Buñuel ou os não-figurantes de Michael Cimino, a chamada caricatura ou o malfadado overacting são questões ao mesmo tempo de fundura, síntese e complexidade. De humor, sempre, e de humildade e ternura, mas também de dureza, visto que ali fala-se a sério quando tem de ser e brinca-se na mesma medida, sem dissimulações, e nem tudo é um mar de rosas. Uma espécie de mágica realista, dura e comovida, é essa toda a matéria e logo segredo de Fante, que Quine preservou e revelou pela observação e lento desvelar e não pela facilidade que seriam os gritos e o histerismo técnico e estético.
Robert Towne, um dos seus mais fervorosos seguidores mas não herdeiros – acho eu, acho que não se herda a «vida em primeiro grau» em vão – esse grande argumentista que utilizou “Ask the Dust” como puro documento para meter as personagens de “Chinatown” a falar verdadeiramente como se falava nos anos 30 Californianos e não através de convenções literárias. Também falou certa vez, magicamente, sobre o suposto racismo das personagens de Fante, percebendo que se tratavam de seres que muito novos tiveram a grande revelação da sua vida, seres que nunca mais sentirão tais esperanças, tais desesperos, que são a mesma coisa, que nunca mais sentirão assim totalmente durem mais um ou setenta anos. Robert Towne que afinal, e convocando a contradição que é outro dos pilares fundadores, outro dos vértices e vórtices oblíquos da obra e vida de Fante, convocando também essa lucidez e estoicismo mútuo, pôs na boca de Jack Nicholson palavras a sair-lhe dos fundos das tripas reenviadas para a eternidade ou para o feto, nessa tão fabulosa como desprezada sequela do filme de Polanski, inatacável pois justa e irracional carta de amor e fonte de tragédia perene sobre L.A, feita por quem a conhece como as palmas das suas mãos, que é “Two Jackes”: «O tempo muda tudo. Como a frutaria que se transforma numa bomba de gasolina. Mas as pegadas e sinais do passado estão por todo o lado. Lutam por estas terras desde que os primeiros missionários espanhóis mostraram aos índios as vantagens da religião, dos cavalos e de alguns anos de trabalhos forçados. Os índios é que sempre tiveram razão. Respeitavam os espíritos. É tão fácil esquecer o passado como alterá-Io. (...) As memórias são assim, imprevisíveis como nitroglicerina, nunca se sabe o que as fará rebentar. As pistas úteis nunca estão onde as procuramos. Caem do bolso do fato doutra pessoa que trazemos da lavandaria por engano. Na melodia que não conseguimos parar de trautear, que nunca ouvimos antes. Estão no número de telefone errado que marcamos a meio da noite. Os sinais estão nos velhos locais familiares onde pensamos que nunca estivemos. Mas habituamo-nos a vê-Ios pelo canto do olho, e acabamos por tropeçar nos que estão debaixo do nosso nariz.»
Monólogo eternamente válido nos poços de petróleo do velho Oeste como em torno do betão Bracarense, Portugal. Quando no início dos anos setenta Towne conheceu pessoalmente Fante, adquirida a confiança e o respeito entre os dois, o velho escritor que naquela época ainda ninguém conhecia ofereceu uma primeira edição de “Ask the Dust” ao jovem que estava há anos a tentar escrever o filme para Nicholson – depois de ter recusado reescrever “The Great Gatsby” para não lixar um grande romance americano – e assinou-a pedindo-lhe que a levasse para paragens longínquas. Towne iria fazer a sua adaptação ao cinema já nos anos 2000, depois de ter ido a muitos lados. De Mulligan a Towne, haverá ainda por aí alguém com os tomates, o riso e o choro no sítio certo?
terça-feira, 24 de março de 2020
Prontos para a porrada
Da América sempre tivemos os mais diversos cineastas, as
imagens e sons mais experimentais, os planos libertadores e acusadores, a
tradição acérrima. No meio do turbilhão galopante, dos paradoxos e das
contradições fundadoras, ainda hoje prevalece entre poucos uma moral de levar
uma verdade até às últimas consequências, de meter um sistema em cheque, de
clarificar o intolerável. O que sempre retirou o tapete ao simplismo e à moralzinha
foi o factor pedra no sapato, o império a ser melindrado pelo Zé Ninguém,
pelo idiota, o vagabundo de Chaplin ou o gelo de Keaton, um Forrest Gump ou o
advogado alcoólico, alguém numa sombra, uns ridículos idealistas lúcidos, perfeitamente
desprovidos de poder ou de imagem social, que a um dado momento e num certo
lugar não aguentam mais e decidem saber para lá do que politicamente é
aceitável.
Como numa família ou num verdadeiro espírito de equipa há
gestos e tomadas de posição recorrentes, a que não se pode escapar caso se
queira perseguir essa certa verdade até aos confins, e um cineasta genuíno de
Hollywood ou das suas margens, sem segundas intenções nem ambígua ironia, inevitavelmente
e mesmo que resista irá apropriar-se à sua maneira de certas posições escritas
numa tábua como a dos mandamentos: entre outros, o esventrado naturalismo
revelador do nosso sistema social no “The Crowd” de King Vidor; as entradas e
saídas de casa provadas todas as guerras do Ethan Edwards / Ulisses em “The
Searchers” de John Ford; essa dupla atormentada por cheiros de veracidade e de
não-aceitação de controlo privado e global no “All the President's Men” de Alan
J. Pakula, abrindo caminho ao Oliver Stone de “JFK”, superação e reinvenção da
gramática Hollywoodiana em favor da crucial pergunta de uma nação.
Todd Haynes, conhecido como um grande artista do cinema
americano independente e criativo, nunca tendo feito nada que não revelasse
consciência, paixão e bom coração, decidiu que chegara a hora e atirou-se
veementemente para esses lados do sangue, suor e lágrimas (e possivelmente
também merda, a sujidade de merda que acarreta toda a exposição pública deste
tipo) dessa dura linhagem. “Dark Waters” é um filme carregado e manchado por
diversos cancros, doença figadeira, vesículas podres, mentiras podres, dentes
podres, fábricas horrendas expostas cruamente pela fria máquina de filmar que
mesmo assim parece provida do eufemismo, cinzentismo imperdoável, testículos de
vaca e de homens corrompidos, um meio orgânico, complexo e dinâmico regido pelo
veneno que sempre interessou a Haynes em diversas formas, atingindo aqui o
máximo de delírio, porque realista. Vistas e tocadas estas visões, águas a
feder do rio Styx, círculos contemporâneos do Inferno, fica-se pronto para a
porrada.
Os azuis, esverdeados e arrefecimentos básicos da fotografia
do genial e sempre denso Ed Lachman pintam e correm tudo a horrendo
plastificado de sacos de hipermercado incinerados, não caindo no entanto numa
tautologia da redundância pois todos os enquadramentos procuram gizar o
percurso do humano imerso na pocilga e, acto contínuo, perscrutar uma
resistência, uma orientação, uma salvação. Todo o mundo natural surge em
colapso na iminência de um cataclismo, de uma pandemia, do Apocalipse, mas como
disse Faulkner no seu discurso Nobel, falta ainda surgir um derradeiro grito do
homem. “Dark Waters” é o filme mais degradante de Haynes, e está ao lado dos
seus melhores. Quanto mais feio, mais justo, para aspirar a ser superiormente
belo, forçando diversos raios verdes nos derradeiros crepúsculos e prometendo
ainda mais um capítulo, mais uma oportunidade, mais um possível abraço, mais um
semelhante acordado.
É preciso procurar dentro, ou no olhar, ou na postura arqueada
mas sempre recta do espantoso advogado de Mark Ruffalo, procurar nas palavras e
nos gestos cortantes como catanas afiadas do espantoso camponês que o procura, esse
tremendo coração dos grandes individualistas descarados que sempre redimiram e
salvaram a América, o seu cinema, a sua História, sendo irmãos de toda e
qualquer humanidade que importa. Também como em “The Insider” de Michael Mann
trata-se de enfrentar o mal abstracto (liberalismo em todo o espectro,
corporativismo sobre-humano, globalização diabólica) dando em troca a casa e a
família, a sanidade e a carreira.
Acho que Haynes quis fazer este filme pois logo no início de
um processo ambiental e de vida e morte que se iria arrastar nos tribunais e na
praça pública por largos anos, um agricultor sem grande instrução primária diz
ao super-advogado interessado mas ainda aparelhado que, face ao grande sistema
- incluindo nisso os seus escritórios de defesa, os seus tribunais, a sua
justiça oficiosa, os seus cientistas, a sua imagem social composta - só a
protecção mútua entre os que estão fora desses grandes círculos mediáticos, ou
seja, os comuns, os cacos colados a raiva e a amor, pode levar a uma salvação.
Face ao ajuntamento e à fusão imbatível desse tumor, resta a
obsessão protelada de uma cura que não permite o descanso e o deixa andar,
um individualismo com milhares às costas, uma ousadia destruidora que mesmo na
data do juízo final ou às portas do céu há-de valer alguma coisa, nem que seja
o renovar da teimosia e da consciência de que alguém se preocupa. Tal como a
curva dramática da esposa do advogado tão solitário, tão acompanhado, que vai da
ascendente linha contínua do medo até ao vórtice do companheirismo
incondicional. Alguém tem de ir renovando a pedra no sapato, mesmo à custa da
vida privada ou de filmes aparentemente feios, à custa do que for.
quarta-feira, 11 de março de 2020
para Richard Jewell
O velho e o novo ou o espectáculo mediático mata mais do que qualquer vírus.
Um portentoso homem que sempre quis ser rei – o Michael Johnson dos recordes olímpicos de Atalanta 1996 – e um perfeito comum, mais do que rechonchudo mas de olhos e ouvidos bem abertos. Um maquinismo trabalhado para ser perfeito e o menino da mamã que à semelhança de muitas crianças antes e depois dele sonhou ser policia, vigilante, proteger pessoas. Mundos opostos, e um encontro óbvio.
É assim que Clint Eastwood sintetiza o choque essencial neste seu último contra-relógio, tentativa de reverter a novíssima humanidade feita justiça de facebook: o mundo é uma corrida, viver é uma corrida, onde todos os pormenores e detalhes contam (à semelhança do velhadas de “The Mule” que implorava para largarem os telemóveis e olharem para os semelhantes, mesmo que Mexicanos), onde o acto global desse deus do Olimpo na terra e o acto perplexo daquele insignificante protector de milhões de almas são feitos nunca ousados, assim inéditos no conhecimento da humanidade. Clint, mais surpreendido nesta terra do que nunca, junta as paralelas de David W. Griffith com as danças de Sergei M. Eisenstein, as provas de facto com a beleza retumbante, o irreconciliável com o cosmos único e indivisível.
Essa magistral sequência lançada (como um tiro de partida) pelos olhos de Richard no seu sofá caseiro da estupefacção láctea aglutina o super-homem Texano com os singelos advogados incrédulos a descobrirem a verdade não pelas aparências mas antes pela ciência. Sequência de cortes precisos, díspares e contíguos: uma e outra corrida possuem a sua própria veracidade, sem margem para dúvidas, encontrando-se ambas no final ou algures no caminho. Sequência que dura aproximadamente 100 segundos e que permite endireitar os eixos empenados pelo espectáculo da mentira mediática conveniente.
“Vamos lá ajudar este rapaz”, decide então o pulsante advogado, anjo da guarda e cronometrista gélido. Richard Jewel, iremos ver, não é a imagem da perfeição, mas na prova de fogo a que se propôs, ao acaso ou tendo-se para ela preparado durante toda a vida, não vacilou. E Clint, como o advogado e a sua assistente, jamais poderão deixar passar essa corrida em branco, devolvendo-lhe a mesma estética e a mesma ética, a mesma grandeza e a mesma candura do ouro do rei Johnson. Clint na vanguarda humana e estética.