terça-feira, 24 de março de 2020

Prontos para a porrada




Da América sempre tivemos os mais diversos cineastas, as imagens e sons mais experimentais, os planos libertadores e acusadores, a tradição acérrima. No meio do turbilhão galopante, dos paradoxos e das contradições fundadoras, ainda hoje prevalece entre poucos uma moral de levar uma verdade até às últimas consequências, de meter um sistema em cheque, de clarificar o intolerável. O que sempre retirou o tapete ao simplismo e à moralzinha foi o factor pedra no sapato, o império a ser melindrado pelo Zé Ninguém, pelo idiota, o vagabundo de Chaplin ou o gelo de Keaton, um Forrest Gump ou o advogado alcoólico, alguém numa sombra, uns ridículos idealistas lúcidos, perfeitamente desprovidos de poder ou de imagem social, que a um dado momento e num certo lugar não aguentam mais e decidem saber para lá do que politicamente é aceitável.

Como numa família ou num verdadeiro espírito de equipa há gestos e tomadas de posição recorrentes, a que não se pode escapar caso se queira perseguir essa certa verdade até aos confins, e um cineasta genuíno de Hollywood ou das suas margens, sem segundas intenções nem ambígua ironia, inevitavelmente e mesmo que resista irá apropriar-se à sua maneira de certas posições escritas numa tábua como a dos mandamentos: entre outros, o esventrado naturalismo revelador do nosso sistema social no “The Crowd” de King Vidor; as entradas e saídas de casa provadas todas as guerras do Ethan Edwards / Ulisses em “The Searchers” de John Ford; essa dupla atormentada por cheiros de veracidade e de não-aceitação de controlo privado e global no “All the President's Men” de Alan J. Pakula, abrindo caminho ao Oliver Stone de “JFK”, superação e reinvenção da gramática Hollywoodiana em favor da crucial pergunta de uma nação.

Todd Haynes, conhecido como um grande artista do cinema americano independente e criativo, nunca tendo feito nada que não revelasse consciência, paixão e bom coração, decidiu que chegara a hora e atirou-se veementemente para esses lados do sangue, suor e lágrimas (e possivelmente também merda, a sujidade de merda que acarreta toda a exposição pública deste tipo) dessa dura linhagem. “Dark Waters” é um filme carregado e manchado por diversos cancros, doença figadeira, vesículas podres, mentiras podres, dentes podres, fábricas horrendas expostas cruamente pela fria máquina de filmar que mesmo assim parece provida do eufemismo, cinzentismo imperdoável, testículos de vaca e de homens corrompidos, um meio orgânico, complexo e dinâmico regido pelo veneno que sempre interessou a Haynes em diversas formas, atingindo aqui o máximo de delírio, porque realista. Vistas e tocadas estas visões, águas a feder do rio Styx, círculos contemporâneos do Inferno, fica-se pronto para a porrada.

Os azuis, esverdeados e arrefecimentos básicos da fotografia do genial e sempre denso Ed Lachman pintam e correm tudo a horrendo plastificado de sacos de hipermercado incinerados, não caindo no entanto numa tautologia da redundância pois todos os enquadramentos procuram gizar o percurso do humano imerso na pocilga e, acto contínuo, perscrutar uma resistência, uma orientação, uma salvação. Todo o mundo natural surge em colapso na iminência de um cataclismo, de uma pandemia, do Apocalipse, mas como disse Faulkner no seu discurso Nobel, falta ainda surgir um derradeiro grito do homem. “Dark Waters” é o filme mais degradante de Haynes, e está ao lado dos seus melhores. Quanto mais feio, mais justo, para aspirar a ser superiormente belo, forçando diversos raios verdes nos derradeiros crepúsculos e prometendo ainda mais um capítulo, mais uma oportunidade, mais um possível abraço, mais um semelhante acordado.

É preciso procurar dentro, ou no olhar, ou na postura arqueada mas sempre recta do espantoso advogado de Mark Ruffalo, procurar nas palavras e nos gestos cortantes como catanas afiadas do espantoso camponês que o procura, esse tremendo coração dos grandes individualistas descarados que sempre redimiram e salvaram a América, o seu cinema, a sua História, sendo irmãos de toda e qualquer humanidade que importa. Também como em “The Insider” de Michael Mann trata-se de enfrentar o mal abstracto (liberalismo em todo o espectro, corporativismo sobre-humano, globalização diabólica) dando em troca a casa e a família, a sanidade e a carreira.

Acho que Haynes quis fazer este filme pois logo no início de um processo ambiental e de vida e morte que se iria arrastar nos tribunais e na praça pública por largos anos, um agricultor sem grande instrução primária diz ao super-advogado interessado mas ainda aparelhado que, face ao grande sistema - incluindo nisso os seus escritórios de defesa, os seus tribunais, a sua justiça oficiosa, os seus cientistas, a sua imagem social composta - só a protecção mútua entre os que estão fora desses grandes círculos mediáticos, ou seja, os comuns, os cacos colados a raiva e a amor, pode levar a uma salvação.

Face ao ajuntamento e à fusão imbatível desse tumor, resta a obsessão protelada de uma cura que não permite o descanso e o deixa andar, um individualismo com milhares às costas, uma ousadia destruidora que mesmo na data do juízo final ou às portas do céu há-de valer alguma coisa, nem que seja o renovar da teimosia e da consciência de que alguém se preocupa. Tal como a curva dramática da esposa do advogado tão solitário, tão acompanhado, que vai da ascendente linha contínua do medo até ao vórtice do companheirismo incondicional. Alguém tem de ir renovando a pedra no sapato, mesmo à custa da vida privada ou de filmes aparentemente feios, à custa do que for.

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