quinta-feira, 2 de abril de 2020
3 filmes de Fincher
Com “Se7en” David Fincher marcou toda a década de noventa do século passado. Eram os anos setenta e os anos noventa a conversarem, fundidos e não-resolvidos; a MTV que importa e as rugosidades paranóicas e bíblicas. O que fazer depois de atingir um auge aos 32 anos?
Em comparação, “The Game”, dois anos volvidos, soou como um exercício frívolo, mas com o decorrer do tempo e do estado das coisas nas sociedades globais o epíteto ressoou ainda mais como as mesmas intenções aplicadas a Hitchcock em filmes como “To Catch a Thief” ou “North by Northwest”.
O frio e cerebral empresário Nicholas Van Orton carregada por Michael Douglas ou está mesmo a pedir por uma lição ou então é um homem magoado na infância que pede um olhar e uma atenção mais profunda. As imagens em super-8 que paralelamente invadem e trucidam a narrativa no começo para consequentemente tudo assombrarem e finalmente apaziguarem, fazem raccord soturno com a única citação bíblica literal que se escutará: «Eu era cego mas agora vejo!», do livro de Jo.
Era cego e estava a pedi-las; agora vejo, estou curado; talvez seja, a resultado final. Mas o vale das sombras é duro e está carregado de perigos a que devemos fazer frente pacificamente e acreditando. Fincher fez um filme sobre o próprio cinema e sobre o aqui e agora, sendo 1997 ou 2020. Um filme sobre a felicidade e as agruras do livre-arbítrio. Que tanto funciona nos sentidos literais como nas parábolas mais demenciais, em termos concretos e em termos da famosa suspension of disbelief. Isto não é um videogame, não é uma PlayStation.
Van Orton vai apreciar a realidade a ser transmutada violentamente e despudoradamente; o grande espectáculo a vilipendiar o dia-a-dia e a rotina que nos sustém; vai ter de explicar o inexplicável e a plot mais rocambolesca ao semelhante mais comum; vai notar o que nunca tinha notado ou não notava há muito tempo: que existem figurantes, actores, que passam de um lado para o outro e é preciso estar atento; vai confundir o simulacro por causa do aparato, como nos telejornais e redes sociais, e estar no centro dos efeitos especiais ultra-manipuladores, acreditando nisso tudo; enfim, um filme a ser feito dentro de outro filme, produzido pelo actor principal que vai ser ele mesmo, produtor também e, lá para o fim, argumentista.
Argumentista pois o socorro que irá representar a ex-mulher ainda dentro do Grande Jogo, todo o inverso em relação ao telefonema que com ela teve anteriormente, o negativo a volver-se positivo, o coração a brotar do gelo; ou, já aparentemente fora do Jogo-Jogo, quando no final pede para se encontrar novamente com um dos peões cruciais do tabuleiro, a bela Deborah Kara Unger, ele reescreve tanto dentro como fora o destino que cabe a cada um, sem ilusões; argumentista ainda no momento em que ainda Oficiosamente se suicida mesmo, antecipando o homicídio que funcionaria como o clímax perfeito, o toque de Midas de um grande estúdio, de uma grande equipa técnica e artística.
Se toda essa fábrica descendente de Hollywood e dos seus sonhos e pesadelos chega a levar o exercício aos píncaros, e consigo tanto acreditar que Orton tanto se lixou como apenas – e pode chegar – Fincher, o pintor Harris Savides e os homens da caneta são uns génios, como perceber que continuamos como no Jogo da Vida, onde é preciso resolver quebra-cabeças encapuçados, arranjar chaves e tramar labirintos, oferecer o corpo e a mente aos mind-fuckers. E é nessa brecha que podemos, uns a meio do caminho outros no termo, perceber mais uma vez que o jogo da vida ultrapassa sempre o da ficção, a realidade é sempre mais intrincada e surreal do que o escapismo e a evasão mais descabeladas.
Basta ver hoje, quem previu a pandemia 2020, todo este suspense, condicionantes, alternativas, alcances, estagnação e criatividade possível? Talvez este «exercício inútil depois de um dos filmes mais originais e aterradores dos anos 90» ajude um pouco a lidar com o jogo fora do Jogo. Como Nicholas Van Orton que metafisicamente deu um passo por livre vontade para o outro mundo, ressuscitou do pesadelo inventado e do pesadelo imposto, ultrapassou a questão imemorial do Pai e nasceu outro.
“The Girl with the Dragon Tattoo” é certamente o filme menos esperado do percurso de Fincher. É claro que o universo de mistério, dos assassinatos em série, do tratamento anti-bizarro de tudo isso e dos funcionamentos das mentes criminosas estão lá – e daqui pode-se conectar directamente com as investigações ultra-complexas e ultra-éticas da série “Mindhunter”, assombrosa – mas é sobretudo os ambientes, a geografia de Stieg Larsson e as intrincadas e sempre rocambolescas questões das heranças e genealogias sempre aparentadas às arcas de Noé desmitificadas que estranhamos naquele que parecia ser um cineasta puramente americano; tal como o mergulho pelas ramificações complexas e distorcidas da formação emocional da detective juvenil que dá nome à saga, sendo juvenil a surpresa.
Mas é de emoção, precisamente, que se trata, de inteligência emocional. Os cofres a serem desempoeirados, remexidos e virados do avesso são fundos, antigos e imemoriais; as forças que os deslindam encontram-se emocionalmente em perda – a miúda com cavos traumas de infância perdida e de inadaptação social pode vislumbrar na missão de encontrar uma menina estranha quarenta anos depois uma alma-próxima, e talvez uma cura, tal como o detective de Daniel Craig necessita de confirmação de identidade. O curso dramático empoeirado, e para além dele a frieza tecnológica que aqui é o outro centro condicionante, promove o encontro de duas inteligências. A inteligência dele reconhecida por um velho patriarca que quer arrumar a sua história e por consequência a história familiar, e a inteligência dela que lida tão friamente como as máquinas pelas constelações numéricas e algoritmos que hoje nos definem.
Para lá dos sistemas, das redes e das conexões invisíveis e científicas interessa a Fincher o potente fogo domado até ao nível zero de transparência e de inflexão pelo cérebro, pelo corpo mas sobretudo pelo espírito de Lisbeth Salander, a extraordinária personagem que é The Girl with the Dragon Tattoo. E assim temos o encontro desta inteligência emocional sôfrega e contida ao mesmo nível, sôfrega dentro, contida fora, com a inteligência emocional do detective / jornalista de Mikael Blomkvist, que será o único a possuir e a utilizar adequadamente as redes de conexão sensíveis e personificadas com ela – distância, compreensão, comunicação ao mesmo nível que com ele mesmo, sem superioridade, sem qualquer desconto, jamais comiseração.
Entre as violações, penetrações e intersecções abstractas e inexoráveis do planeta dos hakers e as violações, penetrações e intersecções físicas e psicológicas entre terráqueos, a câmara, os famosos inserts, e a orquestração Fincheriana parece construir todo o o crescendo e desenterro não no mistério traçado pela plot que promoverá o filme – um fabuloso Cluedo «ultra plus nec» - mas sobretudo pela destrinça, pelo desenrolar, pelo recobro e regresso à temperatura emocional que pode dispensar a inteligência isolada e clínica e entrar nas vertigens do coração e nos arremedos da paixão. Que serão visões, movimentos e cenas micro – mais do que o sexo e a descompressão animal, um toque nas costas, um olhar para o quarto privado, a pálpebra de um olho a emudecer.
Talvez seja isso que interessa ao Fincher, e se não o for, interessou-me a mim mais do que tudo o resto, de modo precioso. Pois o labirinto e a reposição desenrolam-se até ao ponto em que se deu o indesculpável, e no final temos inclusive a desilusão dos primeiros amores e a continuação. Ela está pronta para o próximo capítulo, de dentes cerrados, de espírito aberto ao semelhante, pressentindo-se essa novidade de forma admirável. E Fincher, para algumas mentes um nerd e um obstinado tecnológico – «até publicidades e anúncios desportivos continua a fazer» - arrisca um blockbuster negro baseado num bestseller exótico e global para no turbilhão tentar sacar uma festinha carinhosa na epiderme básica, no arrepio e nos estremecimentos íntimos e salvíficos. Que isso aconteça na neve e longe da América pode não ser tão contratual como parece, talvez uma camada natural, uma lente natural a confundir as Prime Lenses das Red Epic. Se hoje Renoir caísse neste pântano parece-me que a isso, só a isso, cinco segundos num filme de duas horas e meia, aspiraria. Cinco segundos que podem ser como que uma hecatombe.
Com “Gone Girl” Fincher continua a sua veia significantemente manipulativa derivada do apogeu que se deu logo ao terceiro filme, o “The Game” em 1997. Na verdade, nunca a deixou, mas abriu várias excepções para espetar a sua unha no grande sentido justiceiro e tradicionalmente livre que a geração dele acatou de homens como Alan J. Pakula, homens inevitavelmente marcados pelo sonho americano cuspido para a lama que representou o assassinato de John F. Kenendy, nessa sublime elegia à orientadora obsessão que é “Zodiac”, ensinamentos férreos Languianos; ou na continuação dos sonhos ligados com pesadelos do onirismo realista de F. Scott Fitzgerald em “The Curious Case of Benjamin Button”.
Em “Gone Girl” os argumentistas e o realizador são mestres titereiros a dissertarem e a esmiuçarem sobre a vida pós-casamento, os compromissos, as cedências, chantagens, etc. E não só isso, pois agora Fincher e Gillian Flynn fazem como que uma revisão de clássicos do calibre de “Ace in the Hole” ou “A Face in the Crowd” metendo em grandíssimo-plano o veneno e o nojo dos novos meios de propaganda, fabricação e manipulação da informação e da verdade conforme o valor de mercado. A propagação do mal estudado e aprovado pelas desmesuradas cadeias de informação e enformado pelos rostos que nos acompanham no tranquilo sofá familiar, a desinformação e o twist que se tornam virais, perdem qualquer resquício de lógica (mesmo que distorcida), de alcance (maquiavélico ou com segundas intenções) ou de moral que nas obras de Billy Wilder ou de Elia Kazan poderia ser tacteado, para cair nos pântanos do nada.
Nada, ausência de plot causa-efeito, perda do poder moral de encenação, abstracção maligna do ponto de vista, manipulação com objecto ausente. Acto contínuo, “Gone Girl” é tanto um tratado contemporâneo sobre as imagens e sobre o caso particular do cinema, como sobre a não sobrevivência de qualquer tipo de anticorpos no mediatismo global do espectáculo da informação, do espectáculo na informação, do espectáculo informativo e dramático. Sem dramatismo, sem ponto de vista ou ética, temos o resultado da disseminação aleatória dos legados gratuitos da fusão da ausência de forma com a ausência de conteúdo que do Big Brother até aos painéis desportivos – infinitamente para lá da tão propalada estética MTV que agora se percebe justa – elevaram a vilanagem do brilho pessoal e da razão a qualquer custo para as mecânicas narrativas cinematográficas como para a globalização particular.
Uma das jogadas mais inteligentes mas também mais ambíguas ocorre nos dois movimentos opostos, dois blocos, duas partes, duas velocidades e lados que o espectador tem de escolher. No primeiro deles, o marido é claramente culpado. No segundo, tudo é inverso e o marido é mais do que inocente, sendo a esposa o mal do universo. Mas é precisamente neste posicionamento aparente, neste simplismo de jogo de damas ou de «programa das manhãs» que tudo se vai baralhar. E então é preciso estar atento aos menores sinais, aos hábitos que conhecemos como nossos, ao que refutamos e ao que adquirimos por certo. E não simplificar ainda mais para não sermos a peça mais básica do GRANDE OLHO. É nesta intersecção e penetração que tudo se joga, e então, como em toda a arte que importa, é questão de irmos olhando, deslindando, escolhendo ou desculpando, fulgurantemente.
Não é Fincher nem Flynn que são destituídos de princípios, carácter ou deontologia, antes a ausência destas armas, deste tipo de alma e coração, que urge expor, e quanto mais em modo abjecto mais utilmente, ou antes, impossível fugir ao modo abjecto se a lucidez presidir. Assim, o filme é feio, moralmente feio, esteticamente condenável, mas talvez útil. Útil como o frio bisturi que em “Zodiac” opera uma circuncisão pelas entranhas opacas do Mal até ao âmago. Um tipo de zapping, de rewind e de fast foward pelos meandros do nível zero que tem a sua imagem cristalizada e vazia na imagem final que não chega a um novo estado nem continua uma saga, antes vale pelo seu valor intrínseco de nada querer resolver. Relembrando as palavras do detective de Morgan Freeman no “Seven”: «It will go on and on…» O valor de Fincher, dos escritores, dos montadores, mas sobretudo de Fincher, o artesão-mor, é tornar todo este planar pelo degredo, todo este puzzle sem forma final, esta toca do coelho do mundo de lewis Carrol sem fundo nem aveso, novo remake de “Vertigo” com o abismo da mulher morta e da mulher viva num corpo cerrado para sempre sem suicídio, o mais lisível possível, para assim o desprezarmos ou acatarmos, conforme o caso. E nisso Fincher continua um mestre imbatível, um artesão ao nível do possível Hawks. Depois de Clint Eastwood, um Hawks que veio dos anos oitenta e noventa, sobrevivendo-os, sem perdoar. Cada plano à altura do homem e do real meio em que está inserido, numa cadência justa e reveladora. Mesmo que no nojo.
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