terça-feira, 16 de junho de 2020

CASAS QUEIMADAS - Notas para futuros filmes III




José Oliveira
Junho de 2020



I, Planos à altura da situação, tentar a distância certa (exteriores). Simples campo-contra campo (interior da carrinha).

Bairro em Alvalade, lusco-fusco inapelável, atmosfera sufocante, veículos de alta cilindrada, Mercedes, Jaguar, BMW, vivendas espaçosas, jardins aritméticos, matriz asséptica. A brigada nocturna carrega a carrinha, sacos com duas sandes, refeições quentes na prata, peças de roupa variadas, jantar e ceia garantidos, vestuário possível. Máscaras comunitárias, luvas descartáveis, um voluntário usa sempre, outro nunca usa, dois usam conforme. Um homem do desporto, dois estudantes, um desempregado. Na rota impressa num tablet, as residências mais inóspitas à face do planeta terra. Sem comentários. Pelos Olivais velhos, duas paragens. Na primeira, o freguês habitual não aparece, no lugar vago apenas uma embalagem tetra-pack de vinho maduro tinto Lidl, um cobertor acobreado, a comida intacta do dia anterior. Na segunda, uma longa descida desde a estrada sossegada ladeada de vivendas germinadas até a um jardim encafuado, típico de tarefas de escuteiro, um senhor de barbas brancas, sem muito cabelo, desgrenhado e carregado de pauzinhos das árvores, casa de cartões junto a um casebre de guarda, mudo, com gestos entre a aflição existencial e a impossibilidade de explicação de coisa alguma. Um par de quilómetros e de curvas e contracurvas em fuga para a frente, duas casas abandonadas, grafitadas, ocupadas, número oitenta e quatro, de onde saem uns braços e uns farrapos agradecidos, juvenis, numa matriz desolada a cores garridas. No quarto ponto, Lidl de Xabregas, ruínas de alguma coisa antiga, de alguma habitação ou fabriqueta, chama-se, berra-se, Alguém aí?, boa-noite, alguém aí?, temos refeição quente, hoje é quente. Aparentemente, nada. Vinte metros à frente, numa paragem de autocarro, um senhor dos seus sessenta anos, explica que conhece muita gente da instituição, conta das saudades, cumprimenta o velho amigo voluntário que se voluntariou pela primeira vez, inicia uma ladainha cifrada, vários minutos, ininterruptos, vísceros.  Seguidamente, ainda em Xabregas, um carreiro, metade terra-batida, metade empedrado, fragoso, bravio, sem data, conduz aos abismos do cemitério do Alto de São João, que paira em silhueta nos altos, as campas alinhadas como sentinelas inconfessáveis contra um firmamento ainda resistente, os ciprestes já como que adormecidos, repousados, noite de completo breu estranhamente luzidio, dois voluntários transportam o cesto da comida, um à frente e outro atrás, alinhados, como quem transporta um caixão, o terceiro, na frente, topa o caminha, na rectaguarda, o último deles, tactea melindrosamente. Distinguem-se várias tendas, variada alvenaria, ora tosca, ora limada, aviários sem bicharia, grutas ecoantes, secas, o resto é um nublado dos mais diversos materiais e combinações. O supervisor chama, Aí alguém?, amigos, não querem comer nada, então, já de barriguinha cheia?, aparecem ou quê? Levanta-se um vulto negro, magro, depois outro, mais velho, de pensos nos joelhos, Boa-noite, hoje somos seis. Contam-se refeições. Seis?, mas já têm novos inquilinos outra vez, é? De cada vez é sempre mais um, sim senhor. Vou pousar aqui mas não deixe cair, veja lá, não posso arranjar mais porque está tudo contado, depois não temos para os outros. Seis pacotes para as mãos, as refeições quentes em cima de uma estaca de madeira instável, sorrisos cúmplices, agradecidos, talvez um pouco tímidos. Próximo ponto, falhado. Um número quarenta e quatro apenas conduz ao cemitério judaico, nem vivalma. Na estação do Oriente, metade da carga aliviada. Três voluntários na rectaguarda, em organização, em contagem, um a entregar em mãos, a dizer bom-apetite. Refugiados, meninas estilo dread, uma velhinha magra de cabelos branco-mítico a pedir roupa e informações do espaço de apoio, aleijados, doentes, tosses, estômagos a doer,  drogados, esfarrapados, surrados, cancerosos, uma numerosa família com um rapaz de dez anos, gordinho, camisa do Benfica, que deixa tombar imediatamente a refeição quente, Não dá para outra?, deixei escorregar sem querer. Não, se não, não chega para todos, faltam muitos pontos. Correrias na última da hora, salvações na última da hora, já depois da hora, nos descontos, uns com sorte ainda, outros a correrem atrás da carrinha, falhanços, braços caídos. Parque das nações, três em frente ao Altice Arena, meia idade, brancos, praticamente indiferenciáveis, agradecidos, encolhidos, outro em falta, Talvez tenha ido mijar, deixe a comida aí, por favor, eu informo, é bom moço. E um espaço estranhamente vago, austero, com uma prata da comida quente de ontem ainda intacta. Na carrinha, um ciclista estafeta da Glovo estaciona, Não tem comida?, é apoio, certo? Eu preciso de comida também, esta merda de empresa não paga um caralho. O saco das sandes é oferecido, e logo recusado. Caralho, recusando comida, é?, não quero a merda das sandes, quero comida quente. Olhares suspeitos, sem solução. Não dão, recusando comida, puta que pariu. Segunda paragem do Parque das Nações, várias filas de cartões colados, formando cubos-casas, num dos últimos, uma mulher dos trinta anos, parece uma menina, bem-parecida, cabelos castanhos longos, penteados, sorriso ténue, fala do tempo e da ventania, do acaso e da esperança, um casal de travestis com barba de três dias, primeiramente só um, Fala lá carago, ainda ontem me chateei porque não acreditaram que somos duas, anda, levanta-te. Chegam, a correr, cambaleantes, os atrasados da estação do Oriente, um deles pede mais uma sandes para o pequeno almoço, pedido recusado, resposta aceite, Eu percebo amigo, já cá não está quem falou, evidentemente que se pudessem vocês ofereciam outra, qual é a dúvida, e afasta-se sorridente com a sua mala de rodas estilo aviador, impecável, em direcção a nenhum aeroporto. Antes da partida, ainda um sem-abrigo recente, inglês, prudente, simpático. A carrinha rola, rola. Zona marginal, Av. Infante D. Henrique a Sta Apolónia Cais da Pedra, manobras intrincadas de acesso, imediações da discoteca LuxFrágil. Meia dúzia de tendas frágeis, atadas com molas, pregos, abraçadeiras finas, carcomidas, uma putrefacta, encostadas a caixas de electricidade com anúncios de festas canceladas, postes de iluminação toscos. Numa das barracas, um casal, pedem água, Não é possível, só comida, hoje não foi possível garrafas de água. Outro pede uma camisa, Talvez seja possível, já vou procurar. Numa tenda improvisada a tecido variegado, um jovem ainda, trinta e tal anos, dentes corroídos, olheiras carregadas, Olhe, o meu amigo daqui, você sabe quem é, aqui o vizinho, foi para um hostel e eu não, como é qué isto?, tem algum jeito, éramos inseparáveis... Incompreensão, falta de resposta assertiva, Vamos tentar saber alguma coisa. Na tenda final, esverdeada, desmaiada, junto à porta de entrada da discoteca, entesada com molas, a frase escrita Jesus Ama Os Pecadores, a borrona preta. Uma mão sai de dentro dela, esquiva, uma fracção de segundo, cortante, Obrigado. Segue-se em frente, até ao próximo viaduto, Mesmo ao lado onde aqui atrasado largaram um bebé num caixote do lixo, foi um destes quem o descobriu. Para cima de vinte habitações, tendas, cartões, plásticos, cobertores, perímetros inventados, cercados, colheres de sopa niqueladas, cantis vazios, gorros de todos os feitios, rádios forjados, baterias desenrascadas, cuecas, peúgas, graxa para sapatos, secadores de cabelo, pentes tortos, pentes impecáveis, espuma para a barba, lâminas, sabonetes, detergente Omo, escovas de dentes, mata-moscas, chaves de fendas, broxas, diluente, quinquilharia indistinguível, ferruginosa, nada. Uns levantam-se e vão à carrinha, casais na tenda suplicam água, dormentes profundos, um deles que não quer nada, resoluto, a ruminar de solidão, outro em volta, a falar animadamente ao telemóvel, num para-cá-e-para-lá de fala-barato típico, fato de treino branco, Adidas, cabelo e aspecto cuidado, a percorrer os becos forjados pelos quais ninguém reza, na noite ali cavernosa. No fosso da linha de vagões, vários objectos pousados, pendentes, recônditos, mini-rádios, mini-garrafas de whisky, headphones, temperatura irrespirável, electrificada, quase nuclear, frio interior. Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, bondade, só bondade, um senhor de sessenta anos que não pode andar, sentado num cartão, operado várias vezes antes da pandemia, espécie de incontinência urinária, Tenho de mudar o saco de quatro em quatro horas. Vá entregar àquele amigo que não anda, por favor, ou levo eu, e do outro lado da estrada está uma família nova, passem por lá, se puderem. Na Ribeira das Naus desce-se ao fundo de um oceano clamante de água, martelado a pedrinhas, enfarinhado, lúgubre e heróico, duas refeições a alguém invisível. Ainda em torno de uma esplanada outrora só para estrangeiros, dois jovens barbudos com tendas relativamente novas. Várias voltas ao Rossio, um suicida do Terreiro do Paço que se mete na frente da carrinha, desesperado, fora de rota. Dois dormintes perfeitamente em baixo da porta do Teatro Nacional de São Carlos, só cobertores e farrapos coloridos, em fiapos, precários, os mais austeros de todos, a razia. Estação do Rossio, várias construções inauditas, futuristas, barrocas, artilhadas, desenrascadas, espaçadas. Numa delas, vazia, vários compêndios em língua chinesa, uns em cima de outros, quase simétricos. Ninguém, mas de repente, alguém, novo, fresco, O que eu precisava era de uns cobertores, lençóis, roupa de cama, dá para marcar aí? Acenos de cabeça, Vamos tentar. Obrigado, eu percebo perfeitamente se não der para trazer. Tem aí peúgas e slips, que bom, isso é sempre preciso, eu prefiro slips aos boxers, muito mais suaves. Metam aí as refeições que eu distribuo, são quatro a contar comigo, ali no parapeito, deus vos abençoe. Estou aqui há três dias mas quero dar um jeito a isto, portanto se der para me trazerem uma vassourinha também agradeço, só ontem contei as beatas e parei nas cento e vinte, mas pretendo tornar isto catita, arrumadinho, boa noite e obrigadinho. Sé de Lisboa, porta incomensurável, um acordado, outro a dormir, e uma estória contada pelo supervisor passada nesse lugar. Alguém, há uns tempos, que saiu da casa de saúde nesse dia, e o morador habitual. Vocês prometeram-me umas sapatilhas, onde estão?, não vos perdoo cabrões. Tentativas de socos, insultos, entre-ajudas, fuga. Mas não admito humilhações, estou cá para ajudar e não para me rebaixar, se tivesse de ser partia-lhe os cornos. Costumamos comer uma bifana ali no Rossio, na primeiro de Dezembro, mas por causa desta coisa está tudo fechado, chegamos a casa pela uma da matina e matamos o bicho. Faltam duas paragens. A família do outro lado da Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, perto do rio, meia-idade, perfeitamente normal, apaixonada, abraçada, com sede. E a última, entre a fábrica da Nacional desde 1849 e os Silos Portuários. Como numa picada, como numa guerra, atravessa-se, passo a passo, pelo meio de duas filas de vagões de mercadorias, enferrujados, poirentos, quase orgânicos, expressionistas, pés bem assentes nos trilhos, Ajuda alimentar, boa noite, alguém aí? Languidamente, olhando à direita e à esquerda, ajustando o olhar no escuro, o ouvido no silêncio, verificando e perscrutando o canto mais esconso, o buraco mais denso. Um elemento pula vagão acima, tenta uma panorâmica geral, chama, nada. Para lá dos vagões, um descampado, árido, ervas, areia, duas tendas gigantescas, arrebentadas, pendentes, aparentemente nenhuma alma humana dentro, nenhum corpo humano, nenhuma réplica, muitos gatos, gordos, escanzelados, peludos, carecas, velhos, doentes, esfomeados. O supervisor avista um vulto ao fundo da tenda, sombreado, opaco, algo a suspirar microscopicamente, diz-lhe que tem a comida junto a ele. Nenhuma resposta humana, nenhum avatar, nenhuma raça, nenhum credo, apenas miares e choros, sem idioma. Pula-se os vagões, um atalho, outro. A Brigada nocturna regressa a um bairro de Alvalade, luminoso, chamativo, calmo. Cumprem-se os rituais de fecho de missão. Nenhum eco pairante de consumição, nenhum sinal pairante de suplício, uma calma de morte.

II, Ponto de vista do carro. Simples movimentos descritivos.

Alameda Dom Afonso Henriques, uma hora da madrugada, passadeira do lado do Hotel AS Lisboa, calor frio. Uma jovem de trinta anos, calças brancas de hospital, camisa branca de hospital, chinelos descartáveis de hospital, touca branca transparente de hospital ao pescoço, fita de triagem de hospital no pulso, adesivo de soro descolado nas veias do pulso. Pára junto à passadeira, descalça os chinelos descartáveis de hospital, vira-se ao contrário, atravessa a passadeira ao para trás, lentamente, olhar em frente às arrecuas, sorridente, despida. Pára novamente, na placa central divisória, um carro pára também, apesar de estar o sinal verde. Estás bem?, precisas de ajuda, não devias fazer isso, sabias? A menina sorri ao condutor, Muito obrigado pela informação, se o diz, eu acredito, vou estar atenta, e responsável. A menina atravessa a outra faixa, passa pelo meio de um bando de jovens, indistintos, indiferentes. Como quem ensina o caminho ao diabo, diziam os antigos. O carro arranca, hesitante.

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«No entanto, segundo fazia notar o secretário-geral da Federação do Trabalho, os negócios resistiam a novas quebras de actividade.
Autoconfiança para os sem-cheta e apoio governamental para os que já tinham mais do que aquilo que podiam gastar, esse era o plano. No entanto, os bancos dos jardins estavam húmidos todas as manhãs, quer chovesse quer não; e era possível uma pessoa fartar-se, mesmo que fosse de bananas.»

A Walk on The Wild Side, de Nelson Algreen (tradução: António Borga e Salvato Telles de Menezes)

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