quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Bruno Andrade sobre PAZ

 


O SENTIDO DA AMIZADE

 

Paz, como seu antecessor, Guerra, e como o antecessor deste, Longe, é um filme simples, cujo título nos aponta o caminho, isto quer dizer o sentido que o filme adquire assim que tudo se fez e se foi.

O que se fez: por onde se andou, por onde se parou; o quanto se continuou, o quanto se renunciou para se continuar. Quando Paz começa, temos a sensação de que as personagens – José Lopes e Rui Carvalho – já andaram muito, já estiveram em muitos lugares, mas ainda não pertencem ao presente do filme, à trama de imagens e sons que o filme de fato nos apresentará. Na fronteira da alvorada a sombra de um homem se projeta sobre uma lapide; em seguida dois homens brindam e bebem sozinhos, num espaço que parece ocupar o limiar entre o nosso mundo e o seu além.

O que se foi: as lembranças, os lugares, as viagens; o que se compartilhou, o que nos aproximou, o que nos separou; os caminhos deixados para trás, os caminhos que foram feitos até o fim, os descaminhos. Uma tarde na esplanada dos Amigos do Minho, as mesas e as cadeiras já postas, as garrafas de vinho abertas, um amigo arranhando as cordas do violão e os outros o acompanhando com as canções – essas coisas de que não se fala, essas coisas as quais apenas se vive e às quais nos apegamos, e que talvez mais tarde nos lembramos com a vontade de revivê-las ou a certeza de que foram bem vividas.

É curioso: a atmosfera dessas cenas, a circulação das falas, das canções, a sombra convidativa das videiras e o sol que resplandece na esplanada dos Amigos do Minho, a camaradagem, os sentimentos, o tempo que leva para todas essas coisas se consolidarem e se propagarem como o próprio ar que circula ali no alto da Freguesia de Anjos, a presença real disso tudo encarna a proposta do filme e nos faz esquecer (em outras palavras, nos faz aceitar) que a paz, como a guerra, é aquilo que se estabelece quando se sabe que o que está longe assim permanecerá e o que está próximo se avizinha cada vez mais.

O que se avizinha, o que permanece próximo, o que se carrega no peito: a amizade, à qual os antigos combatentes, novamente reunidos, dedicam algumas loas. A amizade que, diferente do afeto, se consubstancia quanto mais o laço que une uma pessoa à outra é recrudescido, justamente, pela passagem do tempo. Uma coisa que sobrevive aos homens que tiveram a fortuna de experimentá-la e aos tempos, isto quer dizer todos os tempos, os de guerra e os de paz, os que se avizinham e os que se apagam. Uma coisa que retorna e que pode ser retomada a qualquer momento, em qualquer lugar, sob qualquer disposição (penso na segunda parte do filme, quando Zé Lopes “regressa” aos Amigos do Minho), e que na sua plenitude assume a forma não de um “eterno retorno”, mas de um retorno eterno aos lugares e sítios em que a vida se irradiou no seu grau máximo de brutalidade, ou de serenidade.  

Paz, epílogo de uma trilogia constituída em torno de uma personagem e um ator sublime, é o fruto da obstinada paciência de dois realizadores, José Oliveira e Marta Ramos. Suas lentes capturam os instantes despretensiosos da vida como grandes luxos coletivos, e é dessa forma que seus filmes reencontram o Homem, através da saudosa figura de José Lopes, na sua eterna busca por repouso e acolhimento. Nada mais coerente, portanto, que o capítulo final dessa jornada seja uma compilação minuciosa de todos os sentidos anexos da palavra “paz”: refletindo sobre o significado e a importância existencial do armistício, ou mais simplesmente do espairecimento daqueles que tiveram que lutar pelas próprias vidas em algum ponto de suas existências, o filme se torna a narrativa de uma existência que se volta, nos seus últimos instantes, à harmonia, à união, e conseqüentemente ao sentido mais profundo do contato com o outro, que nada mais é que o sentido mais verdadeiro da amizade.

Bruno Andrade


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