segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Encontros Cinematográficos do Fundão 2021: Encontro com Sério Fernandes


O filme "Porto, Porto" de Sério Fernandes estará em destaque na 11ª edição dos Encontros Cinematográficos, oportunidade não perdida para uma longa conversa com José Oliveira, cineasta e ex-aluno do Mestre da "Escola do Porto"



«Hoje, Sério Fernandes caminha, sem a mentira do estilo, sob o grande, alto, forte, duro e claro sol dos Lusíadas. Como Dioniso, corre o risco de ver negada a sua natureza divina.»

Miguel Oliveira


Qual a tua relação com o cinema nos dias de hoje?

A minha relação com o cinema hoje é eminentemente artística. Mas eu digo isto e volto a frisar: eminentemente artística! Eu, devido à minha trajectória, que é vastíssima, quer no cinema comercial, quer na publicidade… fiz muita publicidade, portanto, filmes institucionais. Depois os meus filmes artísticos, depois a escola, que me deu um “click” artístico absoluto. E por uma razão muito simples, pois eu quando fui para a escola em 91, quando fui convidado, uma das decisões que eu tomei – uma delas, e que foi nuclear para a minha vida académica – foi esta: todo o cinema comercial que eu tinha feito, o cinema industrial, [tinha de] ficar à porta da escola. Foi nuclear esta minha opção, não levar o cinema comercial para a escola. Por isso é que tudo aquilo que nasce da escola é, entre aspas, artístico. É fantástico. Portanto, os anos foram-se passando, eu fui filmando também, fazendo os meus filmes, com os meus alunos, como tu, etc. Colaborei imenso com os filmes dos meus ex-alunos, longas-metragens, etc. Fiz dezenas como assistente de realização, também. Como actor, no Nuno Malheiro, etc. E, portanto, há cerca de cinco anos, quando fiz setenta anos – a idade limite para dar aulas, setenta – reformei-me. Fiz setenta e cinco, portanto, estou há cinco anos reformado. A minha relação com o cinema é pois, hoje, colaborar, e vou-te dar já uma ideia, com o cinema artístico. Por exemplo, há cerca de um mês, o Nuno Malheiro, realizador e autor desta tese de doutoramento [“Sério Fernandes, Mestre da Escola do Porto e o Quadro Artístico Cinematográfico”, BeiFilme, Porto, 2019] que te estou a oferecer, e que está um trabalho fantástico, vais ver… O Nuno rodou um filme, com argumento dele, um filme de dança, sobre dança, com uma bailarina polaca. E rodou isso na minha quinta de Miraz. Posso-te dizer que o filme, e eu já vi, com música original dele, está verdadeiramente excepcional. É uma longa-metragem e está verdadeiramente excepcional. Foi rodada há cerca de um mês ou dois. Está pronta e ele já está a tratar da estreia, que será feita de uma maneira não convencional. Portanto, a minha relação com o cinema, hoje, é essa. Colaborar. Ou como assistente, ou como actor, principalmente de filmes dos meus ex-alunos. Como é o caso que te falei agora do filme de dança do Nuno Malheiro. 

Separas a arte (e o cinema) da vida?

Eu pintei durante muitos anos. Pintei durante muitos anos. E fiz outras coisas. Portanto, a arte é qualquer coisa de mágica. De mágica, é uma coisa mágica. O que é a arte? Ninguém sabe. O que é? Ninguém sabe. Agora, que nós estamos aqui, aqui vivos para sermos artistas, isso é que eu não tenho a menor dúvida. Claro que vamos fazer outras coisas, eu fiz outras coisas. Eu andei dois anos ou três da minha vida a fazer sete filmes institucionais para a Petrogal. Que na altura era a maior empresa deste país. Muito antes de ir para a escola.  Ganhámos um concurso nacional. Aliás, as pessoas diziam que eu era a pessoa que melhor conhecia a Petrogal. Pois conhecia, filmei-a toda de uma ponta à outra. Esta é a diferença. Repara, eu fiz por exemplo o “Porto Porto”, que tu viste. Repara, aquele filme foi rodado num dia, só com os meus ex-alunos, inclusive como actores. Os exteriores de manhã, e os interiores de tarde. Custo do filme, zero. Não gastei um tostão, tirando uma jantarada, ou isso. Eu quando penso nisto, até fico com os cabelos em pé. O meu cinema, o meu verdadeiro cinema, aquilo que eu considero o cinema artístico, começa a nascer quando eu começo a filmar com os meus ex-alunos. E porquê? Porque a filosofia é a mesma, nós estamos dentro da mesma filosofia. E, portanto, as coisas surgem naturalmente.  Sem esforço, sem dinheiro, custos mínimos. Mínimos dos mínimos. É um prazer, um prazer muito grande. Mas isto custou-me os olhos da cara, os olhos da cara. Custou-me uma trajectória, que eu depois consegui, por exemplo, no “Chico Fininho”. O “Chico Fininho” é um filme que eu faço para, exactamente, cortar com esse passado comercial. Uma machadada, e foi, só que foi muito forte. Foi fortíssima. Portanto, o cinema deve ser, e pode, pode ser do domínio da arte. Pode e deve ser. Eu li há muito pouco tempo uma entrevista a um escritor americano de cinema, que agora vai fazer um livro sobre o Coppola. Vou exemplificar, a pergunta que lhe fizeram era esta: «mas o Coppola do “Padrinho” e do “Apocalipse Now?”» E ele disse, «Não. Isso não tem nada a ver com o Coppola, esses filmes não são do Coppola. Os filmes do Coppola são os pequenos filmes.» Isto é autêntico, os pequenos filmes dele! Os outros ele foi obrigado a fazê-los, pela máquina. Pela máquina da indústria. O Kubrick, há muitos anos, o Kubrick do “2001”, escreveu um texto. Eu tenho esse texto dele, que é fantástico, está guardado. Em que o Kubrick, o da “Laranja Mecânica”, dizia assim: «o meu sonho era fazer pequenos filmes, pequenos filmes. Sem actores, só com paisagens, pequenos filmes, era o meu sonho e nunca consegui fazer isso.» Dizia o Kubrick, «nunca consegui fazer isso porque estava apanhado pela indústria.» Pela máquina do cinema, que é terrível. Eu estive desse lado. Mesmo no “Chico Fininho”, eu tive camiões de geradores, som directo 1 e 2, câmara 1 e 2. Tinha uma panóplia de técnicos, luz artificial, etc., etc. Gastei uma data de massa nessas coisas todas. Fiz o “Porto Porto” e outros filmes, com os meus ex-alunos. Fantástico, não gastei um tostão. Assim, uma coisa… [Sério faz um gesto largo com as mãos]. Como nas outras áreas, o cinema pode ser feito assim, e ele é feito. E eu conheço-o. Só que, claro, são filmes que ficam aí, guardados, que a gente desconhece, são autênticos tesouros. São autênticos tesouros, assim mesmo, percebes? Este filme que o Nuno Malheiro rodou sobre a dança é uma coisa… pá… [Sério faz um gesto com as mãos ainda mais largo que o anterior e alonga-se nos vocábulos]. Com dois bailarinos, uma bailarina e um bailarino, argumento e música original dele, é um filme que a gente fica de boca aberta, e rodou-o numa tarde! Rodou-o numa tarde! Assim, ele, o próprio realizador, foi o próprio operador de câmara. Foi ele que rodou o filme. É isso que o Kubrick dizia, é isso que esse escritor vai dizer do Coppola. “O Padrinho” é um grande filme, mas é um filme da máquina. Os filmes do Coppola são os pequenos filmes. Portanto, é possível. E se tu me tivesses feito esta entrevista há trinta ou quarenta anos atrás, é obvio que eu não tinha este discurso. Não tinha, não podia ter. Mas fiz a minha trajectória. Hoje sei, sei de facto, por experiência própria, o que é, entre aspas, o cinema artístico. Porque a arte não existe. A arte não existe, o que existe é cultura. Isto é que existe [Sério aponta para a rua], os carros, tudo isto. Isto é cultura. Um filme também é cultura. Arte só existe se existir o artista. Mais nada, é tão simples como isto. Para haver arte, tem o homem que ser artista. Tem que estar imbuído desse acto. É uma coisa cósmica… a cultura é isto que vemos, são os carros, as casas, estas coisas, é a terra. A cultura é a terra, a ceninha aqui. A arte é uma coisa cósmica que tem a ver com estes biliões ou triliões [Sério aponta para o céu], tem a ver com o infinito, percebes? A arte é o infinito. Portanto, não se pode, nem se deve, e aqui é que está, e uma vez fizeram esta pergunta ao Giacometti… não se pode perguntar a um artista «porque é que fez isto?», porque ele não sabe. Se ele soubesse o que estava a fazer já não estava a fazer arte, estava a fazer cultura. Perguntam ao artista, «como é que fez isto?», e ele, «Não sei, olha, não sei». Se ele começa a filosofar muito, «ah, porque fiz isto assim…», assim, e assim, como eles falam sobre os filmes, e mais isto, e mais aquilo… tenham paciência, mas está a falar de outras coisas. Então, só para terminar esta parte, nós estamos vivos, é para sermos artistas. Todo o homem, sem excepção, só pode ser, potencialmente, um artista. Só pode ser! Só que, claro, noventa e nove, vírgula nove, nove, nove, nove, por cento, deixa-se ir pela vidinha, não é? E depois, chegam ao fim da vida, como eu ouvi muitas vezes, muitas vezes, pessoas da minha idade, pessoas idosas, a dizerem: «ah, a vida é uma mentira.» E eu digo, «ai é, mas porquê?» E eles respondem: «se eu tivesse menos vinte anos tinha feito isto, tinha feito aquilo…», e eu volto: «Mas então, porque é que não fez?». E eles: «não fiz porque tinha os meus filhos, tinha não sei o quê, não podia… mas…». Então, as pessoas, no final da vida, têm essa sensação, de que viveram, assim, de uma forma não-substantiva. Que viveram, que trabalharam, etc., e queriam fazer outras coisas… Mas não puderam fazer. Eu paguei um preço muito alto, paguei um preço muito alto, mesmo pessoalmente. Com a família, por exemplo. Eu tinha cozinheira, uma ou duas criadas em casa, estas coisas todas, e de repente fui viver para um quarto. E foi uns anos, ainda. A minha trajectória foi assim, teve de ser. Eu era muito bom a fazer publicidade. Fiz grandes anúncios de televisão, eu ganhava muito dinheiro. Eu era mesmo bom realizador. A minha produtora, os filmes institucionais para as grandes companhias – não é só a Petrogal, é a Efacec, houve um momento em que era a maior do país – os grandes filmes institucionais, da cortiça, do leite, foram todos feitos por mim na BeiFilme como realizador. Este era o meu mundo. Eu vou assim [Sério vai levantando os braços], vou, vou, contra isto. E depois? Tive a sorte de ser convidado para a escola. Podia não ser convidado, mas tive essa sorte. E foi aí que a cena artística no cinema começa a atingir toda a grande expressão. Foi com os meus alunos. Na ESAP. Fizeram-se Quadros Artísticos Cinematográficos, que, posso-te garantir, é arte cinematográfica pura. Pura! [Sério vai falando cada vez mais alto]. Fizeram-se ali coisas que eu ficava de boca aberta. 

Continuas a acreditar que a arte não serve para nada?

Não serve! A arte, se servir para alguma coisa, passa a ser cultura. Mais nada, é tão simples como isto. A arte não serve para nada. E é por isso que as coisas fazem-se, passam-se, e muitas vezes só muitos anos depois é que se vai descobrir certas coisas, e fica tudo de boca aberta. Porque para as pessoas, hoje como ontem, isto é terrível, a existência. Para o comum dos mortais, é muito dura a existência. É dura, e não estou a falar da pandemia. Têm que ganhar a vida. A pressão da rua é muito forte. E as pessoas fogem da arte, entre aspas, como o diabo da cruz. Fogem, porque não entendem, não é qualquer coisa de causa e efeito, percebes? Qual é a utilidade? Para que é que isto serve? «Não sei», «Ah, pois…». É tão simples como isto! Mas por isso é que é, entre aspas, arte. Isto é feito pelo homem, pelo artista. O homem tem que estar em estado de arte. Ele tem que estar em estado de arte, para fazer, entre aspas, arte. Faça o que ele fizer. Portanto, sinónimos para arte? É tudo! Arte é verdade, arte é uma cena cósmica, é tudo isso. O que a arte não é, é uma ceninha assim [Sério faz um gesto pequenino com as mãos]. Uma ceninha de lana-caprina, uma coisinha… Arte não tem a ver com essas cenas, por muito jeito que isso nos dê. Os artistas, alguns deles até têm carro. E eu tenho carro. Eu vou agora buscar o carro e vou para Francelos. Mas aí é que está. Para mim, a cultura existe, mas é um meio. Não é um fim. É um meio! [Sério levanta novamente a voz]. Eu vou dar-te um exemplo: aqui há uns anos atrás, para um cineclube lá de baixo, do Algarve, passou um filme meu, e o responsável disse-me, «ah, mande-me um cartaz, por não sei quê». [Averiguando posteriormente, trata-se sem dúvida do wetransfer ou plataforma análoga]. Eu disse logo, «ah, não tenho, vai por correio». «Ah, isso demora…», e mais não sei o quê, disse ele. Não tenho, continuei a dizer. E diz-me ele assim para mim: «o senhor não tem, e então como é que o senhor anda? Como é que o senhor se mexe se não tem essas coisas?» Perguntou-me assim, como é que eu me desloco. E eu digo-lhe: «a pé». E ele diz-me: «ai… a pé…». Ficou muito admirado por eu lhe dizer que se não tivesse carro, se não tivesse essas coisas todas, não ficava aí sentado numa cadeira. Ia a pé, como antigamente. Portanto, a cultura é importante, sempre, como meio. Porque tu repara, a escola é eminentemente cultural. Tem edifício, tem professores, tem aquelas coisas todas… tem funcionários… Mas, para mim, a escola foi um meio para eu trabalhar artisticamente. É assim que temos de ver a cultura. Quer sejam os carros, um filme, quer seja tudo o que for. Sempre como um meio, e não como um fim. Infelizmente, a maioria das pessoas, hoje tem cinco, amanhã quer ter dez, depois quer ter vinte. Se tem um carro X quer ter um XPTO. Não sei se estás a perceber, mas a cultura é isso mesmo. E é perigosíssima. Um dos meus melhores alunos, lá para trás, mas um grande aluno, um dia disse-me assim: «ó professor, eu vou-lhe contar uma coisa que o professor nem vai acreditar.» «O que é que foi?», disse eu. «Perdi o meu telemóvel, e sabe o que é que aconteceu? Não conseguia sair de casa…», disse o aluno. «Como?», pergunto eu estupefacto, «Não conseguia sair de casa sem o meu telemóvel… foi a minha mãe que me emprestou o dela para eu poder sair de casa…». E eu digo «Por amor de Deus… então é assim?», e ele: «Era como se eu estivesse nu, sem o telemóvel.» E posso-te garantir que é um grande ex-aluno meu. Portanto, a cultura é uma coisa muito forte pela dependência que cria nas pessoas. Pela dependência! Depende-se da electricidade, depende-se disto, depende-se daquilo, dos carros, mais isto, mais aquilo. Isto é um autêntico colete de forças! E é muito difícil de cortar. Portanto, os artistas coitados… Para fazerem, entre aspas, arte, eu volto a dizer, entre aspas, porque a arte não existe, têm que cortar com tudo isso. Não podem, porque se a arte é uma coisa pura, puríssima, assim [Sério faz um gesto alquímico, finíssimo, com o polegar e o indicador], ela, é obvio, que não vai beber a estas coisas…vive no homem, no seu sangue. Já reparaste numa coisa, nós estamos os dois aqui a falar, estamos vivos, mas nós neste momento somos o repositório de todas as gerações lá para trás, de tudo, de milhões e milhões e milhões de anos. Nós os dois. Nós temos esta responsabilidade. O teu sangue, o meu sangue, percebes? Se a gente conseguir deixar assim uma ceninha, assim [Sério faz novamente um gesto pequeníssimo com o polegar e o indicador], fixe. É muito bom. Portanto, hoje o meu trabalho é este: estou a empacotar tudo, as minhas cenas todas, estou a rever coisas, coisas lá para trás. E tive sorte. Embora, volto a repetir, custou-me os olhos da cara, a minha trajectória. Em todos os aspectos, até financeiramente. 

Como vês o teu legado nos teus ex-alunos? Valeu a pena?

Não tenho palavras, até estou a tremer. Palavra de honra, que nem tenho palavras. Para os meus alunos, não tenho palavras. Foram anos e anos e anos, ó meu Deus. Extraordinários, fantásticos. De uma criatividade total e absoluta. [A emoção em Sério é visível e acontece uma pequena pausa]. Eu vou só contar um episódio, pois aqui atrasado fui ao Brasil dar uma conferência, e contei isto. Este aluno era brasileiro, o Francis. Fizemos uma tragédia grega no Douro, “Agamémnon”. Lá em cima, acima do Tua, um sítio fantástico. E o Agamémnon também era o João, um aluno, que era o actor. E o quadro do Francisco, fantástico. Ele estava em cima dum penedo, no meio do rio, um cenário fantástico, tinha um barrete, estava nu. E o Francisco tira-lhe a máscara da cara, ele tinha uma máscara dourada, e põe-lhe a máscara nos pés. E filma o actor dos joelhos para baixo. Faz um quadro em que tu vês o rio, o Douro, as montanhas, ao nascer do sol. Um cenário artístico, naturalmente. E tens um actor nu, mas só vês o actor do joelho para baixo, com a máscara ao pé. Não é preciso mais nada. Não é preciso mais nada, está lá tudo! [Sério vai subindo progressivamente o tom de voz, emocionado]. Não é preciso mostrar a cara do actor, não é preciso, não é preciso… não é necessário… Já está os pés dele e a máscara nos pés. Ele tira-lhe a máscara da cara e põe-lhe a máscara nos pés. Um quadro perfeito. Alguns quadros que foram feitos na escola, eu tenho-os todos presentes, tenho-os assim [Sério leva ao de leve as mãos próximas da cabeça, envolvendo-a]. Relembro-os. As coisas aconteciam, porque tinham mesmo que acontecer. Porque toda a envolvência era artística. Ali não entrava cinema comercial, etc. Todas as pessoas, porque são artistas, sem excepção, naturalmente começam a criar. Começam a criar naturalmente! Qualquer pessoa que lhe seja subtraída a cultura, por qualquer razão, ela naturalmente começa a recriar-se. Naturalmente… porque o ADN está cá [Sério bate no peito]. O ADN artístico está cá. E, portanto, a escola, aqueles vinte e tal anos que eu estive na escola, foi uma dádiva dos deuses. Uma dádiva dos deuses e uma dádiva também dos meus alunos. Tenho-lhes um respeito e um apreço total. Não tenho palavras para aqueles vinte e tal anos de escola. O Nuno Malheiro, nessa tese da Universidade de Coimbra, tece tudo o que importa. E se calhar vai sair agora outro livro, sobre outra realizadora da Escola do Porto, acho que ele está a trabalhar sobre isso, o Nuno tem uma obra fantástica. 

Queres falar mais um pouco do filme que escolheste, com o Rui Garrido, para projectar nestes Encontros Cinematográficos, o “Porto Porto”?

O “Porto Porto” é um filme sobre o Porto. E eu sou natural do Porto, nasci aqui, vivi aqui, os meus pais viviam ali à beira da Avenida dos Aliados. Ali no centro da cidade. Os meus escritórios são aqui, embora eu viva há muitos anos em Francelos. Mas é aqui, todos os dias estou aqui. Isto é interessante pelo seguinte: eu vou para a escola em 91. Começo a filmar com os meus alunos. E eu, os meus filmes, pararam. E só mais de dez anos depois, portanto em 2003, é que eu faço o “Porto Porto”. Só dez anos depois de eu ir para a escola, é que eu faço a minha primeira longa-metragem, e faço-a com os meus ex-alunos. Todos os filmes que eu faço a seguir ao “Porto Porto”, sem excepção, são todos feitos com os meus ex-alunos. Como actores e como músicos, como fotógrafos, etc. E repara, o filme, o “Porto Porto”, tecnicamente, é um filme perfeito. Com uma fotografia perfeita, feita por um ex-aluno meu. Com um som perfeito. Com uma banda-sonora feita de propósito pelos Aneurisma, que é uma banda de dois meus ex-alunos. Um deles, coitado, já morreu, suicidou-se. O Tiago Rodrigues, coitado, o grande Tiago. Mas o Zé Pedro está aí. O grande Zé Pedro está aí. Os Aneurisma fizeram-me uma banda-sonora de propósito para o “Porto Porto”! E eu rodo o filme, e a Mariana é a actriz, a Mariana Figueroa, formada em fotografia e teatro na ESAP, uma grande fotógrafa. Como já disse, rodo de manhã os exteriores, começamos às sete da manhã, e de tarde os interiores. Está feito. Longa-metragem. Eu digo-te uma coisa, toda esta trajectória que eu faço depois da escola, se ela tivesse sido feita trinta anos antes, qual “Chico Fininho”, qual carapuça… não havia nada disso. Não havia! [Sério começa de novo a subir o tom de voz]. A cena da cultura ainda tem muito peso, mesmo no “Chico Fininho”. Ainda tem muito peso, há muito excesso de cultura.  O quão prejudicava, é evidente, ter muita gente… porque é aquilo que o tal escritor dizia do Coppola: para nada! É só ruído, só ruído. Só dinheiro. Faço o “Porto Porto”, que é um filme extraordinário, eu adoro esse filme, com os meus ex-alunos e não gasto um tostão. Uma rodagem limpinha. Assim, de manhã exteriores, de tarde interiores, o filme está feito. Banda-sonora, tudo original. Argumento original. Tudo original. E pronto. Foi estreado num dia muito triste. Vou falar disso só para terminar. Houve uma antestreia na Casa das Artes. Tudo cheio. Estávamos lá com os alunos que estavam na escola, tudo. E o grande Vasquinho, o Vasco Castro, um dos meus grandes alunos, o meu grande companheiro. Chegava à minha casa, tocava à campainha, eu perguntava, «quem é?», «é o Vasco!, ó Sério» [Sério imita o Vasco], assim com uma voz de trovão, «É o Vasco!». Grande Vasco, não apareceu na antestreia. À noite, e a antestreia foi ao fim da tarde, seis horas, o pai da Mariana Figueroa, o doutor Carlos Figueroa, que morreu no ano passado, no final do filme veio ter comigo, deu-me um abraço, um abraço que me ficou até hoje [Sério faz o gesto de um abraço largo e comovente]. E o Vasco sem aparecer. À noite fizemos outra cena, o Ricardo Leite fez outra versão do “Porto Porto” em 8mm, uma coisa com dez minutos, paralelamente. Em super-8. À noite, em Massarelos, numa associação, apresentamos o filme de super-8, foi o Cristiano que organizou. E o Vasco não apareceu. Era uma meia-noite e soubemos que ele tinha tido um desastre. Ele vinha de Viseu para o Porto. Ficou em coma, ainda ficou uns vinte dias ligado às máquinas. Nós íamos lá todos os dias, vê-lo. E morreu, desligaram as máquinas. O grande Vasquinho, uma morte, assim uma coisa… A seguir ao “Porto Porto”, eu faço uma série de longas-metragens, eu tenho mais de dez longas-metragens. Mais de dez! Eu depois faço, em média, uma por ano. É fácil de fazer as contas. Essa foi em 2003… Sempre com os meus ex-alunos! Até hoje, até hoje… eu já não realizo há uns tempos, mas tenho sido actor, como disse… mesmo nesse filme, o Lusitânia que está nesse livro, do Nuno Malheiro… que está a fazer uma obra – tem uns seis filmes todos excepcionais – que quando esta gente, que está imbuída culturalmente, lhe descobrir aquelas pérolas, vão ficar assim [Sério faz um gesto de cabeça embriagado]. E rematou agora com esse último filme que não me canso de falar. Uma bailarina polaca verdadeiramente excepcional… Não há palavras, um filmão do caralho. Portanto, tenho colaborado com os meus ex-alunos, fazemos umas jantaradas lá na quinta de vez em quando, e tenho estado por aqui. Agora estou a juntar fotografias, a rever fotografias antigas. A empacotar. E pronto, eu tenho consciência perfeita de que estou a chegar ao fim. É evidente, estou a chegar ao fim. Fiz setenta e cinco anos, era uma meta. Não tenho meta nenhuma de chegar aos oitenta. Nenhuma. Não tenho. Não tenho vontade nenhuma. Agora, em casa ainda tenho muitos gatos, em Francelos. Tinha aqui o meu gatinho que morreu, o meu pretinho. Aqui, coitadinho, tinha aqui um gatinho que morreu… Mas em Francelos ainda tenho muitos gatos. Tinha lá muitos cães, mas agora só tenho um cão… Para onde eu vou agora. Vou agora para casa, tratar deles. E, portanto, a minha vida agora é feita assim. Colaborar. E ajudar naquilo que for possível. 

Por José Oliveira

Artigo originalmente publicado aqui: https://novo.jornaldofundao.pt/cinema/encontros-cinematograficos-do-fundao-encontro-com-serio-fernandes?fbclid=IwAR136VtNyosdsHB8OftKWhwORpTWLcBYeuUvySyHsZTPw06Ljsxerlq1JLQ

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