quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Os Melhores Momentos de 2023

 Num dos poemas do livro POESIA, de Daniel Faria, lê-se: Quando eu era uma criança de muletas / Estudei o alicerce de coisas paradas / Observei as coisas que se moviam / No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico / Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio / [coração.

Todas as obras que me tocaram em 2023 foram geradas numa longa paciência, depois de postas de lado, esquecidas, duvidadas, ressurgidas, esquecidas novamente. Todos os seus autores estudaram o assunto ao milímetro, ao milésimo de segundo, durantes décadas ou numa noite de décadas. Por isso é que o Ferrari de Michael Mann, que agora estreia, está justificado, é majestoso, é único, para lá dos chavões críticos caducos: Adam Driver não é Enzo Ferrari, é um Enzo Ferrari, não interessam os sotaques, interessa a comunicação universal do coração, o embate das máquinas só ecoa os embates dos seres-humanos. Tal como o motor e restantes peças de um desses bólides, tal como o corpo e a alma (ou o espírito, ou a mente) de um humano, há o sublime e há o seu contrário, há o universal, o corrupto, a cedência lamentável, combinados com o único e com o indivisível.

Erice morreu mil vezes antes desta sua (para já!) última obra total, morreu nela e com ela, e chegou a tempo de cegar e de abrir os olhos a quem ainda acredita, seja em luz ou em amor. Raul Domingues voltou durante anos a fio, por períodos definidos, à sua terapia pela terra, com a terra e com os seus, e a terra e os seus acabaram por lhe devolver, transcendido ainda, o seu labor em consonância com os ciclos, com o universo, com a natureza. Khalik Allah ou Eduardo Coutinho, que parecem mais apressados, só lá chegam, ao íntimo dos seus semelhantes, porque ainda conservam dentro de si leites maternos e curiosidades infinitas, a alimentação primeira e a atenção pela distância e pelo toque.

Bruce Lee, o maior dos tecnicistas, disse certa vez que o seu augúrio máximo era não ter técnica nenhuma. A grande arte que ainda importa, isto é, aquela em acordo e tensão com o presente e com todos os presentes enleados para trás e para a frente, é uma questão de precisão, de detalhe, e de crença; de saber das coisas todas do assunto e de respeitar o seu segredo.


FILMES:

 

Saint Omer, de Alice Diop

Tudo faz parte de tudo. Jamais o que é posto em movimento poderá ser apagado. Em último e primeiro caso nem se trata de redenção, mas sim de natureza. A natureza omnívora. Que nos escapa. Que não é aquilo que julgamos que é. Diop concentra tudo, natureza humana e cósmica, nos tribunais terrestres e nos enlevos espirituais, e cada um tirará a sua soma. Com Diop há perdão e razões para todos.

- Terra que marca, de Raul Domingues

F. W. Murnau e D. W. Griffith. O cúmulo de concreto, o cúmulo de fantástico. Meter em escala monumental homens ou folhas. Colher o amado e revelar a ameaça. Com 35 mm ou Mini-Dv, a questão é sempre a mesma. O fogo central que tudo anima ou pode animar. A plenitude ou a ambiguidade. Mas em fogo. O objetivo é fazer ver, diria Griffith. O objetivo é fazer sentir, diria Murnau. Em ambos, as chamas da lucidez e da paixão.

- Fechar os Olhos, de Víctor Erice

Jorge Luis Borges e Howard Hawks em acordo perfeito. O máximo labiríntico e o máximo frontal escavam um mesmo caminho penoso, escalavrado, demencial e sonhador rumo às concavidades da nossa escuridão e da nossa solidão lacustre, eterna.

- Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese

Griffith. King Vidor. John Ford. Sam Peckimpah. Michael Cimino. Quem acompanhou esta via, a via do nascimento dos Estados Unidos, da violência, da contradição e da ambiguidade ontológicas, sabe que todas as monstruosidades, excessos, overacting, subtilezas, etc., que Scorsese poe em marcha, são a matemática exata da experiência do caos americano. Abraham Lincoln a falar com Trump... visões infernais.

- O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki + Fairytale - Sombras do Velho Mundo, de Aleksandr Sokurov

A tradição do pesadelo e o pesadelo da tradição. Miyazaki revolve tudo e maravilha tudo. Sokurov destrói tudo e reinicia tudo. Novos e velhos mundos em luzes proféticas.

 

(RE) DESCOBERTAS:

 

Yakuza no hakaba: Kuchinashi no hana, de Kinji Fukasaku, 1976

O lirismo é sempre uma reportagem, uma radiografia, uma ciência, do calor e da tensão do presente do homem em relação ao meio impassível.

- Nippon-koku Furuyashiki-mura, de Shinsuke Ogawa, 1984

O cuidado com o nascimento do arroz e o cuidado com quem viu o horror absolutos merecem o mesmo tempo, todo o tempo, e a mesma dedicação, toda a dedicação. E cuidado. Uma e outra coisa são dependentes. Sublime conexão.

- Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, 2000

A potência da disponibilidade de almas, da aproximação de almas, do encontro de almas. As relações acontecem pela disponibilidade. O cinema acontece pela disponibilidade. A verborreia da alma e o silêncio da verborreia. A arte mais aparentemente simples é a que mais exige. Leve como uma pluma. Constantemente alerta. Até à exaustão.

 

LIVROS:

 

A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, 1919

A odisseia da pobreza e da corrupção humanas desembocam no pegar ao colo um novo bebé, sempre um novo bebé, uma nova luta, uma nova luz. O milagre constantemente prometido.

- Horácio. Poesia Completa, tradução de Frederico Lourenço, 2023

Sem comentários apropriados. Uma promessa.

- POESIA, Daniel Faria, 2012

As palavras, o silêncio, a poesia, no tempo anterior à nossa vinda; nascidas muito antes de chegarmos; antes de termos compreendido. 

 

DISCOS:

 

- ENTER THE WU-TANG (36 CHAMBERS) 30TH ANNIVERSARY (COLORED LP W/OBI)

E foi há trinta anos que uma nova humanidade autóctone cruzou e fundiu hemisférios e continentes e oceanos e céus e espiritualidades e categorias para acordar uma nova sonoridade arrancada aos silêncios de todos os desprezados de todos os tugúrios.

 

EVENTOS:

 

STREET OPERA exposição de Khalik Allah, Galeria Imago / LEFFEST 2023

Uma nova resolução estética para uma antiga humanidade. Tal como Eduardo Coutinho soube falar e abrir o coração, Kalick Allah sabe olhar e ver o mais difícil: aquilo que está à nossa frente, que aparece sem aviso, de rompante, pelo imprevisível de estar vivo.

foto minha da exposição de Khalik Allah


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