quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Entrevista a Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias sobre o filme "Viagem ao Sol"

Por José Oliveira


Viagem ao Sol, o mais recente documentário de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, acolhe os testemunhos de crianças austríacas enviadas no pós- segunda guerra mundial para Portugal. Tal como diz a sinopse: «O filme constitui uma reflexão sobre crianças em situação de conflito e pós-conflito e sobre a potência do olhar infantil em revelar um acesso a realidades ofuscadas pelas narrativas oficiais.» É um filme urgente carregado de múltiplos ecos com o presente. A 24 de fevereiro de 2022 rebentou a mais recente guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Logo em março chegaram os primeiros refugiados a Portugal e ao Fundão. Sendo contextos e sociedades diferentes, não há como escapar das ressonâncias.

A revolta de vermos crianças e inocentes ceifados pela guerra, as longas travessias, as alegrias e ambiguidades dos países de acolhimento, a persistência da memória. «As primeiras cores de que me lembro foram vistas em Portugal» assim recorda alguém que pelos anos da segunda grande guerra era uma criança e que agora já tem idade avançada. É um filme comovente e necessário que será exibido pelo Cineclube Gardunha já no próximo dia 30 de janeiro, pelas 21h30, na Moagem. Um dos realizadores, Ansgar Schaefer, estará presente para uma conversa com o público (moderada pela professora Manuela Penafria) que será, com certeza, marcante. 


O filme dialoga imenso com o nosso puro presente. Em Portugal, e muito aqui na cidade do Fundão, a questão de sermos vistos e de nos relacionarmos com crianças e adultos de outras proveniências e culturas que vieram de grandes sofrimentos e provações recentes, é de uma imensa importância. É um espelho, uma outra provação, uma reflexão que tem de ser proveitosa. Foi por causa disto que se lançaram nesta tarefa?

Susana: A ideia já tem muitos anos, mas a verdade é que a retomámos a partir de 2015 também pela sua atualidade na altura. Estávamos em plena crise de refugiados, as histórias eram dramáticas e resolvemos revisitar este caso em Portugal. As crianças austríacas, no entanto, não eram refugiadas, elas foram assim designadas pela propaganda do Estado Novo, que, na verdade, pouco fez pelos refugiados durante a 2.ª Guerra Mundial. Decidimos então olhar para este caso e tentar perceber o que nos podia revelar não só do país que era Portugal na altura, mas também do nosso presente.

Como souberam dessas crianças austríacas enviadas no pós-guerra para Portugal, dessa fabulosa micro-história que comenta e ilumina toda a grande história oficial e não-oficial?

Ansgar: Soubemos dessas crianças por causa de uma investigação que fiz há bastantes anos. A temática dessa investigação foram os refugiados judeus em Portugal durante a 2ª Guerra Mundial.  Há aqui um facto curioso. Estamos a dar uma entrevista ao Jornal do Fundão, e foi precisamente este jornal que na altura publicou uma série de artigos muito críticos sobre a forma como os refugiados judeus que chegaram à fronteira de Portugal foram tratados. Aliás, esta investigação foi posteriormente publicada em livro e o Jornal do Fundão é citado várias vezes. Por isso para nós é tão relevante mostrar o filme aqui. 

Portanto, quando eu estava a fazer esta investigação houve várias pessoas que me falaram das muitas crianças que, diziam elas, tinham vindo da Áustria durante a guerra. Como conhecia bem a documentação dos arquivos portugueses, sabia que esta informação não poderia ser verdadeira. Apenas anos mais tarde percebi que as crianças austríacas não vieram durante, mas sim depois da guerra. A ideia para o filme começou a germinar logo nesta altura.

 O vosso trabalho de pesquisa, de atenção e de detalhe é admirável. De facto, o trabalho sobre arquivos é infindável e a vossa paciência preciosa. Não há necessidade de produzir novas imagens se elas já existem com potência inaudita e à espera de serem significantes. Até onde foram nesse desempoeiramento arquivista?

Ansgar: Começámos a nossa investigação em três frentes. Pesquisámos as fontes escritas, como os principais jornais da época, o arquivo Salazar, o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, entre outros. Nessa altura, o arquivo da Cáritas era ainda praticamente inexistente e fechado à consulta. Mas mais importante do que a documentação foi, de facto, o conjunto de entrevistas com as antigas crianças, hoje adultos e adultas já de uma certa idade. Graças ao apoio da Embaixada Austríaca, e sobretudo ao Ingo Koenig, conseguimos entrar em contacto direto com algumas destas pessoas que nos convidaram para o encontro que fazem anualmente na região de Linz. 

Susana: Uma outra frente, absolutamente primordial, foi a pesquisa de imagens. Em arquivos fílmicos, como, por exemplo, o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento da Cinemateca, mas também em arquivos fotográficos, como o Século. E, claro, começámos logo a procurar outro tipo de imagens, para além dos arquivos oficiais. Aqui tivemos a sorte de as antigas crianças possuírem ainda uma enorme quantidade de fotografias e, por vezes, até de alguns filmes feitos pelas famílias de acolhimento. Para além disso, fizemos também uma pesquisa em arquivos estrangeiros para obter imagens da época dos acontecimentos, como o arquivo Filmarchiv Austria, mas também em arquivos ingleses, franceses e russos. O principal problema foi, no entanto, encontrar no material de arquivo aqueles indícios que nos permitissem mostrar uma outra história para além da história veiculada pela propaganda do Estado Novo...

Ansgar : ... a de que esta foi uma ação organizada por um país fantástico, governado por um ditador fantástico. Aliás, a profusão de imagens de família que encontrámos tem a ver com o facto de a ação ter sido apoiada por Salazar e de muitas das famílias que acolheram as crianças estarem ligadas ao antigo regime. Eram famílias abastadas, algumas da antiga aristocracia e, claro, tinham os meios à disposição para registarem a estada em Portugal das meninas e meninos austríacos que acolhiam. 

E o som, essa narração outra, que é um outro mundo, como lá chegaram?

Ansgar: A criação sonora foi feita pelo Dídio Pestana, que também foi quem gravou a maior parte das entrevistas. Foi um trabalho de estreita colaboração e muito frutuoso. Tínhamos umas ideias, o Dídio foi-nos fazendo várias propostas e, através de um processo de articulação de imagem, som e palavras, chegámos ao resultado final.

E esses choques e harmonias, essas luzes e trevas que não surgem só pelas imagens e pelos sons em si, mas também pelo trabalho aturado da montagem. Quais os vossos princípios?

Susana: A montagem é o momento onde o filme nasce. É através dela que o filme obtém a sua forma final. Posso referir aqui três princípios que são importantes para nós. Um, é manter a autonomia da imagem, ou seja, nunca mostrar uma imagem como mera ilustração de alguma coisa, ou como mero suporte das palavras. Imagem e palavra têm a mesma importância, têm o mesmo estatuto. Muitas vezes, em filmes que abordam aspetos históricos do passado, menoriza-se a imagem. O nosso processo é precisamente o oposto. A imagem revela, a imagem contém informações preciosas dentro dela mesma que não necessitam de palavras para aparecer. Um outro princípio é dar atenção ao que é dito e como é dito e não apenas à vertente informativa que é veiculada pelas palavras. Desta forma, mais do que receber apenas informações, estamos a partilhar uma experiência. Uma experiência pela qual estas crianças passaram, uma experiência que os adultos hoje estão a viver, ao contar-nos estes episódios. E por fim, para nós é muito importante dar espaço ao espectador para pensar no que está a ver e a ouvir. Daí o trabalho preciso que fazemos sobre o tempo das imagens, sobre a forma como montamos os próprios testemunhos. 

in: https://www.jornaldofundao.pt/cinema/entrevista-a-ansgar-schaefer-e-susana-de-sousa-dias-sobre-o-filme-viagem-ao-sol



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