segunda-feira, 7 de abril de 2008

o método Jarmusch


As personagens de Ghost Dog são-nos imediatamente familiares no conjunto do seu cinema. Stranger Than Paradise, Dead Man não estão muito longe, porque existem fantasmas, um ritmo, uma música. Mas há também qualquer coisa que mudou: o carácter directo e explícito das suas referências à cultura japonesa, à mitologia samurai, que penetram o seu universo de uma forma doce, quase pacífica, como um véu.

Eu não pude ver chegar Ghost Dog, é um projecto recente. O filme não tem nada de um fantasma antigo finalmente realizado. Ele existe nem mais nem menos improvisado que os outros. Quando penso num filme, recolho as minhas ideias aqui e ali, nas minhas viagens, nas minhas leituras, colecciono-as, e depois de um certo tempo – um ano neste caso – articulo tudo. A história nasce assim; não conheço muito as origens, os bocados juntam-se ou não. Nesse sentido, nada mudou verdadeiramente na minha maneira de trabalhar. Sempre gostei do cinema japonês, mas nenhuma imagem precisa me veio à cabeça quando escrevia Ghost Dog. A primeira versão do argumento não continha qualquer referência a Hagakure, O Livro do Samurai, desconhecia mesmo a existência do texto que, hoje, estrutura a narrativa: os encartes, respirações entre cenas que aparecem sob a forma de citações editando os princípios do samurai. Um homem ofereceu-me o livro. Primeiramente, li o Código do Samurai, uma obra escrita igualmente por um ancião deles. Mas essa foi uma decisão individual que não teve nada a ver com a escrita do argumento. Quando li a obra de Agakore, tomei notas, sublinhei os aforismos que integrei numa narrativa já existente. A história de um assassino contratado que é possível amar.

De que maneira evoluiu a história?

Viajei, tomei notas. Mas, de maneira mais pragmática, o verdadeiro ponto de partida foi pensar no Forest Whitaker para o papel. Ele tem um ar pungente, mas ao mesmo tempo muito humano. Achei interessante construir-lhe um papel quase mudo, em contraponto com as personagens calorosas, evasivas, simpáticas que ele fez anteriormente. Encontrei o Forest em Los Angeles. Depois comecei a escrever a pensar nele. Discutimos o filme em todos as etapas do argumento. Para mim os actores sempre constituíram um ponto de partida, nunca preencheram vazios.

Pode evocar Rashomon? A novela de onde foi tirado o filme de Kurosawa circula entre vários personagens de Ghost Dog. De onde vem esta escolha?

A novela, como o meu filme, construída à volta da existência paralela de dois mundos que não se encontram senão na sequência de um drama, de um instante fatal que determina todas as histórias que vêm a seguir. Ghost Dog evolui entre os dinossauros mafiosos, porque um entre eles lhe salvou a vida quando ele era jovem e foi espancado. Ele paga a sua dívida. Evoquei essa cena através de dois flashes-back. No primeiro, quando Louie, o acossado, conta em voz-off aos seus patrões, a pistola encontra-se apontada na sua direcção. Quando Ghost Dog conta a história, a pistola está apontada para ele. A sua memória do incidente não é a mesma, e a partir daí, o filme abre-se sobre pistas diferentes, dois discursos, duas maneiras de evoluir no espaço. É portanto uma versão minimalista de Rashomon...a narração começa com um mal entendido, uma coincidência e dois mundos disputam a verdade. As consequências são determinantes tanto para um como para o outro. Sem isso, o herói de Ghost Dog provavelmente nunca se teria tornado Samurai. Por outro àquele escritor apaixonante que se suicidou jovem e que levou uma vida estranha nos anos 20 no Japão. Ele escreveu uma série de livros de caracteres abstractos, geralmente menos conhecidos que os frescos históricos que o tornaram célebre. Obras de observação muito modernas, com contornos suaves; um género de novelas alucinadas importantes para mim.

Qual é a função das citações que pontuam a narrativa como um sub-texto e determinam o ritmo do filme? Como é que as colocou?

Todas são provenientes do Livro do Samurai, escrito, creio eu, no século XVIII, como uma obra que permitisse a transmissão de códigos, rituais, comportamentos que fundam a sabedoria, os modos de pensar e os movimentos de um Samurai. Trata-se da obra mais precisa, a mais importante, cultural e artisticamente, sobre o assunto. A tradução inglesa é apenas um resumo, e tive que trabalhar com ela, retirando parcelas, recolocá-las, como num puzzle. Nunca parei de as mudar de sítio, mesmo durante a montagem, porque elas correspondem antes de mais a pistas, linhas de pensamento que reenviam para imagens estabelecendo uma relação musical e poética com elas. O sentido não se adiciona aqui senão de maneira indirecta, quase irreal.

Ghost Dog age com referência a um código que nós nunca o vimos aprender, ele possui a mestria mas as suas origens permanecem obscuras. Do seu passado conhecemos apenas uma cena.

Pensei no D. Quixote que, no seu género, é um louco, um deslocado que se obstina a levar uma existência sem remorsos que ele sonhou noutro lugar, num outro tempo, noutro país, numa cultura diferente. Como ele, Ghost Dog avança num mundo que não tem cuidado, que não respeita nenhuma das suas crenças. Ele passa de uma forma quase invisível, discreta; a contento dos preceitos de um livro que condiciona toda a sua vida. Ele é obsoleto, num certo sentido, resolutamente cavalheiresco apesar de ninguém se preocupar com a sua obsessão. De forma mais geral, o filme estende-se a diferentes níveis. Existem estratos, um quadro de referências. Os cartoons que vemos na televisão, em certos momentos, na casa onde habita a rapariga, reflectem sobre aquilo que se passa noutro lugar. Reenviam para outras cenas, para outros instantes da narrativa. Na utilização comum que é feita no cinema americano, eles explicam, pela farsa, uma acção que já aconteceu; eles fornecem as chaves, matam o mistério. Aqui, quis que eles a precedessem, quase vagamente, como uma repetição, uma pista, uma preposição paralela àquilo que vai acontecer a seguir. Ghost Dog é feito de clarões, de momentos independentes, voláteis, através dos quais o espectador deve fazer a ligação. Quis criar uma matéria flexível, maleável, qualquer coisa que não fosse apenas um simples jogo de pistas, ou melhor, um jogo de pistas sem destino, que correspondente a uma lógica de sensações, de inversão da acção, de deslizes entre os géneros, as imagens, as narrativas, os corpos. Por vezes as citações do livro anunciam a cena que se segue, mas a maior parte das vezes isso não acontece e a visão do filme torna-se oblíqua...gosto que as obras permaneçam, que elas me acompanhem para lá do momento em que as vi, que elas cresçam a partir de quase nada. Na filosofia zen, no budismo, existe aquela ideia que a forma e a substância não são coisas separadas, mas que pertencem ao mesmo movimento. Não sou budista, mas li sobre religiões e acho esta ideia muito bonita. É uma contradição que se aprende muito cedo e que faz parte dos preceitos que todos os principiantes devem tentar compreender: tudo muda, cada julgamento precipitado pode ser posto em causa. Isto constitui uma interpretação filosófica dos princípios Yin e Yang, Encontrei-me com monges, pessoas que nunca param de rir. São capazes de nos atirar à cara os seus ritos de alegria. Mas agora estou aqui a contar coisas que não interessam nada...(risos)

Mais do que uma abordagem mística à personagem, privilegiou os seus modos de comportamento como meio de reconhecer a sua filosofia de vida. O homem não prega a palavra, mas utiliza o código do samurai de forma muito quotidiana.

Ghost Dog não tem outro guia que não seja o livro, ele considera-se como um guerreiro, um guerreiro solitário, portanto, ele escolhe a sua própria galáxia de signos que confronta com a dos outros: o azul do gang no parque, cor do Crips, os ritos da família mafiosa, todo o tipo de estruturas comunitárias nas quais ele não participa. Isto não impede o filme de tender para uma forma de harmonia entre um corpo e o seu ambiente, que encontra a raiz na ideia de disponibilidade, no mundo e nas linhas traçadas por outros. Os mafiosos vêem-se confrontados com uma situação semelhante no seu seio: eles deambulam entre hábitos um pouco passados, plantados na esquina de uma rua, falam uma língua antiga. Na América, o mundo da finança, assim como o cinema, na sua maneira de construir personagens, copiaram-lhe os métodos, o estilo, as suas posturas que disfarçam um segredo. Eles tornaram-nas comuns, banais, revelaram vulgarmente â luz do dia uma abordagem outrora secreta. Ghost Dog, no entanto, acaba por aceitar esse desvio do sentido, a sua inadaptação fundamental à sociedade. Isto procede, evidentemente, de um processo melancólico, como se ele devesse preparar a morte, conservar a todo o custo a sua moral num universo pouco amistoso, onde tudo o reenvia ao seu próprio fim, onde as imagens traem os segredos, onde as ficções se desenvolvem apenas num espaço minoritário. A questão não é portanto mística ou espiritual, mas moral e estética, no sentido em que Ghost Dog e, espero eu, o filme com ele, transforma as ideias, as sensações, os mitos do universo que ele propõe apoderando-se dos seus. É um homem rigoroso e astuto.

Em termos de cinema, a astúcia da personagem permite-lhe compreender o ritmo das outras personagens, fundir-se com o seu movimento: de onde o carácter alucinado, para o espectador e para algumas personagens, em algumas cenas, quando Ghost Dog assume subitamente outra forma: um urso, um índio, um mafioso...como se, por instantes, ele falasse por eles, no seu lugar, e se tornasse, idealmente, em todas as personagens do filme tecendo uma imensa tela.

Ghost Dog tem o dom da invisibilidade, da capacidade de não se fixar a um território, de deslocações desconhecidas. Ele pode habitar uma cena – um tiroteio -, um género – o filme de gangsters -, e não os perverter, mas anular as ligações, pondo a nu as formas e os sistemas. Isto de uma maneira eficaz, subtil, num mundo entorpecido, onde a maior parte das personagens lamenta o esplendor passado ou sonhado, já um pouco enterrado. Ele enterra-se para se esconder e sai como um animal...é porque o filme não produz quaisquer efeitos de causalidade, mas sim correspondência de ritmos, de cores, de trajectórias. Ele estuda o efeito de um corpo estranho sobre uma estrutura que, ao fim de algum tempo, já não o pode acolher.

Ghost Dog possui o dom da ubiquidade, ele pode rapidamente fazer-se transportar para um lugar desconhecido de todo, mesmo da sua memória, e aparecer exactamente onde fazia falta.

Ele navega, caminha sobre uma almofada de ar. O seu tempo de reacção é superior ao de todos os outros. Ele chega de lado nenhum, à acção e à narrativa. Tinha imaginado, para ele, algumas cenas descrevendo o seu passado, nomeadamente a sua infância, mas depois suprimi-as. Não queria saber nada dele. Tinha que o deixar lá, como uma aparição, um desenho. Tudo o que vemos são dois flashes-back, assim como a foto de uma jovem mulher. Ele visita também um cemitério, onde presta homenagem aos desaparecidos através de pequenos gestos enigmáticos. O resto é delicado. Por vezes, ele sonha, há uma imagem que nós não compreendemos.

Então, a precisão dos seus gestos faz supor que ele seguiu uma espécie de treino. Mas ao mesmo tempo, não podemos aproximar Ghost Dog de outras figuras do cinema clássico. Pensamos sobretudo em Feuillade, nos Vampiros, em Fantomas...

Gosto muito das séries do Feuillade, os seus anjos, as suas aparições...É uma forma de pensar antecipadamente, de prever, antecipar o gesto – do outro, de si mesmo – que se vai seguir. A personagem de Forest, enquanto ele representa os fracassos, estrutura a partida desde o primeiro plano. Isto permite transformar cenas de aparência clássica – Ghost Dog corta o cabo da televisão que um tipo está a ver, mata-o aproveitando a sua surpresa – em pequenas máquinas sonhadas, em estratégias invencíveis e jamais vistas.

A relação que Ghost Dog mantém com o vendedor de gelados, interpretado por Isaach de Bankolé, sublinha o mesmo problema. O primeiro fala inglês, o outro responde-lhe em francês. E apesar de tudo eles são os melhores amigos do mundo. As suas discussões parecem um jogo de adivinhas...

...um responde ao outro sem ter percebido o que ele disse, mas o que ele responde ajusta-se. É muito simples. Se a palavra é o primeiro meio de comunicação, não é o mais necessário, nomeadamente no que diz respeito ao cinema. Isto vem da minha experiência. Trabalhei com actores japoneses, franceses, italianos, finlandeses, sem, na maior parte dos casos, compreender uma palavra do que diziam. Por isso, procurei outras formas de contacto. Enquanto preparava Mistery Train em 1989, fui frequentemente ao Japão e aproveitei para procurar cassetes de filmes de Ozu que não encontrava na América. Claro que os filmes não estavam legendados e por isso vi-os com grande emoção. Além disso, o cinema tornou-se numa eterna língua estrangeira.

A relação de Ghost Dog com os outros e com o real, parte do mesmo princípio. A antecipação permanente é verdadeira até à mais ínfima das suas atitudes, nomeadamente nas sequências dentro do carro, onde a sua disponibilidade é total, onde ele parece capaz de receber tudo do exterior sem que nós saibamos se isso constitui as suas visões ou se ele não se limita a submeter-se a um movimento superior a ele. Do mesmo modo, a sua relação com o género – o filme de gangsters – é a sua abordagem em relação às personagens dos mafiosos, sobre-utilizadas no cinema americano, advêm de um princípio semelhante: parece querer dizer que, enquanto cineasta, não fala a mesma língua, que esse nunca foi o caso e que por isso os consegue filmar com empatia.

O que diz agrada-me: quis evitar, jogando com a caricatura, construir personagens ridículas de mafiosos, de onde o encanto provém de um segundo degrau no qual os artistas da moda se gostam de divertir com maior ou menor brio. A tentação de inverter os mitos interessa-me, mas o meu cinema não é mortuário, ele não reage em oposição a um género já estabelecido. Procura ligações, histórias que ainda possível contar com este tipo de material, quase obsoleto. Claro que os meus gangsters são divertidos, mas tenho receio de seduzir, numa primeira projecção pública, uma parte do público «cinéfilo» que me interessa pouco. A minha descrição do meio parece-me quase realista, até porque alguns actores do filme são antigos membros de «famílias». O facto de eles hoje representarem a sua própria personagem é suficiente para mostrar a sua confusão. Eles foram recuperados e situam-se hoje entre a sua lenda e a sua vida miserável. Estive ali sempre a vê-los. Em Nova Iorque vivi durante muito tempo num bairro onde se encontravam os «social clubs» das famílias mafiosas, vi estes homens de mão, bandidos de segunda, passarem o tempo a lutar contra um inimigo invisível nos passeios que agora já não lhes pertencem. Um amigo meu contou-me que viu uns miúdos mandarem da janela um brinquedo a imitar a figura desses tipos vestidos com trajes resplandecentes. Os desgraçados gritam, lançam insultos aos miúdos, como os fantoches que montam a sua guarda custe o que custe num território reduzido a nada. Isto aconteceu mesmo, e pu-lo no meu filme.

Não filma a morte de um género, não o copia...prefere confrontar-se com uma forma amiga?

Sem querer parecer pretensioso, poderia evocar o trabalho de músicos be-bop como Charlie Parker, que tocavam standards, com ares populares, transformando-os. Parker fez de Laura, uma canção ligeira, melosa, uma obra-prima atormentada. Eu procurei integrar elementos diversos, que se revestiam de alguma importância aos meus olhos – filmes de género, livros, músicas – e trabalhar sobre eles como se fosse uma matéria nova. Ghost Dog está, de facto, cheio de referências, algumas directas – Melville, Suzuki – e outras menos visíveis. Alimentei-me das experiências feitas pelos Wu Tang Clan, um dos mais interessantes grupos de rap da Costa Leste. Partilho do seu interesse pela cultura e imagética oriental, os filmes de kung-fu, a história do templo de Shaolin e a maneira como eles colocam isso em relação com os mitos populares americanos. Neste quadro, a referência cria um contexto, ela abre sobre um imenso laboratório do qual se alimenta o meu cinema. Isto não é colagem, mas sobretudo um género de re-criação.

A ironia, atitude em voga no cinema americano, dos irmãos Coen a Tarantino, não lhe interessa, portanto.

Aquilo que me chateia no Tarantino, de cujo cinema eu gosto, por outro lado, é a falta de respeito que ele sempre teve para com os filmes ou os homens nos quais ele se inspira. Ele confessou muito tarde a sua admiração pelo cineasta de Hong-Kong Ringo Lam, apesar de Reservoir Dogs ser praticamente uma cópia. Sergio Leone fez o mesmo com Kurosawa, da mesma maneira. O rap, por seu lado, não existe senão pelo sampling e fez disso uma forma de arte. Em Ghost Dog não copiei nada, mas peguei em bocados de filmes e livros que me apaixonaram. Não há nada de novo aqui. Não podemos falar de uma forma inédita, pós-moderna, que o cinema ou a música tenham inventado. Na Europa chamam homenagem àquilo que na América se chama plágio. Para mim a expressão «ideia original» não deveria existir. Além disso, eu desconfio sempre de grandes conceitos solitários, que reforçam a ideia de unicidade da criação. Muito poucas são interessantes.

Gostávamos de falar consigo sobre a música de Ghost Dog. Você sempre foi considerado, e justamente, um dos cineastas mais eruditos neste domínio. O rock sempre ocupou um lugar fundamental em vários dos seus filmes, umas vezes através dos actores – Tom Waits em Down by Law, Iggy Pop em Dead Man –, dos lugares – Memphis em Mistery Train. Você realizou um documentário sobre Neil Young intitulado The Year of the Horse, tendo este último escrito a música de Dead Man, sozinho com a guitarra face às imagens do filme. Aqui, nós descobrimos o interesse que você tem pelo rap. RZA, líder do Wu Tang Clan, escreveu a música «espacial» de Ghost Dog.

Foi um encontro estranho. Ouço os Wu Tang Clan desde que eles existem. Quando trabalhei o Ghost Dog, entrei num período Hip-Hop intensivo. Tinha em mente pedir ao RZA para me compor a Banda Sonora. Não o conhecia e não sabia como chegar até ele. Falei disso com uns amigos que frequentam o meio underground nova iorquino, de que ele faz parte e, depois de algum tempo, conheci-o. Já tinha terminado o filme, mostrei-lho e ele disse: «Gosto bastante, posso fazê-la». E foi-se embora. Durante semanas fiquei sem saber nada, na impossibilidade de lhe falar por ele viver recluso, um homem fantasma, quase como um criminoso. Ele acabou por me telefonar e disse: «Tenho a música». O encontro ficou marcado para as três horas da manhã numa carrinha de vidros fumados, no centro de Manhattan. Ouvi aquela música planante, inacreditável. A cada passo, ele dizia-me:«Faz disto o que tu quiseres, corta se tiver que ser, coloca o som onde achares melhor, dou-te mais dentro de alguns dias». O jogo das “escondidas” continuou durante meses, e ele não tinha visto o filme senão uma vez, mas a música estava perfeita. Tive, mais uma vez, que me colocar na posição de alguém que recebe o trabalho de outro e reflectir sobre ele. O ritmo do filme mudou profundamente. Foi apaixonante.

Então aquelas três cenas em que o Forest Whitaker ouve música foram gravadas em silêncio...

Exactamente.

Como é que dirigiu o actor?

Nós evocámos um destino possível para as suas errâncias. Era uma questão do seu estado de consciência, e das sensações físicas, corporais, no momento da acção. A primeira vez, tudo ainda está bem, e na segunda, as coisas já estão mais complicadas: Ghost Dog tem que escapar aos mafiosos que o perseguem. Na terceira é ele próprio quem anda à caça. As cenas têm portanto valor de pausa, estão suspensas. Elas determinam um momento de glória num universo que se degrada pouco a pouco, substituindo a personagem, retomando de alguma maneira os bons gestos, as boas atitudes que lhe servirão a seguir.

Nesses momentos, a atitude de Ghost Dog é quase a de um fluido, como se ele fosse um circuito mais entre a paisagem, a música, o barulho da viatura e aqueles que passam. São os momentos mais harmoniosos do filme. A sua percepção não é apenas visual, ela põe em evidência o conjunto do seu corpo.

Ele viveu como um monge. Escolhi esse modo de vida ascético pelo o que ele tem de interessante em matéria de cinema quando ele não é, à partida, considerado em função das suas consequências morais, mas físicas. O espírito vem antes. Joga-se aqui uma espécie de despertar da beleza que se revela muito cinegénico naquilo que tem de próximo com um fantasma de percepção absoluta, inalterável...A partir daí tive a possibilidade de construir uma personagem atípica, quase-animal – as cenas com os pássaros, com o urso – e depois muito humana. Ghost Dog fabrica uma comunidade de sensações, de cheiros, de amizades particulares. A câmara pode seguir, em certos momentos, as suas reflexões antes das suas acções ou confundir as duas num movimento longo, estendido no tempo. Isto tudo vem do Kung-Fu, ao qual uma cena cómica de Ghost Dog faz referência. O velho que derrota o seu adversário elegante com um pontapé é um mestre de Shaolin que vive em Nova Iorque. Ele conta com os membros dos Wu Tang Clan entre os seus alunos. Toda a estratégia do Kung-Fu se baseia na resposta ao gesto do outro e na antecipação. A agressividade é reactiva, os movimentos são à partida esquivos.

Em Hong-Kong, na época gloriosa dos filmes de kung-fu, eles eram considerados métodos de aprendizagem de um modo de vida. O kung-fu passava forçosamente pelo cinema que explicava as regras, mostrando a história, a genealogia, a forma.

Mesmo que não tenha ido tão longe, essa maneira de celebrar uma forma de pensar através de outra, para desembocar numa arte, parece-me próxima das minhas preocupações.

Há em Ghost Dog uma crença na transmissão que parece nova em si, em qualquer caso mais literal que anteriormente, quase inocente: o livro que o herói dá à menina, as discussões, o seu papel de pedagogo.

A ideia de transmissão de conhecimentos, de uma certa sapiência atravessa o filme. Mas ela é extensível, a partir das relações das personagens entre elas, até à experiência do espectador, colocado perante a obra que ele vê e julga como se participasse de um circuito. Ele pode juntar as suas ideias àquelas que acaba de receber. Comunicar com as imagens, retirar algumas, engrandecer outras. Não existe a ideia do dom: o cineasta – ou a personagem de Ghost Dog – não oferece um saber, mas proposições, visões que se ligam a outras, qualquer coisa de pessoal. Os meus filmes não são outra coisa senão proposições. Contêm em si a possibilidade da mudança. É uma ideia simples e ingénua, mas ao menos, dessa maneira, as coisas circulam, o que já é raro. Recentemente estava a passear por Nova Iorque com o meu sobrinho, que não é bem meu sobrinho, mas alguém da família. Ele tem pouco mais de 20 anos e fala e veste-se como um rapper. Era tarde. Num passeio ele viu um livro que saía do bolso de um jovem vestido de gangsta. Perguntou-lhe que livro era, o outro mostrou-lho: era um livro de Hemingway. Ele tinha-o lido e os dois ficaram ali a discutir o livro, uma luta verbal impressionante. Fiquei a olhar aquilo um pouco à parte, porque aquele não era o sítio nem a hora para aquele tipo de conversa. Ficaram amigos e eu precisei de tempo para me recompor. É anedótico, talvez. Mais eu achei aquela cena muito bonita.

Cahiers du Cinéma, n.º 539, Entrevista de Erwan Higuinen e Olivier Joyard

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