quarta-feira, 20 de agosto de 2008
U Samogo Sinevo Morya, Boris Barnet
À Beira do Mar Azul
Em 1956, Fernando Gil «apresentou-me» Jean Victor Hocquard. Devo-lhe – através de um pequeno livro da colecção «Solfèges» publicada pela Seuil – a descoberta central da minha vida: Wolfgang Amadeus Mozart, no ano do bicentenário do nascimento.
Devo também a Hocquard a expressão «ouvres de pure intimité» que usou, para destacar no corpus mozartiano, «peças relativamente pouco conhecidas que os ouvintes se arriscam a escutar com indiferença, sem a atenção recolhida que é fundamental para permitir a sensibilidade ao despojamento final da arte mozartiana.» Desde então, eu e alguns raros outros nunca mais deixámos de chamar de «pure intimité» obras e pessoas que só a essa atenção e só a esse recolhimento plenamente se revelam.
Mozart é, certamente, como Schubert também o é, um compositor de «pure intimité». Muitos escritores, poetas, pintores o são também. Evidentemente, muitos filmes e alguns cineastas. Nicholas Ray vem à cabeça. Tarde, demasiado tarde na vida, descobri essa pure intimité na obra do russo Boris Barnet. E, nela, o mais transparente e o mais secreto dos filmes, U Samogo Sinevo Morya (1936) que a partir daqui designarei pela tradução literal À Beira do Mar Azul.
Barnet, que se suicidou em 1965, aos 63 anos, não foi muito apreciado em vida. Nem na Rússia – nesse tempo, U.R.S.S – poucos deram atenção a um homem que cultivou, sobretudo, o mais «burguês» dos géneros: o melodrama. Fora da Rússia, os companheiros de caminho ou os «idiotas úteis» limitaram-se a repetir as «verdades» oficiosas. Sadoul, por exemplo, que, no ocidente, foi quem mais viu cinema soviético, quase lhe reduziu a obra a Okraina (1933), o seu título mais célebre, achando tudo o resto interessante mas menor.
Que eu saiba, apenas um homem (e não lhe conhecia a obra toda) lutou por Barnet, no ocidente, ainda em vida dele. Foi, com as suas mil antenas, Henri Langlois, que, a partir dos anos 50, organizou na Cinemateca Francesa algumas retrospectivas dele e o achava o grande poeta do cinema russo. Por esses anos – 1953 – um jovem de 26 anos escreveu nos Cahiers du Cinéma o primeiro texto da vida dele, aproximando Chtchedroie Leto (Um Verão Prodigioso), filme de 1951, de Renoir e de Becker, outros cineastas de «pure intimité». Chamava-se (chama-se Jacques Rivette e foi a primeira vez que teve o nome impresso. Contudo, quando Barnet se matou, mesmo os Cahiers se confessavam «hesitantes» quanto a uma apreciação global, alegando falta de informação. Que conheciam eles, de facto, das 21 longas-metragens ou das muitas curtas-metragens que Barnet assinara entre 1926 e 1963, ao longo de quase quarenta anos?
Menos desculpas teve e tem a Cinemateca Portuguesa para, em 1987, em nota assinada por um ex-militante do PCP, o caracterizar como um «René Clair soviético», comparação absurda, comparação obscena. E menos desculpa porque, por esses anos, já Barnet começava a ser objecto de culto na Europa Ocidental. Em 1980, o National Film Theatre organizou-lhe uma integral em Londres. Em 1982, o acontecimento repetiu-se no Festival de La Rochelle. Em 1983, foi a vez de Locarno, que editou, por essa altura, o primeiro volume consagrado a Barnet, com notáveis contribuições de Ian Christie, Noël Burch, Bernard Eisenschitz, etc. Só nos anos 90, a Cinemateca Portuguesa acordou. Em 1994, À Beira do Mar Azul foi exibido, pela primeira vez em Portugal, no ciclo «Os Melhores Filmes Europeus», co-organizado com a Lisboa 94. Voltou a passar em 1995, entre os filmes-chave da história do cinema. E, em 1996, organizou – finalmente – uma integral Barnet, e publicou um catálogo que é basicamente a tradução da edição de Locarno.
A Portugal, Barnet chegou cerca de trinta anos depois de ter morrido e cerca de sessenta anos depois do primeiro filme. Antes de 1994, só conhecíamos dele – sempre a Cinemateca, para o bem ou para o mal – Devuchka S Korobkoi (A Rapariga da Caixa de Chapéus) de 1927, Okraina (ambos exibidos em 1987) e Miss Mend (1926) revelado em 1995.
Em A Rapariga da Caixa de Chapéus, Barnet descobriu a belíssima Anna Sten que, dois anos depois, passou à Alemanha (foi a Grushenka numa célebre versão dos Irmãos Karamazov de 1930) e que, em 1932, Goldwyn levou para a América, anunciando-a como uma nova Garbo ou uma nova Marlene. Tinha a mesma star-allure mas, vá lá saber-se porquê, apesar de alguns Vidor e de um Mamoulian em que foi resplandecente, crítica e público não lhe pegaram e as más-línguas chamaram-lhe injustissimamente «Goldwyn`s folly». Adiante. E adiante porque, depois de Anna Sten, Barnet descobriu a não menos fabulosa Elena Kuzmina em Okraina. E Elena Kuzmina – louríssima, humidíssima, azulíssima – é a Macha de À Beira do Mar Azul, milagre feito mulher ou mulher feita milagre, neste filme entre todos milagroso e de que o último dos grandes críticos – Serge Daney – falou obsessiva e obcecadamente até à hora de morrer (1993).
Antes de falar do milagre, devo dizer que jamais percebi por que insistem em classificar À Beira do Mar Azul como uma comédia. È um melodrama – se quiserem uma comédia melodramática – e jamais, à sua visão, tive qualquer vontade de rir. Nada que ver com a comédia sofisticada americana e tudo a enunciar os imponderáveis «filmes de amor» da «nouvelle vague» como Adieu Philippine de Jacques Rozier, Jules et Jim de François Truffaut ou Lola de Jaques Demy. Como as obras citadas, é um filme de amor a três: amor entre Aliocha (Nicholas Krintchov) e Jusuf (Lev Sverdlin), os dois amigos tão novos na terra, amor dos dois por Macha, a rapariga da ilha, a rapariga que conhecem na ilha.
Chegam à ilha depois de um naufrágio. Os primeiros planos do filme são fabulosos planos de mar e de ondas (dos mais belos planos de mar e de ondas que já vi, quase tácteis, quase minerais) donde emergem brevemente a cabeça loura e a cabeça morena dos dois náufragos. Um intertítulo diz-nos que «lutaram dois dias e duas noites contra a morte». Ainda nada sabemos deles, para que esse combate nos possa apaixonar. Mas aquele mar é tão desmedidamente sensual, são tão desmedidamente sensuais os muitos planos de nuvens, sol, crepúsculos, auroras, noites, dias, que nos fixamos naqueles vultos como imagens transfiguradas por uma inexplicável irrealidade e o sul do Cáspio, no Azerbaijão, começa a invadir-nos e a contaminar-nos.
Se a fotografia de Kirlov é prodigiosa, é também dos melhores exemplos que conheço de uma fotografia rigorosamente submetida a uma visão que a ultrapassa. Um só plano género «bilhete postal» e tudo estaria perdido. É porque a ordem de beleza nunca é essa, mas a do abraço telúrico de elementos e homens, que esses planos nos assombram tanto, como se aqueles vultos viessem de um fundo mítico semelhantes ao de mares e céus, náufragos eternos, de que fossemos convidados a seguir – agora – uma outra e particular história.
Depois desses minutos inebriantes do mais puro cinema, novo intertítulo nos prepara para a «história». «Era uma vez numa ilha». E o rapaz louro e o rapaz moreno já estão a salvo, a dormir um contra o outro, de tronco nu, no fundo de uma barcaça, iluminados, no meio das areias, por um sol prodigioso. Ainda não apareceu mais ninguém, ainda não vimos Macha, mas já se selou a aliança entre os dois protagonistas, aliança que nada nem ninguém – nem uma mulher como Macha – pode destruir.
Mas Macha chega pouco depois e é o primeiro ser humano daquele lugar a vê-los. Vemo-la em contraplano (primeiro grande plano do filme) como se fosse a personificação do espírito daqueles lugares, com um sorriso meio trocista meio terno. Ele acordam, vêem-na como visão. Contracampos. Sorriso dela, sorriso deles. E ouve-se a belíssima canção que fala da gaivota, dos dias claros e das turbações escuras.
Os rapazes arranjam trabalho na «companha» e a narrativa prossegue em elipses. Apaixonam-se os dois por Macha. Dizem-lhe que têm medo das mulheres. Um dia, Aliocha ousa mais e oferece-lhe um colar de vidros como pérolas. Mas o colar rompe-se quando ela o põe ao pescoço e as pérolas desligam-se uma a uma, apagando no chão o seu brilho, como se fossem estrelas cadentes tilintando contra o solo. É muito mais do que um plano simbólico. É um plano transfigurador. E Macha oferece-se e recusa-se aos dois, como uma criança que brinca com outras crianças e que sabe como começam e onde acabam os jogos.
Muito depois, a sequência que Daney tanto amou. As ondas levam macha e todos se convencem que ela morreu. O povo já se reuniu para o velório. Só Aliocha e Jusuf continuam à procura, até a verem desmaiada, repousando na orla da praia. Tão alegres como num musical americano, levam-na para o velório dela, até ela realizar que ela era a morta por quem a aldeia chorava.
Daney dizia que só se podia falar dessa sequência contando-a, como se só a oralidade perfizesse a beleza daquele momento único, daquelas imagens únicas. «Lembras-te» - dizia ele - «lembras-te como é tão bonito quando o mar enche a tela toda? Lembras-te quando ela ainda não percebeu que estão todos a chorar porque julgam que ela morreu e que ela começa a rir com os dois rapazes? Lembras-te quando eles os três começam a dançar de alegria e, pouco a pouco, todo o povo dança também?» Lembras-te? É a pergunta que apetece fazer a propósito do milagre dessa sequência. Lembras-te quando ela, espantadíssima, pergunta «quem morreu?» e a resposta é a mais bela dança que vi em cinema, incluindo a do Singin´in the Rain? Nunca, talvez, o cinema tenha estado tão perto de nos fazer tocar na alegria como «dom de Deus (…) que traz em si um carácter eterno que passa através do sofrimento» (Sophia de Mello Breyner). E nunca, a não ser em Ordet de Dreyer, o triunfo de um corpo «ressuscitado» foi tão físico e tão anímico, tão carne e tão espírito.
Depois, Jusuf convence-se que Macha ama Aliocha e prepara-se para partir. Depois é Aliocha quem pensa que é ao contrário e, mais ciumento e rezingão, decide ir-se embora também. Depois, ambos descobrem que Macha é casada com um marinheiro bigodudo (que só vemos em retrato, feiíssimo) que andava longe ao serviço da pátria e do proletariado e que ela não trocará por nenhum dos jovens. Depois, os dois vão-se embora, sorrindo da vida ser assim, cúmplices do engano daqueles dias. Todos, no fim, sorriem melhor uns para os outros. O céu, a terra, o vento sossegado. Como se viéssemos de um sonho ou a um sonho regressássemos.
João Bénard da Costa
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