domingo, 26 de outubro de 2008

Finalmente comprei o DVD do monumental filme de Samuel Fuller, “The Big Red One” – versão restaurada, 162 minutos. Menos de 5€, foi a compra do ano.
O filme é tudo o que já sabemos, uma espécie de testamento em que a altivez e a dureza do personagem de Lee Marvin, junto com um coração que lhe vai permitindo diversos afectos e princípios morais – matar e assassinar são coisas diferentes, a guerra terminou vamos fazer viver o adversário que matamos fora de horas, a sua relação com as crianças, etc. – descentra o filme de qualquer linearidade e programa, anula o preto e branco, torna-o dialéctico, complexo, com um cunho de veracidade angustiante que nasce, precisamente, desse comprometimento em destapar as acções e os actos, as palavras, os sentimentos e os princípios. Os percursos também. Sente-se a força humana e logo contraditória por detrás do projecto, como se sente que estamos perante algo que tem a cara e o coração de um homem – Fuller – naquela implacabilidade, naquela dureza, e naquela paixão incalculável e romântica pelo humano e pela sua missão, pela sua profissão. De resto, todos os instintos animais e de sobrevivência, todos os lados negros, não serão abafados. Desconheço o porquê das desconfianças que não nasçam de um espelhamento terrível.

Há um aspecto que me interessou particularmente no filme e que me dá chaves para muita da restante obra. O Realismo. O óbvio seria chamar de realismo poético, no entanto acho que todas as variações e todos os acordes concorrem para o realismo viscero. É verdade que em Fuller temos sempre um lirismo desenfreado, uma espécie de tinta-da-china, um comentário e uma marcação. Que neste filme pode ir da água do mar que se transforma em vermelho do sangue que se transforma em cor-de-rosa. Pode estar na insistência em mostrar o relógio na mão do soldado abatido, como claustrofobia temporal. No modo como Fuller trabalha a paleta cromática, ora desaturando por completo para imediatamente no plano seguinte fazer brotar a cor, entre outros processos. Nas referidas crianças e no seu simbolismo, nas festas com as mulheres ou na sequência extrema do manicómio, etc…

Mas existe sobretudo uma consciência da complexidade e da subjectividade de todas as realidades. Não existe uma, existem sim abstracções e cada um constrói ou vive a sua. É por aqui que Fuller no faz sentir na pele um mundo e realidades em ebulição, um fervilhamento e uma cólera que advêm da loucura do homem em confronto com o outro e com a natura, um organismo vivo e constantemente mutável – daí a imensa e impressionante profusão de ruído e a incongruência/estilhaçamento de qualquer lógica sequencial (raccord) das imagens – em que aqueles soldados se perdem, desaparecem, se acham e questionam. Sendo um filme que indiscutivelmente olha os homens de maneira complexa, é na mesma medida um filme que olha o cinema também dessa maneira, não alinhando nas convenções e nos géneros, não aceitando as normas do equilíbrio e das leis que aprisionam, não seguindo os propalados padrões de qualidade ou qualquer dita essencialidade de estilo.

Não, essa realidade em bruto que eu sinto, muito mais do que qualquer gimmick que esses novos filmes de guerra alinharam e tornaram aleatório, programa a cumprir (as câmaras a tremerem e a voarem, os cortes a cada segundo, as câmaras lentas, etc.) existe uma comunhão entre o inferno e a distorção vivida pelos soldados e o mundo que os rodeia, a matéria. Jamais Fuller trairia o que viveu e o que sentiu pela futilidade de um estilo imposto e mentido, pelo espectáculo. Por qualquer regra de cinema. Daí o prodígio dramatúrgico - visceral, realmente orgânico. Daí essas cores que variam, esse ruído que entranha, essas aberturas que falam com os grandes-planos e esse lirismo entristecido. Aquela luz que perpassa dos céus para pulverizar o quadro. As bordas enternecidas e o recorte angelical de algumas cenas.Esse cheiro a queimado e esse ar tão carregado que sufoca. Essas texturas que ferem.Chama-se realismo porque dói e se reconhece, nada a ver com o resto.

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