quinta-feira, 20 de agosto de 2009


O que transmite a imensa sensibilidade e o profundo humanismo do filme de Manuel Mozos são coisas singelas. A começar pelas pessoas que vivem no filme, como vivem e o que fazem, até aos lugares por onde elas andam. Cheio de mundo e de vida, longe do fetiche babado e da cinéfilia barata. Não existem vedetas, décores espampanantes nem grandes carros. Não existe um argumento intricado, piruetas estilísticas ou montagem a rasgar. Tudo é puramente comum e é isso que torna o filme especial e o engrandece. Claro que em muitas salas onde será projectado (e é milagroso ver coisas tão pequenas e íntimas serem projectadas) passará por simples objecto “demodê”, quem sabe anacrónico. Nada disso (mesmo que seja preciosamente “fora de tempo”), Mozos é um clássico, um dos últimos crentes da arte dos silêncios e do relato, do essencial e do sensível. É daqueles cineastas que sabe que quando a arte clássica é praticada com tal certeza absoluta e com tal humildade, só desse modo o cinema parece ser possível existir e fazer sentido. Nesse hiato que o filme dura, não há margem para dúvidas. Um cinema que se interessa pelo que o demais dispensa e lamentavelmente elide – desde os pequenos gestos e modos caseiros ou no trabalho, até à maneira como se sente um cigarro ou se bebe um copo de cerveja, se dá pontapés numa bola, ou ainda na fabulosa cena da discoteca, a criação de ambiente e atmosfera bem como os rituais próprios dos lugares, é de quem percebe tanto de cinema como da vida. Sim, pois não é só a mestria da velha escala dos planos e do trabalho de luz que está em jogo, é de modo tão decisivo um respeito pela subjectividade e pelas nuances de cada indivíduo. Cada um é um outro, zero de maniqueísmo nestes aspectos. Por tudo e mais alguma coisa, repare-se na imensa orgânica e nas respirações várias que o filme ostenta, nas sinuosidades, nos altos e baixos (precisamente como os baixos e os altos representados pelo centro comercial e a montanha; um pouco de sufoco, muito de transcendência), na forma como as coisas mudam e se transformam, nunca preso, muito menos dependente, de convenções narrativas e visuais destes tempos – impressionante a maneira como a música entra e se abandona conforme a emoção em jogo – inventando mais uma vez uma poética própria (ler sobre “Xavier”, sempre). Que se note mais uma vez que o clássico quando nestes moldes sublimado e cinzelado é mesmo o mais moderno dos modos e logo o mais livre, é daí que nasce a frescura de “4 Copas”. E que por tudo se perceba que na era do digital – onde se tenta a todo o custo substituir a carne, os ossos e o sangue, por meros pixels – ainda é possível que seres tão comoventes, inseguros, cheios de falhas e virtudes, numa palavra, humanos, habitem deste modo uma realidade e uma tela. Ainda é possível filmar afectos e relações, sem pedir desculpas.

Rita Martins, ai ai...

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