terça-feira, 17 de novembro de 2009

“L'heure d'été” é composto pelos dois grandes temas e fluxos do cinema de Olivier Assayas, de uma maneira gravíssima e em surdina, tudo elevado ao paroxismo. São a forma como a velocidade, dispersão e a economia do mundo moderno (a globalização recente) destrói as relações e os sentimentos, no caso, a família. Derivado (muito) disto, mas aqui funcionando como um corpo (e com corpos) próprio e terrorífico, uma reflexão sobre a mutabilidade e efemeridade da matéria e dos homens. De tudo. No primeiro caso, Assayas resolve dar um volte face em relação à forma como habitualmente nos mostra a maneira louca como o mundo e as pessoas se movem e relacionam hoje em dia, tudo é extremamente concentrado, no espaço da casa de família ou nos outros espaços filmados de maneira cerrada, onde parece ser difícil respirar, onde todos os grandes movimentos e fatalidades que as personagens vivem nos últimos filmes do cineasta francês vão aparecer em of, nos diálogos desencantados ou no modo como a câmara prescuta os rostos e as reacções de quem ouve e de quem sente, na memória convocada. Por isso este é também um grande filme de viagens, o maior que Assayas já fez. É num mundo onde um dos irmãos vai viver para a china por uma eternidade e a irmã se vai casar, e por tudo isso não se vão ver durante muitos muitos anos, que aquelas gentes vivem, apesar do dinheiro ou por causa dele. Todo o resto do mundo que não se vê e que não é percorrido, que parece estar fora, vai estar mais do que nunca dentro. Ali dentro. Os não ditos, os silêncios, como naquele plano em que Charles Berling prefere sofrer sozinho e não explodir, vão-se tornar essenciais. Daí também o peso que adquire a extraordinária mulher vivida por Edith Scob, personagem quase muda, quase vinda de um filme de Franju, mesmo que fale muito e sobretudo por parecer saber já tudo, como as coisas se irão desenrolar e acabar, como tudo passa fugazmente, em ciclos. É uma família destruída onde o que estamos a ver é a desencantada excepção.

O outro grande tema do filme é tão difícil de engolir como, é a coisa mais seca e grave que Assayas já pôs em cena, embora na verdade tudo seja consequência. Ou seja, temos a casa, temos todo um grandioso e valoroso espólio, existem ainda outras propriedades exteriores e sobretudo muita memória. Temos a conversa entre Scob e o filho mais velho, onde esta prepara o seu fim e vai dando pistas sobre o que fazer depois – e mais tarde saberemos que ela já sabia que tudo, as coisas e a memória se encaminhariam fatalmente para a extinção (o “não querer saber” e o desinteresse apenas são ampliadores e aceleradores do Fim). Mas tão dura como esta conversa é a que Berling têm depois com Binoche e com o outro irmão (todos juntos, os novos), tipo: “temos de tratar e de organizar a herança pois já não duramos muito e depois é com os nossos filhos, eles que façam o que quiserem”. È puramente uma questão de burocracias, de mecanismos, não há espaço nem tempo para as emoções – mais uma vez o plano do irmão velho que chora é excepção – e como sempre em Assayas, e já era isto que o afastava de Bresson, mesmo quando os procedimentos formais se assemelhavam bastante nos primeiros filmes, estamos num mundo sem Deus, sem uma divindade a que se possa socorrer lá acima quando as coisas correm mal ou quando falta a esperança, é cada um por si e pelos seus interesses. Tramado, não há volta a dar, o que nos estoura ali na cara é que, de facto, toda a substância, tudo o que é palpável e de valor comercial, ou não, não vai durar, há-de acabar. Todo o filme é sobre as coisas que não duram, sobre os quadros, as pinturas, as jarras, a carne, o sangue. O próprio filme. Tudo o que é matéria, tudo o que o filme registou, vai desaparecer, e é nessa consciência agudíssima, na maneira como o filme faz disso o seu centro avassalador, que para mim tudo se transformou numa peça de horror, infinitamente mais do que exercícios de género com sangue, moto serras e afins. Fica o quê? ficará, talvez, o espírito, talvez a memória, que é o que a câmara de Assayas e de Eric Gautier (um dos maiores) tenta fazer sentir ao movimentar-se suavemente e misteriosamente pelos espaços assombrados daquela enorme casa, só o assombro e as sombras ficarão, os infinitos reflexos abstractos e fugidios. E depois vamos ficar só com Berling, em Paris, na vidinha, sem rasto dos outros, a grande casa vai ser evadida pela juventude e pela inocência, pela violência desta. É tábua rasa e é questão de tempo, novo ciclo e os mesmos problemas, as mesmas coisas, no fim, tudo igual…Certo que, aqui, Assayas corta e acaba o filme onde começa a vertiginosa festa nocturna em “L'eau froide”, mas acho que não dá para dizer que é um raio de luz, antes um falso apaziguamento pelas aparências.

Para ver de olhos bem abertos:

1. os fantasmáticos planos terminais em que Scob se desvanece, azulados, sombrios, irremediavelmente frios. A brutal maneira como Assayas liga estes planos e este mundo com o universo e o ar dos planos seguintes, um fade lúgubre, os mesmos tons gélidos, só algum tempo depois, quando os pêsames são dados num lugar onde não se quer ir muitas vezes, é que vamos saber que a morte já estava nos planos e nos cortes.
2. A empregada vivida por Isabelle Sadoyan, é o ser mais comovente que por lá vai passando, secretamente, sem fazer barulho, mas com um peso e com um saber não equiparável a mais ninguém. É a que sabe todos os segredos, os que mais ninguém sabe. Sem ilusões.

Enorme filme.

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