quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Cinquenta e muitos anos depois, Terence Malick voltou à Segunda Guerra Mundial para recordar o famoso ataque a Guadalcanal, uma das mais sangrentas batalhas do Pacífico.
Muitos temas esse filme pode convocar e reservo alguns deles para a última sessão, consagrada ao seu último filme, The New World, mas um dos mais impressionantes é o olhar sobre o medo, quando as tropas americanas, desembarcam na ilha ocupada pelos japoneses. Sempre me pasmei, por maior que seja a doutrinação, por mais firmes que sejam as convicções, como se consegue que milhares de homens avancem para a morte sabendo que a única vitória na guerra é ficar vivo. Steven Spielberg tentou dar-nos isso, de uma maneira espectacular, em Saving Private Ryan (1998) com a espectacular reconstituição do desembarque na Normandia. Mas Malick foi, quanto a mim, mais ao fundo. Não sei dizer melhor que Gavin Smith:

“É já dia claro, quando um imberbe tenente da infantaria – um miúdo – recebe a ordem para atacar a colina, defendida, muito lá em cima, pelas posições japonesas. Faz sinal a dois soldados para avançarem. Eles não se movem. O tenente repete o aceno, com mais ênfase. Os dois GI olham um para o outro e iniciam a subida, a correr. Lá de cima, ouvem-se os primeiros tiros do filme, os primeiros tiros da batalha. Dois rápidos disparos e os dois homens caem mortos. De novo, o silêncio. Uma brisa forte agita os altos arbustos da colina, que se movem como se fossem uma onda. E, nesse preciso momento, o sol, que estava encoberto, destapa-se e brilha com uma luz magnífica, como se fosse um sinal dos céus. O tenente ordena a carga e ele e os seus homens levantam-se e atiram-se para a frente, de sopetão. São todos mortos por rajadas das metralhadoras e morteiros que, ocultos, esperavam por eles. Esta gloriosa epifania de luz resplandecente, com a terrível carnificina que se lhe segue, é um momento de cinema de cortar a respiração e ilustra um dos grandes princípios do filme de Terence Malick The Thin Red Line”.

Na grande tradição poética e dramática ocidental (dos poemas homéricos a Shakespeare) com assinalável frequência, os elementos ditos naturais se associam às dores ou às alegrias dos homens, para metaforicamente as sublinhar. “The sun for sorrow will not show his head”, diz Shakespeare que aconteceu quando Romeu e Julieta morreram na cripta dos Capuletos. O uso do futuro indica uma ordem, na peça proferida pelo pai de Romeu (se não erro) mas assumida por quem quer que comande os astros. As trevas fizeram-se quando Cristo morreu na cruz, ou quando Aquiles foi atingido em Tróia. Neste filme, em que um oficial invoca, em grego original, “a aurora dos róseos dedos” de Homero, a metáfora funciona no mesmo sentido, só que com o sinal inverso. Acumulada a tensão da expectativa temível (o desembarque das tropas nas areias de Guadalcanal), o longo percurso nas planuras, sem que se ouçam mais do que os barulhos dos animais, o sopro do vento e a respiração dos homens (off, a música, a fabulosa música de Zimmer) quando alguns já manifestam a vã esperança de que os japoneses tenham abandonado a ilha depois de dizimado o batalhão que os precedeu (vamos vendo cadáveres putrefactos, por aqui e por ali), pressentimos e pressentem eles (“suspense” invertido) que o momento está a chegar. A luz, a luz tropical, invade tanto tudo que nem reparamos bem que o dia claro é também baço e que as húmidas nuvens cobrem o sol. Até que há (imenso plano geral) esse enorme “arrepio” da verdura, sacudida pelo vento. “The close you are to Caesar, the greater is the fear”. A escuridão adensa-se? Pelo contrário, o sol brilha e torna tudo ainda mais verde (a côr do medo, diz-se) e ainda mais suave. E basta esse sinal de luz – essa mudança de luz – (“let there be light”) – para sabermos, antes, que à visão do paraíso se vai suceder a do inferno, que a morte vai ceifar a vida. É preciso ser-se absolutamente genial para conseguir um tal plano e um tal absoluto.
Sentimos tanto medo, ou eu senti tanto medo, porque nos identificamos com os americanos, com “os bons”? Quando os sobreviventes da chacina chegam ao alto da colina e enfrentam os japoneses, vemos homens tão apavorados como apavorados víramos os brancos no início. Há um americano que conversa com um japonês agonizante. Em voz baixa, num tom neutro, diz ao moribundo coisas horríveis: que ele não tenha esperança em qualquer além que não existe, que tudo o que ele ainda vê e os abutres do céu são a última coisa que ele verá. Obviamente, o japonês não percebe uma palavra do que ele diz. O americano fala para si próprio, fala para nós, espectadores e todo o mundo? Ou julga que algo do seu ódio atinge o suposto interlocutor? Que pensará o japonês enquanto o ouve? Perceberá a agressão, o ódio, ou levado pelo tom de voz, julgará que aquele outro homem o consola à hora da morte. Quando já tivemos tempo para pensar nisto tudo, começa a falar. E é a nossa vez (e a do americano) de nada percebermos. O moribundo responde ao ódio com ódio? Fala de si próprio e das saudades de quem vai deixar? Tenta transmitir uma mensagem? Pede perdão? Nunca saberemos. Mas sabemos que, naquele campo de medo e naquele campo de sangue, não há diálogos, mas só monólogos. Um homem que vai morrer, morto por acaso, e um homem que, por acaso, sobreviveu.
Neste filme se nos diz que há pessoas que falam da imortalidade, mas nenhuma que a tenha visto. Mas neste filme vemos tantos e tantos homens morrerem por causa de uma suposta imortalidade ou individual ou colectiva. E, como disseram os sábios, heróis só os loucos ou os cobardes.
O soldado Witt (James Caviezel) é dos que acredita. O soldado Welsh (Sean Penn) é dos que nada acredita. O soldado Witt responde sempre ao cinismo, real ou verdadeiro, do amigo “I still see a spark in you”, mas é Witt quem morre na fabulosa morte nos pântanos, cercado pelos japoneses. Depois do enterro (a terra branca ou a terra calcinada) Welsh dirige ao túmulo a última provocação: “Where is your spark, now?”.
“Let there be light” “Where is your spark, now?”. Final e fundamentalmente, este filme de Malick é um filme sobre a luz e sobre esse spark. Simplistamente, pode responder-se que o spark está naquela natureza gloriosa, nos animais que a povoam, naquele verde apoteótico ou, exemplo belíssimo, na borboleta azul que aparece depois da morte do soldado, que se desfez com a própria granada. Mas o panteísmo nunca deu resposta a nada. Perguntou.

JOÃO BÉNARD DA COSTA

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