segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010


Objecto português recente com o mesmo tipo de força bruta idêntica aos de Paulo Rocha, só estou a ver “Os Mutantes”, de Teresa Villaverde, que revi recentemente. História de putos deserdados, abandonados, perdidos ou desmarcados, é com eles que Villaverde estabelece, nada mais, nada menos, do que uma espécie de secretíssima e selvagem aliança/encontro com o cosmos e com a fantasmagoria. A rebelde da instituição que separa o espírito da matéria e assim dá asas à sua libertinagem suprema – uma fuga, uma deriva, um cigarro e logo depois a certeza de que de facto a juventude pode ser colossal, imparável, mesmo que sob o signo da inocência; o sonhador, que no delírio propicio ao meio e ao caos em que se encontra, julga ver o seu ídolo futebolístico fazer uma acrobacia só para ele e para mais ninguém; e depois, depois...o momento que mais será preciso ver: dois dos perdidos, um charro a ser fumado, sentados num daqueles lugares de sonho e de liberdade, uma qualquer feira de diversões, muitos carrosséis e maquinaria, e, com todos estes elementos, é impressionante, sobretudo reveladora, a maneira monstruosa e febril com que a cineasta consegue transmitir uma tal experiência imagética e sonora de um estado mental alterado, ao mesmo tempo que ousa transformar tudo aquilo num mundo singular, autónomo, qualquer coisa que só num tempo é permitido ser vivido. Muitas máquinas, muitos ruídos, muita escuridão, muito céu, muito suor e logo muito frio, luzes garridas a rasgar e a violentar o escuro, cortantes movimentos – paraíso cósmico e irrepetível de onde emana uma visceralidade que só quem já por aquilo passou é que conseguirá aceder a um tal devaneio e desprendimento dos sentidos; Gemidos, gritos, berros, choro, raiva, muito sangue, papel higiénico, toda a bruteza deste e de outros mundos no momento em que uma criança é dada à luz; tal hecatombe e libertação de energias só podem evidentemente ter saído de uma união secreta, cujos termos serão para sempre desconhecidos, entre Ana Moreira (a bela sem rumo e “sem hipótese”) e Villaverde, com a sua câmara implacável, à maneira da agulha dum sismógrafo, para citar Daney. “Um galão quente, um galão quente” é a medida de um impossível apaziguamento que jamais virá, mesmo que por florestas adentro se ouse, elas que sempre foram locais de revelações e de tranformações, servirão como último suspiro de uma transgressão e dor infinitas. Os perdidos e os fantasmas sempre souberam ser da mesma família, essa vertigem lancinante. Depois, cada um por si. “Não estejas triste…” ainda tenta dizer um deles. “Epá, vai para a tua vida” é a resposta, a dimensão de tal desilusão e abandono. Todos os mistérios mantidos, tal como a porta que no final se fecha e que fecha o filme.

Mas se tudo é assim tão descarnado, tão feroz, a mestria de Villaverde também está – em medida igual – no modo como imprime uma veia liricizante, uma espécie de poética do desespero, que na sua aparente mansidão já contém impregnados todos e quaisqueres posteriores vulcões. È de admirar sobretudo como a cineasta não se perde em iconografias ou belos retratos inúteis, sim como se detém em desenhar o prenúncio da catástrofe. São os tais putos com cabelos ao vento, deitados sobre a cauda de um comboio, tentando sentir a dor na pele, desmaiando, deitando-se sobre a janela do carro, quase tocando na estrada e emborcando whisky, um passeio de barco. Ou aquela subida à copa de uma árvore mágica e a procura de um igualmente perdido animal.

“We can´t go home again”parece ser coisa sempre sussurrada e irreversível deste encontro entre Nicholas Ray e o já referido Rocha. Toda a fragilidade e toda a força. Pelo menos foi o que eu vi e senti, por mim falo sempre.

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