terça-feira, 9 de novembro de 2010


O SOMMA lUCE

Filme de Jean-Marie Straub assente no último cântico do paraíso com que Dante fechou esse capítulo da Divina Comédia? Rigorosa mise-en-scène da palavra, do gesto humano e do génio/colosso da natureza?
Tudo isso nos vai dar Straub, com a mesma implacabilidade e precisão de sempre, ou com um novo abismo, esse violento abismo que a imprevisibilidade de um ramo de árvore sacudido pelo vento ou os “incidentes” do som directo permitem irromper, abanar, fazer tremer, quase explodir o que muitos dizem ser um sistema formal perfeito ou um qualquer dispositivo fechado em si mesmo. Apenas duas ou três coisas e uma infinitude de direcções.
Straub sempre foi um dialéctico; um tradicionalista dialéctico; cineasta das furiosas oposições, dos paroxismos em surdina ou das catástrofes em suspiro. Dos transes da palavra feita cântico e dos milímetros cerrados do visível. “Violência com violência”, no principio como no fim, "O Somma Luce" comporta em si uma lógica explosiva.

Peça bipolar; peça uníssona às origens. Do humano e do mundo. Filme de forças antígonas e de extremos que se olham e se falam. Um embate e um reconhecimento.

Ao filme. Créditos curtos, créditos generosos, "O Somma Luce" abre a preto e a preto continua até metade, nesses sete minutos em que a música aterradora de Edgar Varèse nos permite aceder e imergir em qualquer coisa próxima do inferno ou das trevas. Negro absoluto –Ritmo hipnotizante – Inferno.

Da peça musical ao título. Do negro–negro à luz absoluta. Do mais profundo subterrâneo à claridade que cega. Da morte à vida. Do fim dos fins à sedutora e insuportável luminosidade.
Do inferno ao paraíso.

Se Straub constrói este movimento dramático e sensível, imagético e sonoro, musical e vital (câmara, som, texto) a sua inteligência é a recusa de fronteiras estanques e lógicas deterministas. Já sabíamos, o negro medonho pode comportar a mais efusiva das asceses ou das catarses. O negro medonho pode comportar toda a complexidade e segredos do universo. Assim como a luz suprema é tantas vezes a imagem do incomensurável e logo do insuportável. Do absoluto e da perdição. De um cosmos onde aparentemente nada se vê a um cosmos onde demais se vê, do que se tacteia ao que excede, tudo constantemente se reverte e se corresponde sigilosamente. Uma e a mesma coisa. O sentido na eclosão/implusão e as mais fundas trevas impressas na magnífica luz que pela primeira vez Straub escava pela alta definição. Um homem e um texto, o verde terrestre e o azul do céu, a terra original, a envolvência do mundo e o ecoar das profundezas. Matéria.

Danièle Huillet, qualquer coisa assim no filme de Pedro Costa: “O negro não é simplesmente negro, ele pode conter uma imensidão de ruído e de coisas”. De tudo. "O Somma Luce" continua a ser um filme dos dois. Straub-Huillet. E não era preciso socorrer-se aos créditos que tudo abrem.

Uma ode. Uma tragédia. Uma bomba aos opressores. Uma carta de amor.

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