quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
“Les perles de la couronne”. Sacha Guitry. 1937. Olhei para a data, já depois da grande projecção na cinemateca e foi quase um baque. Mas dos fortes. De um só vez a confirmação da fraude dos grandes livros sobre história do cinema, dos grandes historiadores e das grandes listas. Das escolas ditas de cinema, cursos, cinefilia. Tudo e muito mais. Constatação que tal história é imensamente mal contada, perpetuada, acolhedora. Põe-se a obra de Guitry ao lado dos Mizoguchi da época, do “Citizen Kane” ou de “La règle du jeu” e não me venham falar de diferenças formais, profundidades de campo, magias por trucagens, ilusões quaisquer, ambiências fora-do-mundo, ritmos ou tonalidades.
Sem antes ou depois.
“Les perles de la couronne” é uma imensa peça sinfónica, polifónica, só aparentemente fragmentada e de mil remissões e correspondências internas e sussurradas – Tarantino ou Altman ou P. T. Anderson chegaram tarde muito tarde e os tais compêndios falam em revolução, coisa triste... - aventureira por mares, castelos de réis rainhas réis príncipes e princesas, naus, espadas, capas, mundos exóticos e esotéricos. Venenos. Idas ao fim do mundo e regressos pasmosos e heróicos. Mulheres belas, mulheres perigosas, mulheres audazes, também doces. Erotismo flor da pele. Crianças ambiciosas tramadas, de olho aberto, donas delas, imperiais.
Um corropio ou uma dança tão pasmosa que atinge o infernal e o imparável. Vórtice ou vertigem.
É também uma tragédia, porventura um grandíssima tragédia numa dissimulada leveza. Famílias dizimadas à nascença da criança que não sobrevive. Sucessões corrompidas. Cardeais orquestradores de interesses e do mal. Crimes fora de campo, crimes no centro do quadro. O tempo que corre corre corre, distende-se, destrói, torna cinzas, executa esquecimentos, irrompe abstracção e favorece lendas, apropriações.
Tudo porquê? Por umas supostas valiosas pedras pérolas de uma coroa que a muitos vão despertar interesse, obsessão, até indiferença ignorância, estabelecer hierarquias, preferências, estatutos, pôr tudo em cheque e em abalo. Pedras da perdição.
De mãos em mãos, de geração em geração, de continente a continente, do mais rico lugar da terra para as profundezas insondáveis e originais dos fundos das águas.
E Guitry a pôr tudo isto em cena é de uma mestria visual e efabulatória tal, de um rigor e ao mesmo tempo de uma vontade e concretização de mundos e ambiências a que se poderiam chamar “fantásticas” ou surreais, terríveis de um certo modo fundo. “Fantásticas”, surreais, atmosféricas, aereadas, tanto como os nevoeiros ou os deslizamentos da câmara que do teatro voa para o mais puro êxtase das possibilidades primitivas, escondidas, virgens do cinematógrafo. É alguém a olhar pela primeira vez fascinado, qual criança mesmo que perversa, excitada e consciente, com ideias e a tudo aberto. Lembro-me de um plano maravilhoso, uma sequência, seguido pelos próximos: uma nau a chegar ao cais, tanto nevoeiro entre os céus o meio envolvente aquelas águas que tantos segredos de certeza guardam. Assim, todas as forças, todas as linhas, todo o palpável, concreto visível, ali num todo, densissimo e suavíssimo, como só os grandes estetas ou os grandes poetas – sim, o Orson Welles de “The Magnificent Ambersons” vem imediatamente à memória, neve névoa opacidades – assim nos mostram e nos arrepiam. Grandíssimo universo dentro do desmesurado universo onde tudo se passa. Depois um certo desfile de crianças e adultos também, tudo composto e belo e terno e forte como aquele que John Ford filmou em “The Horse Soldiers". Fixamentos e deslizamentos onde os termos, travellings ou panorâmicas ou o que quer que seja, adquirem o sentido de inutilidade. Sempre a poesia, a ontologia, a limpeza, as convicções. Medida própria.
Ao mesmo tempo é milagrosamente absurdo ou como se costuma dizer inverossímil. Tal como o exemplo máximo de toda a parte final – nem é preciso falar das pedras que se acham, passam, se perdem... acham – os três homens que contavam re-contavam a verdade ou o mito ou tudo misturado e desfasado. Encontram-se num tempo e num espaço de maneira impossível, casual, mesmos objectivos, fazem-se cúmplices e cada um acha uma das partes da tal coroa dita jóia. Leilões, armadilhas, esperas silenciosas, trinta por uma linha. Acaba-se sobre um grande barco, dissimulação amorosa, sedução, destruição retorno da fonte trágica. Bocas abertas.
Epopeia, delirante fervilhante epopeia. Prazer de mostrar contar sugerir tapar destapar iluminar escurecer. Tudo atravessado por uma ambiguidade feita negrume. Espelhos sobre espelhos partidos por espelhos. Cortante. Tudo em causa.
Guitry, artista maior.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Falo de “Way of Gaucho”. Falo num dos cumes da arte de Jacques Tourneur. Western. Aventura. Tragédia. Amor muito amor. Inaceitável não pensar em Diego Maradona nesta ode cântico hino às pampas argentinas, à liberdade e ao fantasioso e feérico. Martin Penalosa, belo nome, chama-se o vivido por Rory Calhoun, homem que chega de longe, anacrónico à sua maneira, incrédulo no que fizeram aos seus irmãos, à sua terra, valores, tradição, à dita liberdade, tudo. Movimento imparável do Gaucho, movimento imparável romântico do filme.
Vem de fora ou do dentro que aniquila e quando pisa as promessas e o mundo da infância e os sonhos já é só mito e utopia. Quimera criminosa para os das leis que torturam e abafam. Todos contra ele e ele a remar contra todos. Há sempre dissidentes, há sempre uma mulher, mulher que por acaso cai nos seus braços como ele caiu nos dela, e toda uma montanha a ultrapassar. “Way of Gaucho” é, como me disse um amigo, um filme de revolução, daqueles em que Langlois poderia ler a vontade de sangue e de mudança nos olhares, nas posturas, num todo vulcânico. Obra falada, obra muda. Todo o saber de Torneur tal como por exemplo em “Canyon Passage”, essa arte perdida de um olhar e de uma paciente construção em que toda a natureza, matéria, mundo, surge sublimada pelo que está em causa nos sentimentos e nas crenças do humano. Inseparável. Vontade e questão inadiável.
Maradona, dizia. Martin Penalosa e restantes crentes. O seu cavalo ziguezagueante e mais leve que qualquer coisa ar, o seu esbracejar, olhar cerrado, lábios como que trincados, tensão da carne, sentimento imparável, fantasioso, as fintas, malabarismos, contorções, maleabilidade, raiva muita raiva, vontade de ultrapassar e de arrebentar com tudo, velocidades estonteantes, olhar místico e profundo e infinito. Elegância, beleza singular das coisas verdadeiras. Dançarino esvoaçante. Nuvem voadora. Super Homem. Revolução, sempre.
Um homem sonha com a plenitude, cosmos absoluto. Opressores sem poder. Vitória ou derrota. Não trair. Olhar em frente.
Nem é preciso evocar “La maman et la putain” (paroxismo, ebulição, terramoto), basta ver os quarenta minutos de “Les Mauvaises fréquentations ” para se perceber e sentir que Jean Eustache era caso completamente aparte do que a Nouvelle Vague (como quer que a entendamos) tinha feito ou andava a fazer. E incluo todos os grandes menos Garrel, um que outro. Também é preciso ter tomates e lucidez. Nada de protecção ou rejubilamento cinéfilo. Nada de erudição a atravessar e a achatar a tela. Zero de aburguesamento de qualquer ordem. Jamais a forma a gritar-se e a vontade iconoclasta a valer simplesmente por si. Sem ruptura por ruptura. E aquela fascinação ou aquela pulsão coisa nova....toda ela está lá, vibrante, cândida, pura, primeira ou última. Inocência dos livres e dos vândalos. Eustache é como esses terríveis poetas, Rimbaud Céline tantos poucos, quer dizer que já aqui algo dói, arde, vêm de dentro, angústia qualquer, mal algum. Lâmina sem Hitchcock Não apenas jouissance ou desconstrução. Eustache queima.
Diferença entre habitar escritórios e viver as ruas. A caneta e a perdição. Muito pensar e abraçar copos. O poder da câmara mas o poder da vida.
Obviamente, muitas excepções. Carax é o outro, que tudo iria depois estilhaçar, arrebentar, tornar pueril, explodir, implodir, escarrar. Lá iremos.
Diferença entre habitar escritórios e viver as ruas. A caneta e a perdição. Muito pensar e abraçar copos. O poder da câmara mas o poder da vida.
Obviamente, muitas excepções. Carax é o outro, que tudo iria depois estilhaçar, arrebentar, tornar pueril, explodir, implodir, escarrar. Lá iremos.
domingo, 12 de dezembro de 2010
"Tenho o mau hábito de não ser pontual, mas eu próprio não supunha chegar tão atrasado. Peço desculpa e agradeço a vossa paciência, sobretudo aos actores e aos técnicos que trabalharam no filme e esperaram por ele durante estes 12 anos.
Muita coisa se passou no Mundo. E no cinema também. Por isso o filme possa parecer anacrónico. Mas para mim sempre foi importante vê-lo acabado e finalmente poder ser visto. Aqui está, tal como foi possível.
Poderia escrever muita coisa sobre todo o processo, mas melhor ou pior, já são coisas conhecidas e hoje, a poucas horas da sua exibição pública, confesso o meu cansaço e não vou escrever muito mais.
Muito obrigado a todos os que acreditaram neste XAVIER - "There was a naughty boy...".
E ficai com um poema, para beber com um whisky. Se possível com 12 anos".
Manuel Mozos
PRÍNCIPE DA AQUITANIA, EN SU TORRE ABOLIDA
Una clara conciencia de lo que ai perdido,
Es lo que le consuela. Se levanta
Cada mañana a fallecer, discurre por estancias
En donde sordamente duele el tiempo
Que se detuvo, la herida mal cerrada.
Dura en ningún lugar este otro mundo,
Y vuelve por la noche en las paradas
Del sueño fatigoso... Reino suyo
Dorado, cuántas veces
Por él pregunta en la mitad del dia,
Con el temor de olvidar algo!
Las horas, largo viaje desabrido.
La historia es un instante preferido,
Un tesoro en imágenes, que él guarda
Para su necesaria consulta con la muerte.
Y el final de la historia es esta pausa.
(Jaime Gil de Biedma)
Muita coisa se passou no Mundo. E no cinema também. Por isso o filme possa parecer anacrónico. Mas para mim sempre foi importante vê-lo acabado e finalmente poder ser visto. Aqui está, tal como foi possível.
Poderia escrever muita coisa sobre todo o processo, mas melhor ou pior, já são coisas conhecidas e hoje, a poucas horas da sua exibição pública, confesso o meu cansaço e não vou escrever muito mais.
Muito obrigado a todos os que acreditaram neste XAVIER - "There was a naughty boy...".
E ficai com um poema, para beber com um whisky. Se possível com 12 anos".
Manuel Mozos
PRÍNCIPE DA AQUITANIA, EN SU TORRE ABOLIDA
Una clara conciencia de lo que ai perdido,
Es lo que le consuela. Se levanta
Cada mañana a fallecer, discurre por estancias
En donde sordamente duele el tiempo
Que se detuvo, la herida mal cerrada.
Dura en ningún lugar este otro mundo,
Y vuelve por la noche en las paradas
Del sueño fatigoso... Reino suyo
Dorado, cuántas veces
Por él pregunta en la mitad del dia,
Con el temor de olvidar algo!
Las horas, largo viaje desabrido.
La historia es un instante preferido,
Un tesoro en imágenes, que él guarda
Para su necesaria consulta con la muerte.
Y el final de la historia es esta pausa.
(Jaime Gil de Biedma)
sábado, 4 de dezembro de 2010
Também é o génio de Capra, transformar os imbecis em homens. O Mozos e o Costa também hipotecaram a sua casa para “meet John doe”.
É essa coragem que admiro, a coragem da irresponsabilidade. Na teologia mercantil, dominada por cálculos racionais, não há lugar para o reino perigosa da infância. Carax, Borzage, Murnau, Welles, Costa resistem com a irresponsabilidade livre do Mal contra a moral bafienta.
"way of gaucho" é do carax!
MF
MF
filmes de carax. filmes de monstros. assombros. vigílias. fantasmas. medos. revelações. claridades. temores. tremores. escuros. trevas. fundos. caves. infernos. verdades. espasmos. explosões. catarses. gritos. libertações. destruições. revoltas. negrumes. arrebatamentos. perdições. dilacerações. vómitos. sangues. tripas. achamentos. quebras. uivos. amores. totais. tudo. tudo. sempre. tudo.