Magnífica e frágil Claire Denis. Florestas negras. Ardências e flutuações ao compasso dos fósforos, dos cigarros. O dia seguinte.
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Há muito que não existe um Walsh, como não existe um Ford ou um Hawks. Essa casta que, complexa e labiríntica, humanamente e cinematograficamente, recusava os jogos de metáforas e as tintas das china estéticas e narrativas para só ficar o essencial, o que de facto é e está lá. Um filme como "They drive by night" a ser feito hoje em dia ficaria com uma duração de umas três ou mais horas, foi o preço de "tanto e tanto talento" que hoje em dia os suplementos artísticos dos jornais nos entregam.
Aquilo que já sabemos, o mundo parece andar a um ritmo trepidante – os satélites, os aviões, as máquinas digitais, os avids, os portáteis dos jornalistas dos festivais – mas uma peça de arte deve ser lenta, dilatada, fazer-se poética e se possível sensorial. E o que aqui falta...
Walsh contava e mostrava coisas sem fim, coisas do arco-da-velha, coisas singelas, idas e vindas, momentos de amor, paz e guerra, mil e uma coisas e os filmes continham toda a fulgurância que 90 minutos poderiam conter. A cada cena, a cada acção, a cada palavra, a cada gesto, a cada suspiro – o máximo laconismo, a máxima intensidade. Arte da concisão + arte da dramaturgia. Cada coisa dura o que tem a durar, tal como cada homem faz o que tem que fazer. A poesia inscrita na acção. O Resto é quase sempre pose ou vontade de imposição, essa afectação.
Glória do classicismo, obviamente, mas repare-se na construção de "They drive by night" e meça-se os ditirambos normalmente aplicados ao cinema moderno:
- O uso da elipse, nunca escancarado como em tanto desse rotulado "cinema do tempo", antes impregnado nessa linha recta onde as curvas se vão mostrando e diluindo e destruindo. O tempo passa e passa na caleidoscópio serena de Walsh.
- Sem excepção, cada plano possui gente dentro, um motivo, uma razão de ser, jamais se limita a qualquer embelezamento ou estranhamento. O que não impede, antes pelo contrário, as fabulosas ambiências e a espessura atmosférica de cada espaço.
- A psicologia da personagem de Ida Lupino que é tratada como a fome de paixão de Bogart ou a fidelidade de Raft, e assim nos surge assustadora.
Filme de fidelidade. Arte de fidelidade.
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Para o vento e o mar
os homem e os seus problemas,
não são nada.
...
A lua estava baixa.
As árvores, silenciosas. . .
o ar, nebuloso.
O mar era profundo.
As rochas, negras.
A natureza estava indiferente
ao destino do homem.
É preciso ter-se caminhado muito, visto muito. É preciso ter-se falhado e acertado muito. Ter-se ido aos limites e esvaziar-se. Para recomeçar, com o fulgor dos grandes recomeços... Ter-se tido todas as certezas e abandonar-se aos mistérios dos tempos todos. Certo, "Anathan", última obra de Josef Von Sternberg, é um fim e é um princípio, de onde os meios nada podem e por isso mesmo tiveram papel essencial. Mestre da luz, do sumptuoso, do funesto e das demências carnívoras, do erotismo cortante, do seco fetichismo, da mise en scène voraz ou do fondu...aparece aqui, nesta estranha história de resistência e de abandono ao primitivismo e ao ser, despido de qualquer adorno ou utilidade que não a apreensão imediata, clara, concreta do que está em causa, do que está à frente. O que é tanto mais impressionante quando sabemos que tudo aqui é também a glória ao estúdio e às maquetes, em suma, ao falso. Que a natureza e os seus segredos insondáveis de sempre, que essa luz divina abarque e redimensione tudo a outra luz ainda, e que os corpos e os comportamentos nos surjam com o mais feroz dos vigores e de peso de verdade, de conhecimento ou de misticismo inerente, é o golpe de asa e o retirar do tapete. A poética cravada na ontologia, de todas coisas e do oficio de cineasta. Já nos tinham dito que "quanto mais artificial, mais real", e Sternberg ao usar de todo o decoro mas implacavelmente e vertiginosamente da máxima transparência (quase um livro de instruções ou um guia para principiantes) que alcança a máxima opacidade, diz-nos o que Godard nos disse de "Bitter Victory" - "“O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual é a importância disso quando olhamos as estrelas?”.
Também na sua assustadora lógica interna e reveladora, todas as cenas exteriores ao paraíso (tão cândido como infernal), ou seja, o nojo da guerra e do poder, são tratadas como elas merecem, varridas às três pancadas e assim cumprindo a sua função.
No centro da ilusão os corpos não enganam e a palavra obsessiva fere de morte, explodindo como centro a mais eterna das perguntas: o que somos ou podemos nós diante de toda a imensidão que nos engole.
O que valem as aparências diante da fatal e última nudez?
Que pode o cinema ou a criatividade ou o génio perante o mundo?
quarta-feira, 10 de agosto de 2011
"Les Savates du bon Dieu" inaugura-se pela vertigem de amor fou de um jovem meio delinquente, meio ignorante, punk ou estúpido ou tudo isso, que só vê uma mulher para amar e que se começa a perder pela contradição. Esse jovem leva tudo à frente – paredes, portas, patrão, justiça, ele mesmo – atira juras e promessas de eternidade e de fatalidade, e o filme começa fulminante entre o idílico, o instantâneo do para sempre, já o paraíso condenado. Vai chegar ao seu robin dos bosques, trilhar os caminhos do irracional e da febre, do esoterismo e do labirinto, vai-se perder muito. E o filme perde-se com ele.
Inaugura-se perigosamente.
Do melodrama cósmico, difuso e abrasador banhado a luz de graça e de plenitude suprema – toda a concentração de energias conhecidas a concorrerem e escorrerem para aqueles espaços e para aquele tempo – de Ray a Hitchcock, de Sirk a Cimino. Carax. Da liturgia musical que envolve e orquestra o relato – maravilhoso Philippe Sarde – para a inevitável pulsão suicida.
Amarelos que torram e abrem caminhos. Azuis de sexo e de crime e vermelhos de desejo. Castanhos e verdes e o resto de tudo, presença do universo em bruto.
A história também pode ser simples por isso mesmo complexa e cheia de zonas sombrias ou pintadas à emoção e ao calor e ao movimento de cada momento, o génio de Brisseau: o rapaz pensava amar o seu amor de infância e pelos caminhos da loucura descobre o seu verdadeiro amor, descobre-se e descobre a sujeira dos homens. Porventura...
De onde estão liminarmente ausentes romantismos de cordel, pieguices sentimentais ou estéticas, ideias feitas.
"Les Savates du bon Dieu" – cúmulo do romantismo.
A música vai-se tornando mais introspectiva, o ritmo e os sucedidos vão para os lados da aventura juvenil – que corrige todos os tão propalados anos 80 - onde não faltam o enviado ou o imaginado mais real do que a realidade, os enigmas a desbravar, o místico e o absurdo e o patético ainda do melodrama, a natureza incontrolável, leia-se: os céus o magnífico sol, as ervas e as flores, os ventos e as tempestades interiores, as árvores que abanam e quase partem, essa explosão pelo ecrã na sua energia até aí contida e logo por quem lá vive, choque das hecatombes das descobertas transformadoras. O mesmo, nunca mais.
Momentos supremos:
1. O jovem e a jovem talvez seu verdadeiro amor – ...sabe-se lá, nas cenas do tribunal lá volta a assombração – no topo de uma montanha a abraçarem-se, tão belo... esse profundo infinito, claridade, paz. Altos, baixos e as nuvens. Movimento de câmara para a direita onde seguimos somente a jovem, os raios da estrela que nos ilumina a violentar e a cegar a lente, a queimá-la, literalmente. Ela não aguenta tanta revelação e grita ao jovem. Ele está triste, ela fica triste. Mas começamos a entender, e eles também, que algo já mudou. Algo grande. Sem volta a dar.
2. O raio de sol que penetra a câmara vai-se repetir ainda mais cruamente ou cruelmente ou eroticamente quando esses dois fazem amor pela primeira vez no meio dos campos. Parece mais suave, mas a perspectiva, a duração, o perto e o longe e a forma como aparece e desaparece...o bailado enleado aos corpos, é a comunhão e testemunha do que ali aconteceu aquela vez. O halo que prenuncia, sem medo, o milagre. Um milagre.
Filme milagre de milagre resplandecente e dúbio também como os percursos Rossellinianos. Pelo meio... acontecimentos que não são, justamente, de filme, por isso a dificuldade da crença que só a ela se chega na abertura e na transcendência. Nada ali fora do mundo, tanta coisa fora da lógica. Resumindo, vida.
No final a calma, no final a certeza, no final a balada - "Merci, chama-se a música". Acreditamos? Acreditamos nos beijos e abraços de Ingrid Bergman e George Sanders?
Perigosamente.
Inaugura-se perigosamente.
Do melodrama cósmico, difuso e abrasador banhado a luz de graça e de plenitude suprema – toda a concentração de energias conhecidas a concorrerem e escorrerem para aqueles espaços e para aquele tempo – de Ray a Hitchcock, de Sirk a Cimino. Carax. Da liturgia musical que envolve e orquestra o relato – maravilhoso Philippe Sarde – para a inevitável pulsão suicida.
Amarelos que torram e abrem caminhos. Azuis de sexo e de crime e vermelhos de desejo. Castanhos e verdes e o resto de tudo, presença do universo em bruto.
A história também pode ser simples por isso mesmo complexa e cheia de zonas sombrias ou pintadas à emoção e ao calor e ao movimento de cada momento, o génio de Brisseau: o rapaz pensava amar o seu amor de infância e pelos caminhos da loucura descobre o seu verdadeiro amor, descobre-se e descobre a sujeira dos homens. Porventura...
De onde estão liminarmente ausentes romantismos de cordel, pieguices sentimentais ou estéticas, ideias feitas.
"Les Savates du bon Dieu" – cúmulo do romantismo.
A música vai-se tornando mais introspectiva, o ritmo e os sucedidos vão para os lados da aventura juvenil – que corrige todos os tão propalados anos 80 - onde não faltam o enviado ou o imaginado mais real do que a realidade, os enigmas a desbravar, o místico e o absurdo e o patético ainda do melodrama, a natureza incontrolável, leia-se: os céus o magnífico sol, as ervas e as flores, os ventos e as tempestades interiores, as árvores que abanam e quase partem, essa explosão pelo ecrã na sua energia até aí contida e logo por quem lá vive, choque das hecatombes das descobertas transformadoras. O mesmo, nunca mais.
Momentos supremos:
1. O jovem e a jovem talvez seu verdadeiro amor – ...sabe-se lá, nas cenas do tribunal lá volta a assombração – no topo de uma montanha a abraçarem-se, tão belo... esse profundo infinito, claridade, paz. Altos, baixos e as nuvens. Movimento de câmara para a direita onde seguimos somente a jovem, os raios da estrela que nos ilumina a violentar e a cegar a lente, a queimá-la, literalmente. Ela não aguenta tanta revelação e grita ao jovem. Ele está triste, ela fica triste. Mas começamos a entender, e eles também, que algo já mudou. Algo grande. Sem volta a dar.
2. O raio de sol que penetra a câmara vai-se repetir ainda mais cruamente ou cruelmente ou eroticamente quando esses dois fazem amor pela primeira vez no meio dos campos. Parece mais suave, mas a perspectiva, a duração, o perto e o longe e a forma como aparece e desaparece...o bailado enleado aos corpos, é a comunhão e testemunha do que ali aconteceu aquela vez. O halo que prenuncia, sem medo, o milagre. Um milagre.
Filme milagre de milagre resplandecente e dúbio também como os percursos Rossellinianos. Pelo meio... acontecimentos que não são, justamente, de filme, por isso a dificuldade da crença que só a ela se chega na abertura e na transcendência. Nada ali fora do mundo, tanta coisa fora da lógica. Resumindo, vida.
No final a calma, no final a certeza, no final a balada - "Merci, chama-se a música". Acreditamos? Acreditamos nos beijos e abraços de Ingrid Bergman e George Sanders?
Perigosamente.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
Wim Wenders, 1974
1º plano. Um avião nos céus cinzas e por essas gradações fora que deles se reconhecem, uma lenta panorâmica para a esquerda, um reenquadramento tosco, talvez.
Do varal de uma praia para debaixo dele, na areia, outro travelling anódino, profissionalmente insultuoso. 2º Plano.
Wenders, que faria o tão grande e comovente “Paris, Texas”, ainda sabia filmar mal, criança que cresceu com as telas e com a América, com a Itália ou com o Japão (as famílias) essa voragem e a voragem de quem muda muito de lugar e se fascina, se consome e se desprende.
Filmar mal, coisa preciosa e bonita tantas vezes.
“Alice in the Cities”. Ainda se sente a viagem e o tempo que destila. Ainda se reconhece o ar da vida e não somente a fetichização do postal, coisa de papelão, cinema-museu. Ainda pulsa solidão e bons sentimentos e não só consciência de cinema e pessoas (personagens) que sabem que são cinema e que no cinema estão. Ainda existe a carne, o encarnado que sua e palpita, um todo integro. Os materiais ainda explodem e denunciam a matéria de que são feitos, a fábrica, ainda longe as superfícies polidas e etéreas e perfumadas. A teorização e essa tal de metalinguagem herdada de Antonioni um dos seus heróis, a cinefilia ou os ritmos flow irrompiam ali de inocência ou de amor, o contrário da solenidade e da muita afectação posterior.
Último plano. O homem e a menina à janela do comboio, cabelos levados pela ventania, liberdade. O preto e branco caseiro. A câmara a subir e a ir-se embora. Para tão longe, tão tão humilde...