quarta-feira, 10 de agosto de 2011

"Les Savates du bon Dieu" inaugura-se pela vertigem de amor fou de um jovem meio delinquente, meio ignorante, punk ou estúpido ou tudo isso, que só vê uma mulher para amar e que se começa a perder pela contradição. Esse jovem leva tudo à frente – paredes, portas, patrão, justiça, ele mesmo – atira juras e promessas de eternidade e de fatalidade, e o filme começa fulminante entre o idílico, o instantâneo do para sempre, já o paraíso condenado. Vai chegar ao seu robin dos bosques, trilhar os caminhos do irracional e da febre, do esoterismo e do labirinto, vai-se perder muito. E o filme perde-se com ele.


Inaugura-se perigosamente.

Do melodrama cósmico, difuso e abrasador banhado a luz de graça e de plenitude suprema – toda a concentração de energias conhecidas a concorrerem e escorrerem para aqueles espaços e para aquele tempo – de Ray a Hitchcock, de Sirk a Cimino. Carax. Da liturgia musical que envolve e orquestra o relato – maravilhoso Philippe Sarde – para a inevitável pulsão suicida.

Amarelos que torram e abrem caminhos. Azuis de sexo e de crime e vermelhos de desejo. Castanhos e verdes e o resto de tudo, presença do universo em bruto.

A história também pode ser simples por isso mesmo complexa e cheia de zonas sombrias ou pintadas à emoção e ao calor e ao movimento de cada momento, o génio de Brisseau: o rapaz pensava amar o seu amor de infância e pelos caminhos da loucura descobre o seu verdadeiro amor, descobre-se e descobre a sujeira dos homens. Porventura...

De onde estão liminarmente ausentes romantismos de cordel, pieguices sentimentais ou estéticas, ideias feitas.

"Les Savates du bon Dieu" – cúmulo do romantismo.



A música vai-se tornando mais introspectiva, o ritmo e os sucedidos vão para os lados da aventura juvenil – que corrige todos os tão propalados anos 80 - onde não faltam o enviado ou o imaginado mais real do que a realidade, os enigmas a desbravar, o místico e o absurdo e o patético ainda do melodrama, a natureza incontrolável, leia-se: os céus o magnífico sol, as ervas e as flores, os ventos e as tempestades interiores, as árvores que abanam e quase partem, essa explosão pelo ecrã na sua energia até aí contida e logo por quem lá vive, choque das hecatombes das descobertas transformadoras. O mesmo, nunca mais.

Momentos supremos:

1. O jovem e a jovem talvez seu verdadeiro amor – ...sabe-se lá, nas cenas do tribunal lá volta a assombração – no topo de uma montanha a abraçarem-se, tão belo... esse profundo infinito, claridade, paz. Altos, baixos e as nuvens. Movimento de câmara para a direita onde seguimos somente a jovem, os raios da estrela que nos ilumina a violentar e a cegar a lente, a queimá-la, literalmente. Ela não aguenta tanta revelação e grita ao jovem. Ele está triste, ela fica triste. Mas começamos a entender, e eles também, que algo já mudou. Algo grande. Sem volta a dar.

2. O raio de sol que penetra a câmara vai-se repetir ainda mais cruamente ou cruelmente ou eroticamente quando esses dois fazem amor pela primeira vez no meio dos campos. Parece mais suave, mas a perspectiva, a duração, o perto e o longe e a forma como aparece e desaparece...o bailado enleado aos corpos, é a comunhão e testemunha do que ali aconteceu aquela vez. O halo que prenuncia, sem medo, o milagre. Um milagre.

Filme milagre de milagre resplandecente e dúbio também como os percursos Rossellinianos. Pelo meio... acontecimentos que não são, justamente, de filme, por isso a dificuldade da crença que só a ela se chega na abertura e na transcendência. Nada ali fora do mundo, tanta coisa fora da lógica. Resumindo, vida.

No final a calma, no final a certeza, no final a balada - "Merci, chama-se a música". Acreditamos? Acreditamos nos beijos e abraços de Ingrid Bergman e George Sanders?

Perigosamente.

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