segunda-feira, 23 de abril de 2012

O poder do lápis azul: Cinemateca Portuguesa

Oi Zé,

Depois de censurarem a folha sobre o Ferrei, arvorados na autoridadezinha balofa dos bons costumes - o que não aceito mas até compreendo (conhecendo a sexualidade aldrabada do poder) – , impediram agora a saída do texto sobre o “Land and Freedom” do Ken Loach. Fiquei a saber que na Cinemateca, onde tantas vezes sonhámos a Liberdade, não se pode gostar violentamente do Ferreri nem detestar com fundamento o Ken Loach. Há bocado perguntei na bilheteira ao motorista da excelsa Dr. Maria João Seixas porque não saiu a folha. “Uma falha informática”- disse ele, tão bem catequizado para esconder a censura.

Mas não tomes a parte pelo todo, há grandes pessoas na cinemateca (gostei muito de conhecer a Rita Azevedo Gomes, o Nuno Rodrigues, a Antónia, a Sofia, a Joana Ascensão, o João Pedro Bénard… os outros já conhecia para o melhor e para o pior…). É pena os cargos apagarem amiúde gente do caraças…Esta direcção da Maria João Seixas- que se tivesse um pingo de vergonha na cara já teria pedido a demissão- escoltada por um Zé Manel ambíguo (é capaz de falar 10 horas sobre a liberdade do Renoir e depois censurar um texto em 10 segundos), transforma a cinemateca numa mordomia de “empty uniforms” que tresanda a mofo, sobretudo quando se faz do vácuo o melhor pasto. O clima aqui é irrespirável, em surdina ouvem-se “coisas” mas só em surdina, é impossível a liberdade de expressão, a menos que se mantenha o medo, a hipocrisia e a distância de segurança em relação aos filmes (um académico folgado ou um bom rapaz da comunicação social dão-se aqui lindamente, “badamerdas” como nós dificilmente).

Enfim, envio-te as 2 novas folhas limpa cus de estagiários (a primeira sobre o Loach, a segunda uma folha de demissão ao som de um “maravilhoso” Foxtrot), faz o teu juízo e continua a escrever. Fascistas como a Maria João Seixas também se abatem.

Olha, soube agora que fui despedido. Avisa a Marta que podemos começar as filmagens mais cedo.

Um abraço,

Mário

...................


CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA
CINEASTAS, DO NOSSO TEMPO
20 de Abril de 2012


LAND AND FREEDOM/ 1995

(Terra e Liberdade)

Um filme de Ken Loach
 
Realização: Ken Loach/ Argumento: Jim Allen Fotografia: Barry Acroyd/ Música: George Fenton/ Montagem: Jonathan Morris/ Interpretação: Ian Hart (David Carr), Rosana Pastor (Blanca), Frédéric Pierrot (Bernard Goujon), Tom Gilroy (Lawrence), Icíar Bollaín (Maite), Marc Martinez (Juan Vidal), Suzanne Maddock (Kim), entre outros.

Produção Rebecca O´Brien (Reino Unido, Espanha, Alemanha e Itália, 1995) / Cópia: 35 mm, colorida, versão original em inglês e espanhol com legendas em português/ Duração: 109 minutos/ Estreia em Portugal: 31 de Maio de 1996/ Primeira exibição na Cinemateca.


“Mostra-me a obra, não me mostres o cartão do partido.”

Brecht

“Se tens uma mensagem para pôr num filme, envia um telegrama, não faças um filme.”

Louis B. Mayer

Bem-vindos à Terra e Liberdade de Ken Loach…o putativo realizador é daqueles que se esconde na mensagem…nas melhores intenções…no tema…podia ser o preço da manteiga no Reino Unido…calhou ser a guerra civil espanhola…convidou Jim Allen para escrever o argumento…baseou-se na “Homenagem à Catalunha” de Orwell…o escritor que integrara uma milícia do P.O.U.M. (Partido Operário de Unificação Marxista)… Orwell atribuiu a derrota da República Espanhola, democraticamente eleita, ao “pesadelo comunista”…o exército organizado que massacrou o P.O.U.M.… os trotskystas…os anarco-sindicalistas… outras facções à esquerda da esquerda…consideradas perigosas e liquidadas sob as ordens exteriores de Estaline… o P.C.E. inventou a teoria da “conspiração fascista” ou do golpe “anarco-trotskista”…vemos os ataques dos comunistas contra os anarquistas na Barcelona de 1937…os profissionais contra os amadores…se estás à esquerda do P.C. fascista és… Franco era apoiado por Mussollini e Hitler…indirectamente era ajudado por Estaline, aliado à época da Alemanha e da Itália…as milícias anarcas tinham parcos apoios das brigadas vermelhas e dos mexicanos… um cenário político ambíguo…ainda as divisões internas entre quem manda e quem obedece...as clivagens intestinas na facção republicana… rumores de que o General Pozas impediu o apoio da artilharia… visando o maior número de mortos milicianos… intertítulos explicativos…passemos ao filme…. começa com a morte de David Carr…mais tarde Kim, neta de David, abre uma caixa…encontra cartas de David à namorada, fotografias e recortes de jornal…está-se mesmo a ver…longo flash-back…David partiu para Espanha…era filiado no P.C. de Liverpool…tinha de combater pela República…segue-se o itinerário político de David…cinematograficamente linear e esquemático…o vai-e-vem passado presente…pois há que ilustrar as fotografias e títulos dos jornais…o espectador tem de perceber isso…e a voz off de chico-esperto…dá sempre jeito (vide “Tabu” de Miguel Gomes)…é incrível a preguiça de Loach…as imagens vão ilustrando o que se diz… não vá o espectador perder-se num cenário de guerra entre imagens e sons…o fio condutor cronológico… a narrativa igualmente linear… bem organizadinha….sem rupturas…sem fragmentações…a história da carochinha…  típica de um burguês inglês (filiado no partido comunista) que vai fazer turismo histórico a Espanha…mostrar factos em vez de os montar… parte de documentos sem os questionar…a preocupação é sempre decorativa…longe os travellings-interrogação sobre a memória de Resnais em “La Guerre est Fini” e noutros… Kim aceita acriticamente tudo o que se passou…até leva à boca uma bolachinha…tal é o interesse… há um ponto de vista que o realizador quer impor e ilustrar à força…a febre arquivista do início do filme é só uma caução…uma desculpa…um álibi…o que Loach faz, no filme, é dar-nos um pretenso realismo socialista sem real… forçar uma marca “realista” sem real… autenticar com truques arquivistas aquilo que não se viveu…impedir o espectador de questionar a verdade do filme…o estalinista Ken Loach…a mim não me enganou…vemos imagens de actualidades revolucionárias projectadas no ecrã…um professor…estes filmes de propaganda têm sempre um lado didáctico…imagens do massacre dos anarco-sindicalistas…discursata do professor e palminhas revolucionárias…longe o poder e força da palavra de qualquer filme humilde do “anarquista de direita” Frank Capra…tudo incrivelmente estereotipado em Loach… a musiquinha…a ganga revolucionária…os ideais com as emoções instruídas… os diálogos militantes…o banal naturalismo e a banal estetização… as divisões só são captadas à superfície por discussões intermináveis…temáticas… as tais mensagens para pombos politótólogos levarem ao júri…não são dadas pelas formas do cinema…parecem fóruns universitários com fatos de época… a justiça…a revolução…o melhor sistema…o menos mau…o salário…Bakunine, Badiou, Trotsky, William Morris…a esquerda reformista…a esquerda radical…o debate infindável sobre a colectivização…15 minutos a discutir …as contradições…as brechas ideológicas…um registo documental forçado…a câmara a “fotografar” diálogos aleatoriamente…um truque para parecer “realista”…a trampa de um realismo pornográfico da adivinhação… recriado e recreativo…o filme é como uma vaca que vai parir…ou se assiste bem ou morre a vaca… longe as fortes dialécticas da “Torre Bela” (1977) de Thomas Harlan…a resistência e a desistência…a desistência e a resistência…a câmara que faz História….a câmara de Harlan que já rendeu uma tese de doutoramento!… Louch gosta mais de bandeiras e slogans… Arte cinematográfica da República!…o cinema torna-se propaganda de queque… Loach cai cinematograficamente nos próprios empecilhos políticos que denuncia… vende a ideia de muitos políticos e gajos do meio do cinema… entreguem-se sob o comando do exército profissional… isso não significa perder conquistas…o cinema de Louch torna-se uma máquina de perseguição e aniquilação de dissidentes…não basta uma “poética esquerdista” fácil que se assoa à gravatinha do abjecto realismo inglês….Loach quer agradar aos júris nostálgicos…cansados de ver o Maio 68 no canal história… um interesse que se esgota numa aula de ciência política…um exame académico qualquer… coroado com uma palma de ouro e outras mil nas costas… a emancipação do cinema britânico contemporâneo…só um “génio” como Philippe Pilard acredita nisso… o entusiasmo revolucionário fá-lo tropeçar em todos os clichés de Loach… o desempregado David…filiado no partido comunista… sem saber que combaterá contra os próprios comunistas… o lenço vermelho de Blanca…um punhado de terra vermelha…o funeral da revolução e passagem de testemunho…“os filmes morrem quando se tornam simples veículos de mensagens” (Orson Welles)…a cinematograficamente pirosa morte de Blanca… a corrida disparatada…a queda absurda em câmara lenta…arrasa qualquer generosidade…o lenço de Blanca ficará com David…carrega a terra da Catalunha…o souvenir-fetichista de uma revolução falhada…os punhos a largar terra para o caixão de Blanca…o falso-raccord com o funeral de David…o poema de William Morris…a terra de Blanca e David…a jovem acaba com o punho em riste… a identificação de Blanca com a neta de David….outra vez o lenço vermelho…podia ser o barrete do Tocha…Fedorov, um crítico pouco conhecido, avançou a hipótese de a jovem beber uma coca-cola em Anfield Road…o que um crítico escreve vale mais que as tábuas de Moisés…não nos atrevemos a questioná-lo… o treino das milícias…o comando militar da esquerda direita e direita esquerda…lança as directrizes políticas…nada óbvio…a oposição entre poder militar organizado e impreparação das milícias… os encontros quase sempre mal filmados… a proximidade pornográfica…o distintivo do citado “realismo inglês”….veja-se David atingido…as caras feias em grande plano…quase batem com o nariz na lente… antes um dos poucos momentos fortes do filme…as milícias cantam “a internacional” com o som de petardos fora de campo…já em Barcelona não falta a cena de amorzinho numa pensãozita…seguida de mais um discussão revolucionária…reivindicações feministas…mulheres da linha de trás para a linha da frente…David votou nas milícias…juntou-se aos estalinistas…que acusavam os anarquistas de fascistas…uma salada russa…uma comerciante faz o seu número…”matem os fascistas em vez de se matarem uns aos outros”…verdade…verdadinha… David sente-se traído pelos comunistas…rasga o cartão do partido…volta para o P.A.O.M….reconcilia-se com Blanca…nada previsível…o partido afinal não presta…é vil e corrupto…viva o amor…ay carmela e tirinhos…vemos um actor que lembra o José Calado…grande dissidência na crítica cinematográfica…já teria sido transferido para o Bétis de Sevilha?...novos truques…os belíssimos fades a negro para dar a passagem do tempo nas trincheiras… a visão histórica redutora de Loach…como se o passado fosse um tubo de ensaio para evitar erros no futuro…nada garante que a própria democracia daqui a 100 anos não seja uma coisa estranhíssima…anacrónica…mais uma vez a falta de distância crítica…não sabemos o que aconteceria se tivesse triunfado a facção comunista…ou singrado a República Socialista das ambiguidades…provavelmente seria, pela experiência noutros países, uma ditadura de esquerda…um foco estalinista…Loach ignora isso…vai para o filme cheio de certezas…o ”soutien” político de Loach…tem no Sam Wood de “Por Quem os Sinos Dobram” um parceiro medíocre à altura… Loach não percebeu que a luta de classes é uma luta de imagens e sons…que “a História é um processo de montagem cinematográfica” (Georges Duby)…um confronto de visões…imagens…cortes…blocos…contra-campos…dialécticas... dissociações de som e imagem…”não faças um filme político, faz politicamente um filme” (Godard)… a História faz-se com o sangue das ideias através da violência do cinema...Loach está a milhas do realismo crítico de  Francesco Rosi…da interpretação histórica e sentido plástico sem cair no ilustrativo ou decorativo… a milhas da ironia do combate político de Renoir na “Marselhesa”…a tragédia de ”todo o mundo ter as suas razões”…mais complexa e concreta…a rebentar com todos os sistemas…a milhas da força bruta das imagens de Montagu, Malraux, Henri-Cartier Bresson em Espanha…ou de Joris Ivens nos movimentos de resistência por todo o mundo…a milhas do confronto directo e empenho político de Robert Kramer…que filmava uma revolução como Flaherty uma tempestade no mar…a milhas do artifício histórico (des)construído e (des)montado por Oliveira no “Non”…dos paradoxos de uma nação que só se transcende morrendo…a árvore de “Non” só se atira ao céu se lhe cortarem as raízes…a milhas da dignidade da câmara de Pedro Costa ao serviço do homem … a milhas das alegorias políticas de Pasolini, Glauber Rocha, Ruiz… nas suas contradições, ambiguidades e movimentos…a milhas da montagem dialéctica dentro dos planos nos blocos graníticos de Straub e Huillet…a milhas da ousadia de Rossellini em “Viva Itália”…um cinema que abraçava o homem Garibaldi…na força do “juntem-se a mim ou combatam contra mim”…ou na fraqueza da traição e do exílio…a milhas de Monicelli ou Olmi que nunca filmaram pessoas como adereços (vejam os negros a servir as férias em África do “comité central” liderado por Miguel Gomes)… a milhas dos choques de imagens de qualquer actualidade de propaganda russa…para não falar dos mestres… a milhas da “Guernica” de Picasso…a milhas dos “Fuzilamentos” de Goya…quadro cinematográfico que vale mais que a obra completa do Loach…execução e grito triunfal da liberdade…podem fuzilar tudo menos a luz…o homem dá o peito às balas…a luz projecta-se no rebelde…um morre…outro virá…e outro…e outro…um dia acabarão as balas e ficará só a luz…nada que a modinha esquerdista e maniqueísmo à priori de Louch possa sentir… incapaz de fazer da divisão política uma divisão cinematográfica…incapaz de realizar a ambiguidade de um acontecimento histórico…um filme de esquerda com formas burguesas só se pode dar mal…zero em risco…zero em atrevimento…zero em confronto…zero em distância crítica…nulidade cinematográfica…esqueceu a forma e o poder incomensurável de uma câmara para mudar o mundo… refugia-se num vago optimismo esquerdista…“as revoluções são contagiosas”…os piolhos também…Ken Loach “pasará”…

Mário Fernandes


....................


CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA
MATINÉS DA CINEMATECA
23 de Abril de 2012


FOXTROT/ 1975
(O Outro Lado do Paraíso)

Um filme de Arturo Ripstein

Realização: Arturo Ripstein/ Argumento: Arturo Ripstein, José Emilio Pacheco, H.A.L. Craig /Fotografia: Alex Phillips/ Música: Pete Rugolo/ Montagem: Peter Zinner e Rafael Castanedo/ Interpretação: Peter O'Toole (Lívio Milescu), Charlotte Rampling (Júlia), Max von Sydow (Larsen), Jorge Luke (Eusébio), Helena Rojo (Alexandra), Claudio Brook (Paul), Max Kerlow (capitão Carnú), Christa Walter (Gertrude), Mario Castillón Bracho (marinheiro), Anne Porterfield (Marianna), Anaís de Melo, entre outros.

Produção Conacine (México, 1975) e Gerald Green (Inglaterra e Suiça, 1975) / Cópia: 35 mm, colorida, versão original em inglês com legendas em português/ Duração: 89 minutos/ Estreia em Portugal: 27 de Abril de 1977/ Primeira exibição na Cinemateca.


Arturo Ripstein foi assistente de realização de Buñuel no “Anjo Exterminador” e no “El”… achava a câmara “uma coisa linda”…um dia decidiu ser realizador…”Foxtrot” foi o seu filme mais ambicioso…um grande orçamento… actores finórios europeus…tentar agradar ao público…fazer uma obra de arte…filmou no cabo San Lucas e nos estúdios Churubusco…nos estúdios o ambiente foi bom…no cabo foi o cabo dos trabalhos… O´Toole não suportava o calor abrasador de dia…louve-se o masoquismo do “Lawrence da Arábia”… e depois o frio de rachar à noite… adoeceu antes da rodagem…não se pôde preparar convenientemente…o realizador e os actores também nunca se encontraram no deserto dos leões…onde supostamente deveriam ter começado as filmagens…mais uma rodagem acidentada… O´Toole e Charlotte acharam sempre que tinham uma patente mais alta do que a do jovem realizador… às aranhas com uma mega-produção…Ripstein desculpa-se… as queixinhas comuns…a música desafina com a barriguinha vazia…e o realizador queria tanto afiná-la…como nos clássicos americanos de Fritz Lang…segundo ele, houve pouco dinheiro… recebeu da “conacine” 3 milhões…os censores não acharam piada a uma produtora formada por aglutinação e tiraram-lhe o subsídio de alimentação…o depauperado herr direktor não faz milagres…nem as extraordinárias bilheteiras na Europa…o fluxo sanguíneo destes filmes é o desembolso… mas perdoe-se o mau realizador pela boa intenção com que filma: “atraiu-me o isolamento da civilização e a possibilidade de sobreviver nessas circunstâncias, gostava que fossem anti-Robinson Crusoé. Robinson Crusoé adapta a sua circunstância à natureza, e estas personagens pretendiam adaptar a natureza à sua circunstância”… um realizador mais inteligente do que o filme… “Foxtrot” tem o tempo suficiente para toda a classe de actividades e parvoíces…comer crepes Richelieu…amanhar um cocktail Shirley Temple…outras banalidades irónicas…ver o fantasmeca da ex-mulher com o som dos sinos na cabeça do conde… Lívio leva um abanão…regressa à tenda tremendo…a aparição de Nossa Senhora escandaliza o conde…está habituado à aristocracia chique… a modinha dos fantasmas que Apitchapong institui hoje… filmar um plano que alterará o curso da história do cinema…bater no Lívio (o que não significa bater na Lívia)…uma sesta na praia…sem ocultar as superfícies planetárias… depois a esfera de interesse desliza para a carne humana… exaltar o marmelanço…Lívio e Júlia bailam o “foxtrot”…outras beldades também bailam… as luzes artificiais…elas entregam-se mais facilmente…Eusébio e Larsen ficam-se pelo “fodetrot”…o ”membrum virile” notavelmente flácido… o furor rebelde de um candidato a cineasta…os bailaricos… as orgias…os lábios decadentes…o garanhão Max Von Sydow (os cinéfilos atentos devem conhecê-lo de Bergman)… o garbo de Anaís de Melo…mostra as “maminhas” ao melífluo Larsen…uma caça absurda às focas… corta-se do repasto de Júlia e Lívio para as focas em pose… um bom corte… parvoíces como a corrida de caranguejos… as projecções de filmes caseiros e não só…Charlotte bate umas “chapas”…também filma em super 8…o fantasma da ex-mulher aparece projectado…tudo ao serviço da mixórdia… Eusébio, além de criado, é projeccionista… outros parvoíces de referência cinéfila barata…o risinho ante os “gags” de Laurel e Hardy…até um “enxerto” do “Testamento do Dr. Mabuse” de Fritz Lang…e tão longe a cadência musical da montagem de Fritz Lang ou Hitchcock… as piscadelas de olho a Buñuel…as citações superficiais… as pernocas junto ao mar de “La Joven”… as mãos nos seios de “Un Chien Andalou”…o “puro” enrolado nas pernas…quando se fala em partilhar tudo há logo um corte denunciadíssimo para a mão do Conde no braço de Júlia…já sabemos que todos vão lutar pela mesma mulher… a óbvia metáfora do chapéu do conde a circular… onde Buñuel oculta, Ripstein exibe até ao aborrecimento…onde Buñuel conjectura, Ripstein expõe sem margem para dúvidas…onde Buñuel goza com o espectador, Ripstein exporta o “produto”… onde a câmara de Buñuel substantiva, a de Ripstein só adjectiva… Buñuel é um vândalo, Ripstein um menino de coro… a câmara um brinquedo… Eusébio chega à ilha sem se barbear…é chamado à atenção…barbeia-se para conservar as belas aparências… depois Ripstein dá 3 pontos de vista diferentes (sem interesse) de Eusébio a cavar um buraco diante dos patrões… muito moderno…o espectador que escolha… e a câmara ora “embeleza” macacadas…ora torna-se indiferente e só regista diálogos… a découpage “pobre” e académica… a luz intermitente para dar ares de mistério… e vejam o decoro dos fantasmas…os ”carregados de passado” muito apresentáveis…diz-me mais um vinco na cara estragada do Bogart… para o aspecto espectral até vivem bem… aquela abstinência forçada…estou tão apaixonado Astérix…hoje só comi um javali… Ripstein capta tudo sem fé…é só efeitos e “fait divers”…o conde continua a ser afectado pelo passado…as bizarrias impedem-no de vestir bem e comer ainda melhor…uma manhã um barco negro atraca na ilha…os passageiros são a ex-mulher Alexandra…actualmente mulher-a-noites de Paul…dizem que foram convidados por Lívio através de uma mensagem de rádio…Lívio diz que não tem rádio…tudo se resolve numa orgia…atracções sexuais e copázios…que preocupações enquanto há mulherio e licor?... paralelamente Larsen promove uma orgia sangrenta…mata todos os pássaros e focas da ilha…faz raccord com a espingarda que Paul oferece a Lívio na despedida…outras caçadas mais humanas…mais tarde o navio negro reaparece misteriosamente no horizonte…está povoado de ratos…a peste…há que deitar fogo…fazer explodir o barco…justificar o “budget”…a câmara, debalde, inespera sempre o esperado…as sérias incongruências estranhas… supostamente para quebrar o ambiente sereno e repastado… as fantasias anedóticas do conde Lívio…todos os exilados são condes…“a doença de Lívio é mais um dos seus luxos”… juntam-se as peneiras imbecis de Júlia…diz-se violada pelo lascivo Larsen…há que indagar…os maus instintos dos homens…Eusébio pactua com Larsen contra o parzito…a dor de corno faz alianças… a pupila cativa do meu inimigo… a tensão em montagem paralela entre Lívio e Júlia…entre Henrique Larsen e Eusébio da Silva… rebolanço e facadas… se o ridículo pagasse imposto… o barco providência não vem… “já não temos a ilha, é a ilha que nos tem a nós” (Larsen)…a peste é a peste dos homens…é preciso racionar a carne e os charutos… e que Deus nos assista se nos acaba o whisky… as distinções de classe esbatem-se…os “4 mosquiteiros” estão num ver-se-te-avias….Eusébio senta-se à mesa dos patrões…o sonho de qualquer criado… a “mise en scène” de Ripstein vai partindo da fuga para o encerro…dos exteriores da bela ilha para a claustrofobia… as pessoas tão apertadas no espaço…como viver sem cometer um assassinato?... da comodidade à escala azul do céu e do mar para o vermelho kitsch da tenda com objectos “art déco”… mais tarde Larsen fere Eusébio…Júlia caminha silenciosamente para o mar…Larsen encontra o cadáver e culpa Eusébio da morte de Júlia… o único momento forte do filme…Júlia com um belo vestido comprido branco…morta junto ao mar…vemos os troncos…as ondas a morrer na praia…em profundidade a tenda vermelha e o caminho para nenhures…um barco ancorado em terra…O´Toole condenado a ficar… o plano subjectivo de Lívio…tenta fazer alguma coisa…é tarde…já está K.O.…avia Eusébio…mais metodicamente Larsen…regressa à tenda assombrada… o único ser vivo na desolação da ilha… ”foxtrot” na banda de som…evidente… a rimar com a música “standard” anos 30 ao longo do filme…há alguma ironia de Ripstein em tudo isto…o problema é que nunca floresce e dá picos…o vinho é tão misturado…tão morto…nem aquece nem arrefece…o “pastiche” sem interesse de monta e a tirania do kitsch impõem-se sempre ao filme…em primeiríssimo plano e sem profundidade…e o artificialismo buscado não desculpa tudo…a maquilhagem também não cauciona tudo…os mortos não têm necessidades estéticas… Ripstein vai-se divertindo com as macacadas das personagens…nunca se comove verdadeiramente com nada…usa a distância de segurança estética…a fotografia impermeável aos afectos…este exibicionismo kitsch foi o livre-trânsito para o filme viajar por meio mundo…até Roger Corman comprou os direitos de exibição de “Foxtrot” no seu país: “Precisava de dinheiro e o kitsch vende-se sempre bem: para um público embrutecido e parvo, e para os críticos, que deliram com caldeiradas”…provavelmente sem o suspeitarem, Nicolau, Gomes e Esteves têm em Ripstein um grande mestre… este filme é m**** seca burguesa… entre o kitch e o aborrecimento em vão um passinho de “Foxtrot”…

Ripstein não é grande espingarda…há, no entanto, um interessante filme amador de Rupitein…”No coração da Liberdade” (1968)… pouca gente conhece…não aparece nas mais rigorosas filmografias… por sorte vi-o num cine-clube em Barcelona…apresentado por um investigador mexicano…é a história de um rapazito que escreve sobre filmes num jornal mexicano…um actor amador chamado Miguel Puñetas…um apelido que nem Salazar ousaria censurar…um dia o rapazito é censurado por escrever entusiasticamente sobre um filme de Buñuel…a direcção do jornal, que facilitava o visionamento de filmes proibidos, ficou escandalizada com o texto…um deslize moral…acusa-o de conduta desonrosa…”não respeita as expectativas dos leitores”…”há um paradigma institucional”…”vais sofrer as consequências”…”o texto é perigosamente pessoal e indecoroso”…reuniões e telefonemas…de escritório em escritório…o jovem resolve demitir-se…o filme termina com um discurso (não tão bom como o de Charles Laughton quando sonhava “que cada um pudesse dizer esta terra é minha”)…tomei nota e vou transcrevê-lo para aguçar o apetite do cinéfilo libertino:

“Excrementíssimos Senhores,

Aqui apresento a minha demissão. Vocês continuarão a narrativa jornalística dos dias e com o vosso bafiento moralismo, que atira para as fogueiras da intolerância tudo o que foge à cartilha. Nestes tempos em que a liberdade é ameaçada de todas as formas, a escrita podia ser uma arma como o cinema. Para quê padronizá-la pelo catecismo institucional? A vossa narrativa não me interessa. Banaliza o mal, neutraliza o belo, rasura a memória, branqueia crimes contra a liberdade de expressão. A vossa retórica da neutralidade jornalística como destino colectivo desvaloriza qualquer liberdade individual. E a única violência do meu texto era só uma: a da Liberdade individual. Convosco eu não posso ficar. Vocês seleccionam os textos de acordo com critérios subjugados a interesses restritos e mesquinhos. É nojento o vosso compadrio, escandalosa a vossa hipocrisia. Como se pode aceitar um filme sujo e não um texto sujo sobre um filme sujo? Não posso estar num jornal que não respeita a liberdade de expressão. Se os filmes são projectados livremente, os textos também devem ser escritos livremente. Um filme porco terá um texto porco, um filme político terá um texto político, um filme romântico terá um texto romântico, um filme neutro terá um texto neutro. Se um filme tiver tudo, um texto terá tudo. E só quem vê pode decidir isso, individualmente. Os textos são escritos por homens, com os seus defeitos e virtudes, nunca por instituições. Para censurar textos é preciso censurar primeiro os filmes. Quem censura a visão de quem vê, também deve censurar a visão de quem filma. Mas felizmente os filmes são mais livres do que muitos homens e instituições. Amarei os filmes, nunca o lápis azul. Voltaire, um aventureiro da liberdade, escreveu um dia: “Posso não concordar com o que dizes mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer”. Eu não sei traduzir as minhas emoções para jornalês. Nesse aspecto, serei sempre mendigo e altivo, sempre pessoal e inflamável. E não confundo pessoas com cargos. Agradeço a todas as pessoas que me trataram muito bem, mas fica-me uma ideia amarga: há gente mais preocupada com o decoro do seu cargo do que com o mundo na sua mais alta expressão – o cinema. Deixo uma pergunta para quem fica: querem pessoas livres ou braços institucionais?”

Agora vou ali ver uns pinheiros…
 
Mário Fernandes

Sem comentários:

Enviar um comentário