terça-feira, 17 de abril de 2012



No cinema como na vida existem os consensos imediatos, dos quais com a experiência tenho vindo a desconfiar de tais coros e globais adesões. E depois os objectos, as acções, as práticas absolutamente desprotegidas, nuas, sinceras. Por outras palavras: os falsos aconchegos que nos passam as mãos pelas costas e nos dizem que a vida e os sonhos e a fama são possíveis se lutarmos como lutam as lindas marionetas das telenovelas do horário nobre. E, contra toda esta areia toldante, algo que de quando em vez nos abre feridas profundas em vez de temporariamente as cicatrizar; verdades superiores como murros no estômago que nos escancaram a mente, o cérebro e os olhos para toda a lixeira de uma certa sociedade, de uma certa civilização, de uma certa mentira larga. Se quisermos e porque por aqui já se sabe do que costumo falar, é a discrepância entre o sensacionalismo televisivo ou jornalístico e logo comunicador, e a arte verdadeiramente arte, o cinema verdadeiramente cinema, que, antes de tudo, é questão de formas como princípio de mundo, questão de formas que medeiam qualquer sentimento e o possibilitam de todas as explosões possíveis. Lutas e distâncias entre imagens-sons-respiração-morte.

Se vier então agora pronunciar-me acerca de Vincent Gallo, dizer que esse músico, manequim, pintor, provocador profissional, etc., é também um dos cineastas contemporâneos que mais me interessa, e que fez talvez aquele filme que este milénio mais me tem obcecado e perseguido e espantado, espero não acometer de provocação contra nada – caso contrário a estupidez em vez de diminuir desde os felizmente longínquos 2003, ainda aumentou. Passou-se então quase uma década sobre uma tal estreia e um tal choque no festival de Cannes, tempo que julgo necessário para os bons olhos estarem limpos, os anedotários terem findado e os arremessos pessoais se denunciarem no seu ridículo reacionarismo.

“The Brown Bunny” começa logo por demarcar-se de qualquer corrente estética e visão do mundo que os anos dois mil nos trouxeram, correntes e visões essas que foram boas e más, ou seja, nada a ver com os tempos distendidos de “instalação” e consequentes estranhamentos exóticos de ultra novidades como Apichatpong Weerasethakul ou Raya Martin. Evidentemente longe do Kitsch admirativo de “nouvelle vague´s” ou liberdades à João César Monteiro, tais como Christophe Honoré ou João Nicolau. Tão oposto ao feito moderno e à fórmula dos últimos Bennings como aos narcisismos frigidos de um Boris Lehman. Quanto às “performances” tipo Peter Greenaway ou Hugo Vieira da Silva, mesmo os Warhol´s wanna be, sem mais conversas.

Grupos, modas, tendências, coutadas – Gallo demite-se de todas essas t-shirts.
O gesto e a construção de Gallo é a todo o momento raro e inaudito, mas se se pode dizer que no percurso traçado não se está atado a qualquer credo ou linguagem, que cada plano vale por si como peça autónoma, não há como não admitir que tudo ali é também perfeitamente clássico, de campo a contra campo. A um tempo sem raccords que não sejam os mentais e funcionando como um corpo e récito dorido, magoado, tantas vezes imerso numa corrosiva patologia que tanto parece advir do ar daquele tempo como de imortalidades.
A cena Inicial. Longos, silenciosos e austeros planos sobre uma pista de motos em competição. Longos mas de uma justeza de duração que se sente pelas permeabilidades várias aos sons do mundo e aos sons nascentes de uma sensibilidade actuante e interior; uma tateabilidade imagética extremamente delicada que parece desvanecer-se na sua abstração e ao mesmo tempo uma fisicalidade palpável, suada e urgente. E as distâncias e motes estéticos ficam logo aí lançados, cinco minutos depois já Gallo guardou a moto na sua negra carrinha, se pôs à estrada e contou à primeira das suas várias tentações que perdeu a corrida, o que parece já ser habitual, sina daqueles olhos imensamente tristes, imensamente perdidos.
Gesto de tábua rasa e um outono de Sam Peckinpah, como os homens dele pelas vias alternativas e sombrias das existências à sociedade ilícitas e suicidárias caminhavam. Se por um lado parece não se passar grande coisa, e isso é belo, nessa démarche ou via-sacra - jamais perscrutaremos certezas feitas no território do rosto de Vincent - estando esta expressão do mundo que passa próxima da influência confessada das telas minimalistas e perto do etéreo de Robert Ryman, ou, e aqui já leio eu, na difusão nostálgica e solitária das ambiências e vivências de J. D. Salinger, isto é, algo profundamente americano, algo profundamente universal. Micro movimentos, micro sensações, micro percepções que se podem volver a dado instante convulsões lácteas que a câmara detecta ao virar de uma curva.
Por outro, continuo, passa-se imensa coisa, imensa, desde o perdedor que atravessa essa américa com as suas paisagens desencantadas e sem grandes ilusões ilusórias; esses regressos à infância feitos de coelhos verdadeiros e de chocolate; engates envergonhados e mulheres em cada abrigo; arrependimentos e garrafas vermelhas de Coca-Cola; reencontros de vizinhança; e como é possível não ser grande coisa uma ida de moto por um deserto de sal até ao fim do mundo?;  beijar e ser beijado em fogosas ousadias; (deem-me aquela troca de olhares entre ele e uma das loiras num apeadeiro de caminho e não vos peço, Deuses ou loosers, mais cinema); flashbacks bucólicos e de fugazes porque horríficos lirismos; escritas de cartinhas a belas e colocadas nas suas portas; confrontos com a traição da única mulher que se amou; confrontos com a morte de um filho; tristezas sem nome; sexo oral em jeito de requiem ou de inelutável luto…
…Ou então Vincent decide continuar na estrada onde o Kowalski de “Vanishing Point” ou o John Wintergreen de “Electra Glide in Blue” se decidiram apagar…ou então apaga-se quando o filme apaga a luz e esse ondulante movimento fecha…aqui, sem certezas.
E depois…interessa o ar que lhe cai na cabeça. Que lhe entra ouvidos, nariz, boca, olhos adentro e lhe fulmina de oxigénio que é vida. Uma claridade ou escuros reveladores. Tempo a passar e a destruir na pele e nas veias. O corpo e a cabeça que tremem e estalam sobre vidraças embaciadas. Só quem muito andou e muito penou e se perdeu e deixou perder e talvez se achou pode saber do que se fala por aqui. As lágrimas secam-se-lhe no rosto e segue em frente.
Da pura efemeridade e provisório dos longos quadros da janela suja da carrinha e logo do olhar de Vincent, até à mais selvática explosão contida no broche de Chloë Sevigny, constantes invenções formais no pequeno, no íntimo, no amadorismo, o que vai provocar detonações vermelhas na pelicula, granulações vivas de quem expõe luz como quem respira, raios que inflectem pela objetiva e olhar adentro quais trovões. Invenções que nada tem de inventivo no sentido desdenhoso de “criatividade”, antes fisionomia e expressão exterior e plasmada da alma. Quadro, enquadramentos, composições ou ajustamentos que adquirem a fracção, o parcial, o subjectivo, a mutação a todo o instante e assim se demitem de quais queres ambições totalitárias, de abarcamento global – funciona neste como noutros aspectos a predisposição do viandante da tela e do viandante que frui à frente dela. Calmos e subtis encadeados utilizados sem pudor pois essenciais à constante metamorfose e união de todas as paisagens sentimentais umas nas outras. Sincera exposição, sinceros arcaísmos do arco-da-velha. Tudo, mas tudo, de mão dada com a dor.
Ao zero de decorativismo e ao aceitar das agruras orgânicas e vivificantes possíveis a qualquer um e não apenas ao “grande artista” e à “grande arte”, o que me interessa e me pasma acima de todas as coisas é a invenção do tempo, de um tempo. Do referido plano inicial da pista até à estrada sem talvez rumo com que o filme funde a negro e se espeta nos abismos que franqueou. Um tempo que é o de uma mágoa indizível, e que abre para outros tempos paralelos, inacessíveis e incomensuráveis. Um tempo também de puro andamento e contemplação. Correspondências, reconhecimentos e redescobertas ao meio primevo. Um tempo de Vincent Gallo e para Vincent Gallo; um tempo para quem quiser, tocado pela emancipação de qualquer impingimento ou amarra fílmica ou moral. “The Brown Bunny” tem o ritmo de um cortejo fúnebre, de um lamento arrastado ou de uma cura necessária, embalado por toda essa imobilidade andante, por todas essas baladas de recomeços e epílogos. Salta-se quando se quiser, parado ou em andamento, assim mesmo.
Não conheço nada tão antigo; não conheço nada tão actual. E o mundo continua a girar impassível sobre os seus imperiais eixos…

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