segunda-feira, 21 de maio de 2012



Deus sabe que estes caracteres poderiam ser sobre "Le doulos", "Le samouraï", "Le cercle rouge"…Deus sabe que são transpostos mais com a memória de um "Un flic", magnum opus de um trabalho e de uma arte rara, pois foi o último filme de Jean-Pierre Melville que vi. Ou seja, que eu não espere daqui nada de muito novo, pois o francês que se dizia e diz fascinado com a américa e sua mitologia, sempre se pautou por uma fidelidade e incorruptibilidade a si mesmo a toda a prova.
Reza assim: o comissário da polícia Edouard Coleman, que é o mesmo Alain Delon e o mesmo samurai do filme homónimo, pauta-se pela frieza e pelo calculismo absolutos, que assim são os terminais e os agudos, e dada a sua natureza só assim consegue chegar à emoção e a uma sussurrada e mínima poética – Delon e Melville, do mesmo sangue. Solitários e invisíveis, mas até ao fim.
É preciso o filme ir a negro – embora todo ele vá do negro abissal até velados cinzentismos abafados e abafadores, azuis que não arrefecem mas sim pelam – para jorrar uma sonoridade que seja exterior ao meio orgânico em que a obra se constrói, algo que não está no campo, na vida que o filme conserva a jorros. Isto se tivermos o desprendimento para reconhecer que os pianíssimos que se dão muito amiudamente nada mais fazem do que calcar e mesmo espezinhar a massa corporal e etérea alma de quem atravessa os milimetricamente esquadrados planos.
Um dia destes, talvez quando a saturação e o excesso de imagens, signos e gangas teóricas tiver assentado, Melville há-de ser visto como um dos obreiros mais puros e simples do cinema, sem segundas intenções nem piscadelas cinéfilas. Alguém que trabalha e molda com o que vê, com o que existe, com o que percebe. E assim, como todos os grandes esfomeados da realidade, chega ao fantástico e aos assombros através da veia física das coisas, do palpável, chegando ainda a outra dimensão que cada vez mais se apura no seu cinema e cada vez mais me deixa boquiaberto – chega através das asperezas da natura e das massas insufladas a sangue, à animação, ao desenho animado. Realismo, estilização, animação. Mas uma animação muito mais selvagem, fabuladora, abstrata e física do que a manga japonesa, partilhando desta esse lado de modelagem bric-a-brac, a máxima estilização vertida máximo realismo, entre a pincelada definida, o impulso arabesco e os lápis de pau de um estado infantário. Muito mais louca e extra-cientifica do que por exemplo o estonteante “Akira”. Essa então poética urbana que faz corar o fervilhamento e sanguinário grafismo nipónico.
Dois momentos impossíveis e no entanto tão discretos: o assalto inicial, manual para a gatunagem, orquestrado por uma banda sonora composta pelos ventos furiosos e os mares ainda mais, pelas chuvas ameaçadoras, pelas movimentações melindrosas e milimétricas dos actuantes, pelo imponderável geral, banda som urdida sobre rostos e olhares que se relacionam e afectam através da montagem, do medo, do patético.
A cena do helicóptero, do comboio e da penetração do primeiro ao segundo mediante um terceiro que vibra. Sinfonia do ordinário no extraordinário que confirma Melville como alguém que ultrapassa o documentarismo, antes um grande observador do que está escrito no papel, observador dos corpos, das acções, das tensões, estratega do tempo e disponível para todo ele, um curioso dos espaços. Um pouco distanciado para apreciar e ver melhor, sem tirar conclusões embora compulsivo, apenas registando em cima com o seu valente e ultra potente microscópio. Um obreiro que, malgrado as ladainhas perpetuadas sobre a sua herança americana de certa Hollywood e de certa literatura, jamais paparia grupos ou vestiria camisas de modas e de forças, um homem que prefere ao invés ir por caminhos adjacentes à matemática e mesmo à física, coisas cientificas, perceber o que acontece realmente quando um homem atravessa e tem de fazer algo neste mundo, uma missão ou coisa insignificante, embate entre o que tem alma e o desalmado, o que mexe e o seu contrário. Da matemática e do exacto ao imperscrutável da existência e ao sentimento de perda é o esfregar dos olhos diabólicos. E aqui mais uma vez, na partitura do ruido do comboio nos trilhos que se funde à hélice do heli, formando um coro disforme, até aos cigarros, mini cursos, “boas-noites”, abrires e fechares de portas, àgua pelo rosto, tudo entra imediatamente em relação com quem lá está a passar por isso e depois com quem vê, realizador e espectador. Tudo diz presente, assim como o tal microscópio que segue o movimento do modo mais funcional e destiloso, prático e sem piruetas, emancipando-se assim da linguagem e da gramática académica e voando para outras alturas que a dita poesia, assim feita única a cada momento e decisão.
Matemática, física, ciências, a mecânica e a consciência do peso e do centro de gravidade que o objecto que filma ostenta, daquilo de que é fabricado, as trações e pressões centrais e periféricas, o entendimento da sua conformidade e afinidade com os espaços, distâncias e inserção num cosmos para assim poder abarcar de uma merecida e lógica maneira cada coisa. Cada coisa por si.
No fundo o que interessa a Melville são as pessoas no seu trabalho, mesmo que no trabalho da vida em que um cigarro tem que arder para o tempo vital arder, é o que lhe interessa, nada a ver com o não ter coração ou o afastamento de um qualquer poder que dos altos assole, influencie, maniete. Nada disso, mas alguém que nessas espantosas pinturas em que a câmara colhe a luz assim disposta e vergada, sabe que a emoção, a mais intacta, tem a ver com o que se faz nesta terra, seja o que for, contemplação inscrita na acção e noutra gravidade, a gravidade que vem ao de cima quando o homem tem que fazer o que tem que fazer. Assim mesmo.
Depois Deneuve e como se olha para ela – e se ali não perpassa qualquer divindade, não sei por onde perpassará.

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