quinta-feira, 23 de agosto de 2012
“Fingers”, sinfonia urbana interior de um perdido pela grande maçã é um filme de uma violência inusitada. Realizado por James Toback cinco anos depois de Martin Scorsese ter feito o seu “Mean Streets”, a mise-en-scène escancara logo um abismo de oposições ao meio e ao indivíduo entre as duas obras. Aqui trata-se de apanhar a violência dentro do quadro e apagar a voraz escritura da câmara do italo-americano. A violência que há para ver e para experimentar está na cidade e dentro dos corpos que a percorrem e a cheiram, e só ao olharmos o terreno do ecrã em directa e ampla perscrutação poderemos sentir as suas correntes, em movimentos que nos chegam do dentro para o nosso fora e que podem por ventura ser devolvidos em punch – o contrário da pré steady-cam cambaleante de Mean que devorava os espaços e feria a carne, escrevia ela mesma esses furores esquivando-se à bruteza do que estava à sua frente pronto a ser colhido, mesmo que por lutas tremendas. São as infecções da casca da maçã a fazerem corpo com o organismo que pulsa desde a superfície até ao ponto mais distante da profundidade de campo. Os dejectos, estilhaços american dream e tudo o resto como baila, cimento, estética.
Cidade que é aqui piso inevitável para a desgraça, ratoeira, peçonha sem antidoto. No escape. Quem por lá andar e seguir o irresistível apelo do seu caos, perigosa sedução, melodia feiticeira, já não tem salvação possível. O que quer dizer que é preciso saber da circulação que originou a pérfida para assim não se saber nada: do homem ao meio, do meio a homem. Todo o inverso e todas as mútuas correspondências. Nunca se saberá que ontologia provocou a outra. O porquê da impossível coabitação, pacificação. Como no pecado original.
E estranhíssimo pedaço de um ser e de uma gota no tempo que o filme convoca: que abre em plano sequência sobre um pianista sôfrego entre estampas de Beethoven, ondas sonoras de Bach arrancadas a ferro e a fogo e a contemplação para posterior perseguição e deleite a uma jovem loira e chamativa que se encontra lá fora. Se deixa escorregar pelas citadas vísceras citadinas de modo imparável em afligidos contra sensos. Onde o ímpeto dos socos e dos miolos estourados vai ser muito mais engolível do que a alma e o nervo postos no tocar das teclas ou no sexo como acto epifánico. Muito mais se sua, se perde sal e sangue a bater com os dedos e a entrar e a sair dos corpos do que a puxar gatilhos e fazer buracos.
Seduzir assim do pé para a mão uma desconhecida, vamos ver, não é nada de especial para esse Jimmy Fingers/ Harvey Keitel constantemente ligado a uma fritante corrente, que numa ânsia maldita de compensar falhanços, culpas, remorsos ou má formações ou pecados ou lá o que for de nascença, nunca vai ter pruídos em atravessar extremos, descentrar a moral ou o modo de viver. Foder com a primeira ou a última. Escutar na sua arma portátil inseparável o rock mais bombástico depois de sair sem fade da mais erudita subtileza, summertime no inverno e teoria musical na choça, dar-se com a intelligentzia ou com a vadiagem em questão de segundos, dizer ao pai que lhe dói a pila ou a um engate que lhe quer a cona porque diferente de todas as outras. Envergonhar-se e ser lacónico. Pedir com a lata toda que se faça um filho. Forçar orgias. Cuidar-se para a audição de uma vida ou cobrar uma dívida monetária no beco dos infernos, limpar a honra ao pai e manter estatutos. Crime arte e arte crime. Um rol sacrificial e de alteração do “eu” face à circunstância, um descontrole muito antigo e reforçado no presente que nem com todos os santinhos do lado da danada alma esta terá qualquer chance.
Fingers já há muito descobriu e porventura aceitou, mesmo que não calmamente, o que muitos só tarde na vida, na maturidade ou mesmo sobre o fim, e outros só do outro lado, descobriram ou simplesmente entreveram morrendo logo a seguir pelo medo, ou seja, que por vezes, já fora dos sonhos, em espirais castradoras ou simplesmente em terras viciosas, é impossível ao homem ter autocontrolo, domínio sobre o que não domina, essas forças que lhe rasgam pele adentro, demónios, desconhecidos. No escape.
Carne. Horizonte redentor. Herança. Compromisso. Falhanço. Falhanço tão triste e tão esperado sobre a tocata de Jean Sebastien, e o castelo de cartas rói. O caroço apodrece. Esperanças mortas. Tudo ao esgoto, pai, mãe, música, amor dos outros e próprio, vida. Os enquadramentos precisos e frontais e assim rudes começam a desenquadrar-se. E Toback neste tratar de tão enorme arco pecaminoso e roedor das gentes eternas de modo formalmente tão minúsculo, interior, bricolado e funcional soube ver e entender os estouros que um Fuller ou um Aldrich cosmicamente agarravam às energias acumuladas e incomportáveis dos percursos e dos destinos, essas altercações momentos de explosão que só as percebendo no âmago, terão qualquer hipótese de queimar celuloide fora como um rastilho inflamado, de nos atingir, nós que tal presenciámos.
Outro tomador das batidas ao pulso e ao coração, das temperaturas e aquecimentos dos rostos e climas, de tudo o que mexe e afecta. “Fingers”, simultaneamente realista e puramente abstracto, onde as almas e as mentes se incendeiam e se consomem com a mesma voracidade do físico e das matérias do cinema que tudo abarcam ou isso mesmo julgam. Simultaneamente Courbet, ou melhor, Hopper, como Bresson, ou no caso americano, um certo Borzage que comunica com Dreyer.
E este cair em cheio torna-se tanto mais amargo quanto se desprende uma nostalgia de uma época em que ainda não se viam robôs de fones nos ouvidos surdos e os rádios grandes aos berros enraiveciam os senhores fato e gravata. Quando ainda se fumava onde existisse oxigénio e uma certa vila não era parque de diversões de papelão, antes intoxicava e drogava como a de Abel Ferrara haveria de intoxicar e drogar. Vila por onde deslizou sem saber o que fazer, ai meus vinte minutos finais, um Keitel chamado Fingers, na dúvida entre atirar-se de cabeça à arte ou partir a cabeça. Por aí tantos Fingers e tantos olhares interpelativos como o olhar final antes do negro que tudo tão inutilmente deixa em aberto. Esse olhar ajudem-me ou esse olhar fodam-se que tanto sempre baralhou. Sem saída.
(Tu Fingers, que uns anos depois destas coisas que conto, desse teu desespero, dessa maldade que tudo e todos te incrustaram, e, escuta-me bem isto que te digo, não vamos ser cínicos nem hipócritas, da tal semente do mal que a admitires-lha tens de reconhecer que já a trazes desde o ventre da tua mãe, essa mãe que também me parece que te pressionou e influenciou. Tu, meu grande sacana, nessa fragilidade ao arrepio que eu noto muitas vezes oculta na tua agressividade latente e em explanação, terás casado, tido filhos, uma mulher mais a tempo inteiro e de acomodamento, terás por fim trocado as mesas de piano pelos uniformes e pistolas legais, e a melomania pelo basebol american type, e assim acabado naquele estupor daquele Bad Lieutenant queimado interiormente e exteriormente pela fé, pelo seu contrário e por uma vontade de ultrapassar tudo, extravasar tudo, até de morrer, etc., para ver o que acontece, terá sido isso, extraordinário e terrestre Keitel? Terás assim perdido os afectos e a vontade de contemplares o único mundo que sabemos? Existe nisto que eu digo alguma verdade e por consequência uma extensão lógica? Em todo o caso, não sou eu que te condeno.)
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