sábado, 18 de agosto de 2012


Uma narrativa fílmica onde na última cena me deparo com uma urgente cavalgada de uma ambulância na tentativa de salvação de uma velha mulher apoiada por um muito jovem em lágrimas não parece ser nada de relevante. Se a essa acção começo a ver desenrolar-se em ainda mais fulgurante paralelo o mesmo puto da ambulância a caminhar vales abaixo montes acima até a um precipício de autodestruição, bem, aí a coisa já parecendo mais estranha e trágica, é façanha que se compreende sem grandes voltas à razão.

 Mas já agora começo a desvendar ao para trás, sem pretensão alguma. Já antes, pouco antes do fim de que ainda não vos disse tudo, aconteceu entre as citadas existências um encontro numa daquelas reconhecíveis feiras populares onde os roda-roda que planam e que voam parecem ter no escuro rasgado a luzes trémulas em lampejo relação com o grande universo calado que jaz por cima de nós todos a horas dessas, feira onde se mandam uns tiros bem mandados e se come algodão doce. Aconteceu por aí, no despertar de um fogo-de-artifício inspirador e transformante, uma oferenda do mais do que novo à senhora praticamente no outro extremo do círculo da sagrada caminhada. Terno e luminescente toque dos príncipes e das princesas, anjos e fadas. E ela aceitou e escaparam-se os amo-te mais do que tudo os quem sabe para sempre e as coisas que quem já viveu conhece. Aqui sim, a coisa já é rara e mais rara e pasmante se torna quando no dia que já amanheceu os topámos na cama com todos os inícios do golpe da carne.  E a excentricidade não fica por aqui, ele acordado faz bolas de sabão com brinquedo de criança, ela, notou-se na noite anterior ao mandar a dádiva ao rio para dela saber sempre paradeiro, é rija e de molde único.

E se me lembro daquela cena em que os dois acabam a olhar pássaros gloriosos num lusco-fusco de mágicas paletas, corados como dois meninos de infantário depois da primeiríssima declaração…cercados de água mas também automóveis e lixeira, nem vos digo nem vos conto. Ele disse-lhe que ela era muito bonita e é inenarrável. Porque antes de aí chegarem no carro terminal dele, já tinham dançado sobre relva verde picada por bailarinas-árvores-testemunha e céu aberto como dançam os amantes de Carax ou de Cimino. Ela já lhe confessara que comunica com a vida e não com Deus e que cada um tem o direito de fazer de si próprio um idiota. Nunca se deixar julgar pelo mundo, e isso bate forte como uma bíblica homilia. Podia ser a moral da fábula que decorre. Ele dá cambalhotas de alegria, ela ri-se para além dos normais decibéis dos normais humanos.

Ainda teremos o prazer de uma interpretação dela ao piano e voz da música em que Cat Stevens aconselha a quem quiser cantar ou ser livre que o faça sem reservas, a ousadia dele com o banjo e mil e uma fugas à autoridade e mil e um furtos de coisas insignificantes como automóveis, tramoias combinadas, rupturas, insubordinações, enfim, pregos ensanguentados na fina seda da compostura social.

Chega de brumas que o lanche aguarda, o novo é o Harold e a antiga é a Maude. O Harold é um menino certamente extravagante, descentrado, terrível, não tendo receios em confessar ao seu psicólogo que o que mais o diverte são funerais, cemitérios, o negro negro, as mutilações e tentativas de suicídio ainda que em farsa, e por aí vai. Ele captado contra o escuro ou sobre funestas composições é uma mistura de um qualquer Nosferatu com uma porcelana aterrorizadora de petizes, caveira de olhos enterrados metamorfoseada com um estripado ventríloquo raquítico que afugenta jovens pretendentes femininas excitadas, que afugenta também a sua Mãe. Gosta de permanecer morto porque um dia assim aconteceu estar e a sensação pareceu-lhe inolvidável. Talvez porque assim sentisse algo além de peso, talvez porque assim alguém se preocupasse com ele, talvez nada disto. Cala-te boca.

Ela, a Maud, vai acalmá-lo e fazer-lhe ver que a vida é bela à maneira de tantas glorificadoras estórias? Nada disso, é ainda muito pior e muito mais radical do que ele e incita-o a fazer ainda pior, o pior dos males possíveis. E assim acalma-o, assim dá-lhe vida, própria, coisa que queime pela pasmaceira geral, consumações até ao pó, vitalidades venham de onde vierem, febre incurável impagável, fugas e escapadas além-mundo. Por entre geometrias quadrangulares e rectangulares que se perdem de vista, pedras tumulares imperturbáveis, buracos fundos abertos, pazadas de terra, zangas com o padre da freguesia, o diabo a quatro e tudo ao diabo, ele redescobre-se leve e com todas as cartas na manga. O carro dos mortos era dele e ele desbunda ao máximo, aterroriza as moças que a mãe lhe arranja, tudo a fazer lembrar uma obra-prima de Richard Quine, “Bell Book and Candle”, e dá baile ao tio esse sim maluco que o quer na guerra. Sem restrições, aquele Jean - Arthur R.

“Harold and Maude” é carpinteirado por um cineasta que sempre me interessou, dividiu, irritou, sensibilizou. Nesta obra não gosto da promoção do álbum de Cat Stevens e da sua possível significância e acrescento a cada sequência, como não gostava dos êxitos de época que perpassavam e faziam supostamente engrandecer até ao transcendente e às lágrimas os diversos picos dramáticos do “Coming Home”, esse filme onde o Voight e sobretudo a Fonda, tão frágil, jamais se esquecem. Mas Hal Ashby costuma ter, pelo menos para mim, algo que ultrapassa os lúcidos critérios e atinge sem aviso o coração. No caso, no caso deste par inadmissível, o título, um dos títulos mais belos que o Português já inventou para filmes estrangeiros, “Ajuda-me a viver”, que é pedido que pelo filme e pelo desespero disfarçado e grave do rosto de Harold leva a questão para terrenos onde a sensação de mal-estar, de aflição, desencanto, se vive ou não vive no cume da faca, na ténue linha do malabarista, do náufrago da existência.

Daí à estética de Ashby ser considerada datada e cheia de patine, de cheiro a mofo, vai uma confusão tão grande como a de não se perceber que a sujidade e fragilidade e quase desvanecimento da imagem, bem como toda a arquitetura ogival e cruzada pintada a verdes e pretos mortuários está em plena consonância com a mente e a velação em atrofio do pequeno Harold, até ao banjo final e cântico de salvação.

“Não é meia-noite quem quer”, escreveu René Char o que alguns visitantes da terra da verdade ainda em vida já sabiam sem saber como o expressar. E quem assim o experimentou ou tiver melindre para o tentar perceber vai ver que todo o filme encafua nesta direcção, para estas linhas e para este ermo de ausentes brilhos e tons. Meia-noite no rosto de Harold que faz meia-noite à articulação, aspecto, centro e emoção do filme. Noite que não exclui o humor. Noite que não exclui o riso. A noite e o riso, como Nuno Bragança. A experiência foi proveitosa. Todas as fragilidades cinematográficas sucumbem quando assim se trata a fragilidade do homem, quando assim se vai ao amor, e peço desculpa por insistir em tal devaneio. Desses apaixonados pela vida da morte a vida.




Já “The Last Detail” é ainda de outro tipo de loiça. Démarche irrepetível, para a vida. Um road movie a penantes, comboios pegajosos e carreiras feias. Que tristeza toda esta higienização dos transportes do aqui… Uns segundos de acção e já se sabe do que a casa vai gastar, a missão a cumprir, do que o filme vai tratar ou destratar. Estamos numa base da marinha em Norfolk, Virginia, Estados Unidos da América. Um menino de recados procura dois marujos, Buddusky e Mulhall, que querendo fazer-se durões ainda pensam ignorar o mestre de armas e a sua imperial ordem. Nada disso: ainda o filme vai na primeira bobine e eles já sabem que terão de levar o marujo Meadows até Portsmouth, no New Hampshire, como prisioneiro. Menos de uma bobine e os três já estão largados aos cães.

Tudo abriu logo após o genérico com um seco rufar de tambores e as únicas melodias que o irão trilhar e ritmar serão marchas e entoações militares. Vamos ter então um percurso e obra seca, pequena, drenada, essencial. Assim como as sequinhas panorâmicas iniciais pelo átrio, corredores, quartos e gabinete. Para ir já de comparações em riste, secura e filigrana Bressoniana. Ou já que tudo permanece muito americano, tangentes traçadas com navalhas de De Toth ou Siegel. Que se é um filme de estrada o vai ser de modo assaz confinado mesmo que pela aridez da basta paisagem enunciada e prometida. Presos de Boston a Nova Iorque e terras de entremeio, mesmo que com semblantes de mauzões.

(Aparte: Que a navalha herdada pelo tipo de Utah que manobra as rédeas continue a cortar tão afiadamente embora com requintes ou atenções mais dilatadas e mesmo penosas posteriormente à saída da base, tanto representa a diferença entre o cinema americano clássico e aquele em que Ashby trabalhou, como a diferença de mundos, de ar do tempo, pessoas nele e a sociedade que o ata, com certeza bem diferente daquela em que James Stewart andou e respirou. Uma malaise e uma brandura patológica que faz com que as durações estejam necessariamente possuídas de uma dor arrastada. Dores de um certo tempo que não o campo-contra-campo e a os gizares sucintos de outra eras, uma caminhada ao estertor que insufla. Impossibilidade clássica. Nojo televisivo. Continuemos.)

Fazer isso numa semana e com tudo pago, certos tipos chamariam a tal um doce e o marujo espertalhão Buddusky não vai pensar noutra coisa. Ele que tal como o comparsa Mule não percebe por que raios condenaram um tipo à expulsão e prisão por ter tentado roubar a caixa das esmolas de uma boa samaritana. Anda mal de saúde a justiça por aquelas bandas e as conexões perigosas são coisa universal e fatais para quem nelas se embrulha. Quem assim vai à forca é então Meadows, que é alguém que ou também precisa mesmo de um psiquiatra, como um dos “carrascos” sugere, ou é um burlesco herança de Buster Keaton, ou pura e simplesmente um inocente que se tramou por aquilo que os inocentes sempre se tramam, verdade e solidão. O contrário do bad ass Buddusky, que gosta de fazer mal por fazer, mijar em cima de pessoas, beber à fartazana e enganar a lei que o domina. Mais próximo do indeciso Mule, que tanto gosta da anarquia e diversão que alastra, para no instante seguinte se aprumar, fazer continência e lembrar que ao invés de o trio estar em despedidas de solteiro, antes acompanha um prisioneiro e há que dar valor à seriedade.

Se “The Last Detail” tem o horizonte de uma linha ela vai ser torta, chão para descobertas, redescobertas, oferendas e transformações por mínimas que sejam. Degraus à redenção. Tudo aglutinado por lentos fondus que ainda o escanzela mais, o disseca, como numa operação cadavérica. Mas a empresa é íntima e faz-se íntima, em tantos momentos Ashby pousa a câmara, sai do plateau, manda sair a equipa técnica para uma pausa, e ficam ali só os três marujinhos a ver como podem melhorar a vida de um injustiçado. No fundo, cada um a tentar melhorar a sua vida. Buddusky quer que ele se divirta, apesar do companheiro de incumbência dizer que essa não é a natureza de tal criatura, que não tenha medo de exigir o queijo derretido no hamburger, que beba até ao estado de vigília e de levitação. Enfim, que assobie às miúdas, que faça amor pela primeira vez, que faça tudo o que os da sua idade têm direito. E que se mantenha fiel a Deus e se zangue com quem o bajular. Buddusky é bruto mas também pode ser justo e verdadeiramente compincha. Também aprende com Meadows e fica a perceber a razão do puto respeitar sempre quem está a fazer o que tem que fazer. Os dois mas principalmente Buddusky querem que ele lute, se faça rijo, homem, cínico talvez, mas não vai ser por isso que a tímida e eterna criança-matulona se vai zangar com eles, antes pelo contrário, e momento de elevada comoção em surdina, os considera como os dois melhores amigos. Assim do pé para a mão, a tal da solidão a trabalhar no invisível carreiro, tal como a formiguinha. E os tambores continuam a rufar.

E Meadows vai queimando etapas à medida que o percurso e o tempo ardem, conhecendo novos continentes e constelações, vai confirmar dentro de si que ali não há carrascos e que se o querem preso, ele vai preso, mesmo contra normais explosões animalescas que de si brotam esporadicamente. Vai despejando litros de cevada alcoolizada, fumando como se não houvesse amanhã, finalmente assobiando meninas. Vai patinar no gelo com graça etérea. Esfumaçar droga. Engatar para ele e para os outros. Entrar na casa de putas. Copular e encantar-se com uma ninfa deslocada. Outro exercício profitable em que no termo do espaço e do tempo passível para algo acontecer, alguma coisa que seja coisa, tal sucedeu e o puto ensanguentado que vai cumprir os oito anos de prisa ou os seis se os ganhar por bom comportamento, já sabe o que o sexo oposto ao seu pode proporcionar, já se sabe fazer respeitar, andar ao cacete com os fuzileiros como acontecia nos filmes de John Ford ou do John Milius e hoje não acontece mais. Caminhada proveito e exemplo sem respostas, coração aberto. Oh! Triste encanto desencanto final quiçá como nas redomas, suores e tremores de Thomas Wolfe, Nicholas Ray.

América coberta a luz sufocada, vacilante, algures glauca, apagada. E mais uma vez o cineasta no seu oficinato ama o grão pelicula como ama o som que extravasa a origem, o que jamais é puro exercício fetichista, Ashby é taberneiro e delicado demais para essas coisas, antes percebe que a imagem como o som não podem ser somente urdidas pelo lixo do meio envolvente que apanham, muito menos pelo profissionalismo nivelador, estando assim atento ao choque e consequências de naturezas antagônicas que no cinema acontece entre a máquina de filmar metálica e fria com a ardente natura. O resultado faiscante disso. A violência do embate. As ondas atordoantes. A harmonia, união ou impossibilidade por denso acordo. Mas tudo pacificado e em certo sentido calmo, tudo em implosão, o que mexe é o organismo interior e nunca o recorte. Zero virtuosismo. Maquinaria, forças da natureza imperiais, o trémulo humano. Há coisas e princípios sobre os quais não podemos fazer batota, questões vida ou morte, para que algo faça sentido. Algo que seja.

E a tal máquina vai deixar de estar à primitiva altura de Hawks. Só por uma vez. Tudo se vai apagar em brancos prados sem viva alma, representação de um vazio de vida, procura do que vem, desilusão inescapável para quem foi com muita sede ao cântaro. O tempo que envelhece depressa, o derradeiro Tabucchi, epigrafe Pessoana ou centro deste filme em que o tempo é tudo porque aflige e urge? Apesar de ter passado, passou-se por ele bem. Passou-se. Siga a marinha.

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