terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

 
 
Bem longe dos berrantes néons e psicadelismos oitocentistas do século passado, tudo a remeter para o pó, cheiros e sangue derramado do velho oeste americano do século anterior ao referido. Afastado de uma certa alegria e espalhafato, mesmo que viciados, antes arrancado às sombras e crespidões de forças e crenças irreconciliáveis. Não alinhado com qualquer tipo de nivelamento estético ou emocional, fervilhando nas diferenças e valores nobres. É assim que se em 1981 um filme realizado por um obreiro do lado da cultura e da televisão, ainda por cima liricamente intitulado “Fort Apache, the Bronx”, se tenha posto mesmo a jeito para os rótulos de anacrónico ou reacionário, não me parece que pelos padrões actuais esteja pronto para qualquer tipo de resgate. Continua sem a tão validada receita “moderna” ou sem esses “vale tudo” que podem ser a mesma coisa, sem superficial sentido de espetáculo, completamente parente do que filma e vasculhando fundos de coisas.
 
Já perto do final o desprendido Murphy de Paul Newman, um ainda só polícia de rua já na casa dos cinquenta, tão estoico como os mais estoicos agentes da lei dos filmes de Sidney Lumet, deambula por uma Nova Iorque corrompida, infecta, merdenta, de feias tijoleiras à mostra, tudo de esterco, onde não há música que embale coisa alguma antes uma sonoridade tão triste como a paisagem escura e cansada, desistente, uma bruitage aflita e, nota-se, perto de qualquer rebentamento. Quando tal viscosa escuridade a negras e espessas pinceladas com que se apanha um tempo assim é cosida com tão audível degeneração onde um corpo vai mais ao menos ao “deus dará”, por sonoras ondas que embatem na tão corroída matéria e se tornam tão ou mais rugosas como, é porque muito se foi traído e se está farto e necessitado do retardado vómito.
 
Essa caminhada de cabeça caída por uma terra minada é tão fundamental para se perceber que na cavalgada asséptica ou virtual ainda se escutam tambores ao longe e necessitámos ouvi-los, como o diálogo cruel aquando da troca de capitães, isto para não falar do “lixo índio” que iconiza a esquadra, onde rezam coisas como estas que transcrevo integralmente para efeitos de fúria: “Não responsabilizem os políticos nem ninguém. Culpem o Dugan, é mais fácil. Têm uma área de 40 quarteirões com 70 mil pessoas ... como sardinhas, cheirando os peidos uns dos outros ...vivendo como baratas, e a culpa é minha. A menor renda per capita, a maior taxa de desemprego...e a culpa é minha. Por que não vou lá fora e arranjo emprego pra essa gente? A maior proporção de pessoas que não falam Inglês...na cidade. A culpa é minha. Por que não ensino Inglês para eles? Só 4% dos polícias da cidade falam espanhol. Hey, Dugan, entra no bairro e recruta pessoal. Famílias que vivem do governo há gerações. Gangues de jovens...bêbados, drogados...chulos, prostitutas...loucos...assassinos de polícias.”
 
E se quem fala assim para si mesmo, para todos e para o outro capitão que se julga profeta não é gago, atingindo picos de verdade semelhantes ao Travis Bickle do “Taxi Driver” ou ao Monty do “25th Hour”, terminais baladas no mesmo piso onde comuns deteriorados ou lúcidos decidiram pegar às costas a insuportável cruz e pecados agarrados de uma amargurada e imoral edificação. Desse Dugan que desaparece até ao Murphy que no hiato de tempo do filme deixa de ir às putas e de beber sozinho para cair na descoberta dos fugazes brilhos da paixão, uma desilusão e foco de olhar que mesmo se querendo ver afogado no rio com todos os que o rodeiam, como desabafa, decide não se embrenhar na corrente depressiva dos paralizantes nervos que mumificaram Travis ou Monty, para continuar a dar trabalho a quem outra coisa também não quer fazer. É a regra e não a excepção da almejada civilização, alguém corre sempre atrás de outro alguém. Não existem puros. O plano final é obviamente isso mas, se a imagem congela, em efeitos até aí interditos, algo deve significar pois em cima dos créditos as panorâmicas vão ser ainda mais desconsoladas.
 
“Isto não é uma esquadra policial, é um forte num território hostil”, impossibilidades e quimeras das supostas leis dos supostos mais fortes, boutades totalitárias, tolerância zero, limpeza proto Rudolph Giuliani, expansões de caminho-de-ferro, respectivos dizimamentos, revolucionária pólvora contra afiados gumes e gritos, outros escalpes, outras flechas. “Fort Apache, the Bronx” é tramado porque são espelhos e reflexos e quinas e sementes que se julgavam partidos ou limadas ou mortas. Intemporalidade imóvel. Assim como se monta paralelamente o intimismo de Murphy com o do seu parceiro, terrível é a montagem para a desmontagem entre o cancro que alastra no ecrã e no presente para todas as páginas fechadas eternamente e arquivadas em História.
 
Isto assim denso e carregado, mitológico e terreno, sem os histerismos e style de “Django Unchained” ou a retórica auto-consciente de “Lincoln”. Espero que venha a despropósito. Daniel Petrie, existes, e por muito que possas achar o que vou dizer uma estupidez, espero que continues escondido, sem festas, sem capas de suplementos artísticos ou caixas dvd, e permite-me lá uma interrogação, como é que um plano do Newman a fumar o seu cigarro e este a fumar-lhe a ele, me diz mais sobre um ambiente, a tal temperatura do ar, e consequentes estalares das sinapses, do que mil almanaques debitados de forma a parecer inocente? Que mandassem umas cartas ou imprimissem novas edições…


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