sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

 
 
“On the Bowery”, Lionel Rogosin, 1956
 
- Uma das coisas mais bonitas entre muitas é a sua dimensão sinfónica, sempre a voar para uma discreta polifonia, interessando-se por todos os movimentos e vidas, latências e manifestações, mas nesse abstrato intimismo tem a necessidade de ir atrás de alguém, Ray, para nessa tamanha babel tentar apanhar uma fina e complexa linha narrativa, uma estrutura redentora, um possível centro, mas como nos ensinou o impressionismo ou o fauvismo, Matisse ou Monet, o barco está sempre a virar e o imprevisível é o que mais nos vale esperar. E essa linha e esse corpo foge, foge, sempre a perder-se no caudal e na poluição.
 
- Essa orquestração da sobrevivência, tonal e atonal no mesmo quadro cinematográfico ou intervalo, sobre andamentos diversos que entre tanta desgraça e abandono vislumbra mesmo assim no fumo a dádiva que é toda a possível de todos, num final digno de Capra ou Stallone.
 
- Notas musicais filigrana e ruído cacofónico harmonizam-se na causa.
 
- Uma brancura granulosa sempre a resistir ao preto, ao seu apagamento. Brancura teimosa, violante, perfuradora.
 
- Realismo granítico que transfigura os rostos e as poses em estátuas persistentes. Da ultra definição pelicula até antigos templos, misticismos, séculos de séculos atrás, helenismos ou lincolnismos, é a elipse a rememorar e a evidência na tela.
 
- O grande-plano comenta o plano-geral, o total, e este distende-se, desmultiplica-se, tramadas réplicas de réplicas.
 
- Da singular indiferenciação surge Ray com passado ou contra campo de Western ou de tragédia, curvado de mistério e olhar sem futuro, esse é todo o incalculável fora de campo numa assustadora instalação e escavação no presente a que o filme se entrega, o que não abole e antes amplifica bradares de parábolas remotas.
 
- Filme combate. Filme resgate. Filme pulsante. Como numa operação-rambo trata-se de política justiceira sobre o grande mal espezinhante de certa liberalização, poder, sede, adormecimento clínico. Sem discursos retóricos, tagarelices, coitadices, exaltações, glorificações, antes pelas formas de cinema, fechando o placo sobre todos eles da Bowery, que aparece como a humanidade inteira, para melhor abater os criminosos. Panela de pressão, de gana, esse remar que move impérios e remove o castrador tempo. Jamais incesto ou suspeita de aborto, sim casamento com todas as hipóteses de remendos ou estilhaçamentos. Pelas formas que são câmara, luz e carne feitos um só, como em todos os que sempre interessaram.


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