Ao invés do típico e coninhas Hélas!, um foda-se!, “Os Sorrisos do Destino”, penúltimo filme de Fernando
Lopes, é uma comédia Hawksiana, ou então uma daquelas sofisticadas americanas
que os maiores clássicos realizaram, e, como estas, tão maltratada, ignorada ou
considerada perfeitamente irrelevante - O Desporto Favorito dos Homens?. A
situação é simples, partindo do eterno triângulo amoroso e do respectivo
encornamento que um dos vértices aplicou a um outro, até consequências
imprevistas ou só ao alcance de alguns.
Ada é a belíssima Ana padrão, neste filme
empertigada e a puxar ao feio, adepta da alta cultura e das escapadelas. Rui
Morrison chama-se Carlos, anda metido nas publicidades e nas imagens, mas é dos
que bebe, fuma e se emociona demais. E o elemento de certo modo perturbador é o
Manuel B. a que o jovem Milton Lopes dá vida, escritor angolano nada parvo. E
se a coisa já poderia estar muito batida, nada para a refrescar e injectar de
candura como a evidência de Fernando Lopes, como em tantos outros personagens
de tantos filmes seus, encarnar agora em Morrison, na fase mais em perda e de
maior comoção da sua pessoa, para expor lições de fidelidade sem dúvida fora de
tempo, lições de amizade, individualismos e companheirismos que não se moldam à
facilidade ou estupidez das épocas ou das manadas.
Encarnações ou sintonias que nos transmitem
coisas como as redes sociais – os telemóveis e as suas sms, o facebook, etc. –
poderem ser a peste de hoje ou o último reduto dos cobardes e dos imbecis. E
não por causa de Carlos descobrir a traição por uma sms chegada do etéreo, isso
seria cair em simplismos, mas obviamente pelo irrisório e pelo picaresco em que
os tais amores ou desamores virtuais estão sedimentados, sendo este o tom e a
moral com que Lopes constrói personagens, diálogos, as formas, numa
complexidade que assoma da aparente leveza geral.
E é preciso ver a cena de sexo entre Ada e
Manuel B. para se perceber, ainda mais do que a permanente invenção de um
realizador ao longo de uma carreira que merece ser sempre redescoberta, como os
contracampos ainda podem servir para espaços diferentes serem ligados e unidos
por olhares e por intensidades, provando que estes velhos arcaísmos mudos são mais
requintados e funcionais do que qualquer desmultiplicador de perspectivas
moderno, muito mais sugestivos, maldosos e dementes.
Porque o que acontece é de abananar: em vez de
termos os processos e as normas esperadas, as zangas do costume e os divórcios
acelerados, o elemento traído atira para a mulher agora dividida os seus
boleros rascas, impõe-nos à altivez de um Richard Wagner a que ousa ligar ao
nazismo, caga na sua perversãozinha e no seu gourmet, caga nos novos-ricos e
marialvas trajados a hugo boss, faz gato e sapato da sua burrice para as
tecnologias e da esperteza dela para isso, mas não é só. Aproxima-se do rival,
pensa em duelos com ele como lá para trás se fazia, talvez em vias de facto,
mas logo esquece isso com sorriso maroto e terno, e ambos comem presunto e
bebem vinho, brindam, fuma-se umas cigarradas, vão em busca do cão perdido,
fazem trinta por uma linha e acabam a dançar sob a lua de todas as ilusões que
mais de um século passado ainda continua a fazer das suas. Estranhíssima
história de amor por que destas já nos desabituámos…E o que será, será. Como
diz a cantiga e como sempre será…
Se Carlos ao contrário de Lopes acaba por ter um
telemóvel e aprender as suas mensagens e segredos, tombando na dita aproximação
social, nesse grande saco de vários bicos, é mais porque escolhe entregar-se à
graça ou ao riso do que à depressão e à tragédia, prefere a bebedeira ao
suicídio, para assim ver mais nitidamente alguns dos ridículos que a coisa
proporciona na sua aparência maravilhosa. Fica assim esse amigo interpretado
por Julião Sarmento, que da irritação inicial que transmite se transforma em
protecção essencial, carinhosa personagem no meio de muito lixo que faz lembrar
aquele velhinho que protege o Bogart no “In a Lonely Place”. “Dorme bem e tem
bons sonhos, meu nobre príncipe”, pareceu-me escutar isto da boca desse amigo,
pela fechadura, sem interferir.
E com um argumento perigoso, tal como acontecia
nos seus dois filmes anteriores, das citações ao realismo corriqueiro, Lopes
arranca uma vingança e uma parábola fina, uma visão e um desancar panópticos.
Contrapõe aquele velho e castiço carro ao seu filho extraterrestre em que Ada
se refugia, poderia ser só isto. Como poderia ser o facto de ter tratado e
reduzido a super potente Red Epic ao seu propósito científico de registo do que
está em frente, da maneira mais forte, honesta, sem remorsos. Como alguns dos
mais nobres velhos jovens do cinema, precisou de regressar ao estúdio, ou, mais
importante, pois em boa verdade ele raramente de lá saiu, tratar a sua visceral
cidade de Lisboa como num estúdio, entre o fragmento e o papelão, para melhor
poder cozer, controlar e colher as emoções. Que são realmente a sua arte e,
antes disso, dessa traiçoeira palavra, o seu modo de viver. Do riso ao choro, e
vice-versa, ao de leve, de levezinho, sem grande espalhafato.
O Desporto Favorito de um Homem?
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