quinta-feira, 23 de maio de 2013

 
 
Ao invés do típico e coninhas Hélas!, um foda-se!, “Os Sorrisos do Destino”, penúltimo filme de Fernando Lopes, é uma comédia Hawksiana, ou então uma daquelas sofisticadas americanas que os maiores clássicos realizaram, e, como estas, tão maltratada, ignorada ou considerada perfeitamente irrelevante - O Desporto Favorito dos Homens?. A situação é simples, partindo do eterno triângulo amoroso e do respectivo encornamento que um dos vértices aplicou a um outro, até consequências imprevistas ou só ao alcance de alguns.
 
Ada é a belíssima Ana padrão, neste filme empertigada e a puxar ao feio, adepta da alta cultura e das escapadelas. Rui Morrison chama-se Carlos, anda metido nas publicidades e nas imagens, mas é dos que bebe, fuma e se emociona demais. E o elemento de certo modo perturbador é o Manuel B. a que o jovem Milton Lopes dá vida, escritor angolano nada parvo. E se a coisa já poderia estar muito batida, nada para a refrescar e injectar de candura como a evidência de Fernando Lopes, como em tantos outros personagens de tantos filmes seus, encarnar agora em Morrison, na fase mais em perda e de maior comoção da sua pessoa, para expor lições de fidelidade sem dúvida fora de tempo, lições de amizade, individualismos e companheirismos que não se moldam à facilidade ou estupidez das épocas ou das manadas.
 
Encarnações ou sintonias que nos transmitem coisas como as redes sociais – os telemóveis e as suas sms, o facebook, etc. – poderem ser a peste de hoje ou o último reduto dos cobardes e dos imbecis. E não por causa de Carlos descobrir a traição por uma sms chegada do etéreo, isso seria cair em simplismos, mas obviamente pelo irrisório e pelo picaresco em que os tais amores ou desamores virtuais estão sedimentados, sendo este o tom e a moral com que Lopes constrói personagens, diálogos, as formas, numa complexidade que assoma da aparente leveza geral.
 
E é preciso ver a cena de sexo entre Ada e Manuel B. para se perceber, ainda mais do que a permanente invenção de um realizador ao longo de uma carreira que merece ser sempre redescoberta, como os contracampos ainda podem servir para espaços diferentes serem ligados e unidos por olhares e por intensidades, provando que estes velhos arcaísmos mudos são mais requintados e funcionais do que qualquer desmultiplicador de perspectivas moderno, muito mais sugestivos, maldosos e dementes.
 
Porque o que acontece é de abananar: em vez de termos os processos e as normas esperadas, as zangas do costume e os divórcios acelerados, o elemento traído atira para a mulher agora dividida os seus boleros rascas, impõe-nos à altivez de um Richard Wagner a que ousa ligar ao nazismo, caga na sua perversãozinha e no seu gourmet, caga nos novos-ricos e marialvas trajados a hugo boss, faz gato e sapato da sua burrice para as tecnologias e da esperteza dela para isso, mas não é só. Aproxima-se do rival, pensa em duelos com ele como lá para trás se fazia, talvez em vias de facto, mas logo esquece isso com sorriso maroto e terno, e ambos comem presunto e bebem vinho, brindam, fuma-se umas cigarradas, vão em busca do cão perdido, fazem trinta por uma linha e acabam a dançar sob a lua de todas as ilusões que mais de um século passado ainda continua a fazer das suas. Estranhíssima história de amor por que destas já nos desabituámos…E o que será, será. Como diz a cantiga e como sempre será…
 
Se Carlos ao contrário de Lopes acaba por ter um telemóvel e aprender as suas mensagens e segredos, tombando na dita aproximação social, nesse grande saco de vários bicos, é mais porque escolhe entregar-se à graça ou ao riso do que à depressão e à tragédia, prefere a bebedeira ao suicídio, para assim ver mais nitidamente alguns dos ridículos que a coisa proporciona na sua aparência maravilhosa. Fica assim esse amigo interpretado por Julião Sarmento, que da irritação inicial que transmite se transforma em protecção essencial, carinhosa personagem no meio de muito lixo que faz lembrar aquele velhinho que protege o Bogart no “In a Lonely Place”. “Dorme bem e tem bons sonhos, meu nobre príncipe”, pareceu-me escutar isto da boca desse amigo, pela fechadura, sem interferir.
 
E com um argumento perigoso, tal como acontecia nos seus dois filmes anteriores, das citações ao realismo corriqueiro, Lopes arranca uma vingança e uma parábola fina, uma visão e um desancar panópticos. Contrapõe aquele velho e castiço carro ao seu filho extraterrestre em que Ada se refugia, poderia ser só isto. Como poderia ser o facto de ter tratado e reduzido a super potente Red Epic ao seu propósito científico de registo do que está em frente, da maneira mais forte, honesta, sem remorsos. Como alguns dos mais nobres velhos jovens do cinema, precisou de regressar ao estúdio, ou, mais importante, pois em boa verdade ele raramente de lá saiu, tratar a sua visceral cidade de Lisboa como num estúdio, entre o fragmento e o papelão, para melhor poder cozer, controlar e colher as emoções. Que são realmente a sua arte e, antes disso, dessa traiçoeira palavra, o seu modo de viver. Do riso ao choro, e vice-versa, ao de leve, de levezinho, sem grande espalhafato.
 
O Desporto Favorito de um Homem?

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