segunda-feira, 30 de setembro de 2013

 
 
John Berry é um Orson Welles sem problemas de ego. Tal afirmação encontra-se em itálico pois faz parte de uma carta que eu enviei há uns tempos a um colega de ofício. Tamanha ignomínia não obteve resposta. Ouvi mesmo dizer que o meu prezado interlocutor levou a mal a comparação, considerando maligna a minha pena. Também já não dou muito crédito a essas minhas observações passadas, mesmo depois de ter descoberto que o esplendoroso menino-prodígio de Kane foi importante na passagem do Berry actor ao portentoso Berry cineasta. Outro que não papagueou Brecht. Mas, só para esticar mais um pouco a corda, é preciso experimentar a estafante energia que carrega cada cena de “Tension”, a insuportabilidade da condensação, para se perceber que não foram precisos picados nem contrapicados furiosos, travellings impossíveis, truques de magia ou a representação sempre em excesso para atingir, em imagens e sons feitos planos, a grande ilusão e o grande burlesco que é a vida. A sua violência intrínseca e os petardos inesperados, numa fixidez que é ciência e justiça poética, como camisa-de-forças, em que todos esses germes e os seus resultados, latências e manifestações, tracções, sangue, física, pulsão, tesão, lógica, líbido, carne e toda gravidade esperada e surpreendida, aplicam camadas e raios à planura e pelas vísceras do campo. Linhas e círculos esticados e convulsos. Força Centrífuga que se desprende do centro em causa e nos chega a impelir para trás. Até explosões de proporções inauditas. Como quem espera pela ameaçadora conclusão vulcânica. Membros de uma mesma família com feitios opostos.
 
Tudo começa com um agente da autoridade que nos olha severamente, sem brincadeiras, e que então nos explica o que é a tensão. Todos temos um ponto de ruptura e no momento atrofiante vamos quebrar, está feito o aviso e a nossa implicação. Começa a ficção e, entre narrações-off vacilantes e muita água e nevoeiros que toldam, vamo-nos deparar com um assustado homenzinho que trabalha dia e noite como um animal para conservar a mulher que todos querem, literalmente e com toda a delicadeza da minha parte, devorar. Homenzinho que todas as manhãs ao sair do trabalho troca o fulgor e as fantasias de um novo dia pela invectiva: estará ela em casa? Não se deita sem lhe servir o pequeno-almoço e levar mais uma bofetada. Prescindindo da felicidade própria, ilude-se com um sonho impossível e assume-se um cachorrinho, num filme de muita animalada.
 
Evidentemente que é trocado, humilhado, escorraçado e ferido menos pelo rival que a comprou do que pela indiferença dela. E como quem muito morre muito pode matar, decide torcer-se e virar-se do avesso. Procurar o guião perfeito do crime sem culpado e assumir a herança fantástica e atmosférica da animação ou da pulp que o filme parcialmente também flirta. Troca óculos vulgares por lentes especiais, excesso de respeito por perversidade dúbia e inocência por monstruosidade. Sem deixar de perceber, fulcral, que a culpa foi acima de tudo própria. Decide apagar-se e tornar-se outro para a querida da vingança. Torna-se Homenzarrão. Mas o guião tem buracos e twists como todos eles e alguém vai matar por ele, alguém lhe vai devolver a mulher que todos queriam. E fazê-lo ao mesmo tempo apaixonar-se e cair nos braços e nas pernas e na fotografia dessa Cyd Charisse tímida, instantes depois de a conhecer quando de tudo fugia.
 
"Desculpa, és a rapariga certa com o tipo errado", é o que diz Warren Quimby (nome de baptismo) à personagem de Charisse que é o contrário da glutona ex chamada Claire. E daí para a frente, depois de alguém ter escrito direito por linhas muito turvas, começa a distribuir murros e a limpar a roupa suja, mas o fantasma inexistente que ele criou e não matou completamente vem atrás dele para o assombrar. Charisse não o esquece e quer renascê-lo. A gadanha do mal também não perdoa e leva-o atrás das grades. A fotografia que Charisse tirou por acaso também se vai agigantar. O ignóbil puzzle começa a fazer sentido no seu grotesco delírio. O agente inicial reaparece e continua a trucidar elásticos e a não perdoar. Vai meter a tensão e o outro tipo de fome a trabalhar. Rudemente. E como pouco para trás fez sentido, tudo para diante vai fazer ainda menos. Quem enganou vai julgar-se enganado. Quem nunca teve dúvidas vai começar a tê-las. Até ao conluio que é outra cantiga de outro sopro.
 
Para andarmos mais à nora: a única pessoa que tinha motivos para o assassínio em questão era o inexistente Paul Sothern (nome de óbito) que era o Warren. Tudo ao contrário e o que o vai salvar, e logo condenar culpados, vai ser o encontro que ele teve logo no momento em que deixou de ser quem era para se assumir verdadeiramente e sem sombra de dúvidas. Toda a fulgente cena na praia se torna justificação daquelas vidas. O que este fabuloso e mais do que lúcido filme nos mostra com o descaramento dos espelhos, por entre a tensão maníaca que vai dos seios erectos de Claire até aos olhos lúgubres e dementes do clone bastardo de Warren, é a evidência e imposição do nosso temperamento e instabilidade à frieza e brancura da boneca de porcelana que vai a par do infortúnio desde o início e assombra cada espaço em que aparece, por entre travesseiros de dormir e sofás de sexo.
 
Por isso Charisse, insisto em chamá-la pelo nome real antes da personagem, não mais se tenha esquecido da face e da doçura de quem por ela passou fugazmente mas fulgurante e que só se parecia ter fixado no congelamento da película. E John Berry como um exímio observador das minúsculas nuances cruciais e marcantes que se costumam dissipar e vulgarizar no geral. Um semelhante do agente que só quebra o elástico dos dedos quando quebra o enguiço misterioso, olhando para tudo ávido e sereno, pausadamente mas como se fosse tudo ou nada. Não de maneira gélida e cerebral mas antes desperto por toda e qualquer resposta da mente e do corpo ao obstáculo que se mete defronte.
 
É a vida, que o enquadramento e o foco deste urgente artesão possui nos seus sinais e impulsos mais vitais. Sem necessidade da pirueta de estilo ou da prova de génio. O dentro e os sinais eléctricos. Os sinais humanos. Os sinais antigos. E fascinado por quem não acreditou à primeira, segunda ou terceira em si e escorregou na peçonha à disposição de cada um. De “Tension “ até “He Ran All the Way” e ao melindroso perscrutar do acagaçado John Garfield, o ínfimo passo que separa a triste perdição da felicidade consumada. O desenvolvimento fatal e rítmico do processo e o olhar desencantado para tamanhas façanhas e casualidades. Genealogia que saiu logo da invenção e mesmo da vocação desta microscopia sem limites, que se elevou em Yasujiro Ozu, num Alan Dwan, num Alan Tanner ou num James Toback, e que é das mais complexas de erigir. Em tensão.

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