quarta-feira, 2 de outubro de 2013

 
 
Phil Karlson fez de facto parte de um sistema calibrado, oleado, fiável. Logo, perfeitamente reconfortante e pronto para o risco. Pois lá dentro, como os melhores e em todas as profissões, podia meter a sua persona, a sua febre, o seu riso, ele mesmo. À custa de muita cabeçada, possivelmente, mas conseguia-se. Ele consegui-o, seguramente, e o filme de que vou falar um bocadinho, “The Brothers Rico” de 1957, sendo uma peça de fabrico da terra de Zanuck ou de Thalberg, é um filme de autor desde que a personagem de Eddie acorda até quando concretiza o sonho de uma vida. Com a tragédia toda no meio. Uma obra e um processo marcado, enrugado, com um organismo singular. Nenhuma indiferença. Para tais questões que vão decorrer, a câmara e o seu parceiro não têm certezas, nem respostas. Vejam e digam. Chorem ou simplifiquem.
 
Um filme de irmãos e um filme de rostos. Rostos que logo se notam sofridos, cheios de insónias e fatigas, definhados, à espera de um pior que virá. Câmara que os olha sem contemplações, através de espelhos cruéis que revelam a verdade e de proximidade que muito menos deixa mentir. Onde todas as negras sombras se sentem perdidas e esbatidas no cizentismo que tudo abrange e come. Tudo desespera. “The Brothers Rico” são viagens de um homem que à porta de conseguir adoptar o seu filho pressente que tem finalmente de salvar os que há muito são do seu sangue. E é tarde. Cai num cerco e numa teia onde os Estados Unidos da América são uma aldeia. Em cada esquina um suspeito. Não se pode enfrentar o sistema, é o que alguém lhe diz muito para a frente e depois de muito tiro. O grande sistema, que se é puramente Americano e contextual, é reflexo de uma História de corrupção e deterioramento Humano no seu todo. Entre os destroços, algum inventário: segundas classificadas de concursos de beleza assanhadas e a tentação; manos mais novos que ao contrário dos manos mais velhos têm filhos a rodos e por aí vai; mercenários anestesiados.
 
Se estamos de frente a um filme rude como aquele mundo, seco, nada contemplativo a não ser da morte próxima, os ecos bíblicos são demasiados para que o filme se feche numa redoma somente ali ou aqui contemporânea. Desde os filhos pródigos e as Mães perdoantes de tudo, o que me lembra muito outro ordinário conto bíblico que é o “Matar Saudades” de Fernando Lopes, até aos volumes ainda chamados homens que chegaram a tal nível de disformidade e alienação, que sentem fome de bicho selvagem depois de espalharem mais miolos. A prisão e a fronha do grande espaço com o seu grande desenvolvimento e os ecos intemporais rezados na partida. Ou por vezes a esperança no espaço íntimo e os aterradores avisos do infinito passado. O mesmo círculo.
 
Karlson, autor. Assim poderia ser possível e produtivo as universidades, ou os sedentos de gavetas e museus que aniquilam e fazem esquecer, chegarem a algum lado e perceberem que tudo nunca foi tão simples. Como o mais virgem rosto que esconde a mais terrível maldição. Neste fresco que fecha inundado em sorrisos de crianças e imaculados pensamentos, vai ser impossível esquecer o plano anterior que o combate e contradiz, para uma síntese da inadaptação. Da reconciliação. Um contra o outro e cada um que faça as contas. Olá, Senhor Eisenstein.
 
Tudo, mas tudo, tecido e esquentado num realismo ou num desencanto, faz mais sentido, que o liga a coisas que outro americano chamado Edward Dmytryk ousou em “The Sniper” (e fê-lo igualmente no terreno do Western com esse incandescente “Warlock”) ou um Francês como Claude Sautet atingiu com o neo-realista “Classe tous risques”. Que é sair para as ruas e meter-se sem medo pela bicharada adentro. Fugir do calor dos estúdios. Desnortear-se com a paisagem e com o cheiro e a ameaça e a massa do real. De tanto incompreensível. Debater-se. Para uma estética sem definições e em certos auges perto do doentio.
 
Tema principal do cinema moderno assim como Gilles Deleuze o definiu e sistematizou? Talvez, se quisermos, mas que em “The Brothers Rico” se parta de uma novela de Georges Simenon e da sua féerie inata, se trabalhe uma decupagem cinematográfica rigorosíssima, o ritmo calibrado, oleado, fiável, actores já Kazanianos, e tanto ainda da famosa máquina. Que se chegue ao pasmo e ao coração ou cancro das coisas despidas, inteiras e por elas, com formas brutas que nenhum assumido documentário impessoal conseguiria tanto, que nenhum autor actual só por carregar o rótulo ou assim ser considerado pelas autoridades igualaria em perigo - é segredo que eu não tenho e desconfio perdido. Ou se é ou se não é, sem disfarces ou cauções.
 
Richard Conte, genial actor.

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